Contradanças & Quadrilhas
Não se sabe bem ao certo, se deduz,
praticamente, que uma velha dança camponesa da Inglaterra feudal, então muito
em voga, disseminou-se pela Europa, servindo de base para o desenvolvimento de várias
outras expressões coreográficas.
Teria sido durante a Guerra dos Cem
Anos (séc.XIV e XV) que a França conheceu esta dança, então chamada “country
dance” (dança do campo, rural), nome por demais genérico e logo afrancesado
para “contredance”.
Dançada por duas fileiras, uma de
homens, outra de mulheres, frente a frente (vis
a vis), em ritmo binário, melodias variáveis, ganhou grande importância na
França nos séculos seguintes, bem como noutros países daquele continente, tendo
inclusive inspirado obras de alguns compositores clássicos.
A contredance francesa chegou a Portugal plausivelmente, trazida por
soldados do período das guerras napoleônicas. Aclimatou-se fácil e ganhou
grande popularidade com o nome aportuguesado em “contradança”. Por
sua vez foi trazida ao Brasil pelos colonos portugueses e se estabeleceu em
várias regiões ganhando cores locais .
Aqui
o contexto mais geral que assumiu foi o de uma suíte de danças, tal como em
Matosinhos, bairro de São João del-Rei/MG, quando na Festa do Divino de
1899 apresentou-se com grande sucesso uma contradança, graças aos abnegados
esforços do farmacêutico Desidério Rodarte .
Ela
se modificou em outras danças ou lhes serviu de base ou modelo, mas em geral
manteve o elemento rítmico e a fila dupla. Mas ora particularmente nos
interessa os rumos tomados pela contradança na França. Possivelmente no final
do século XVIII ou começo do seguinte, uma das suas modificações, dançada por
quatro pares, ganhou o nome de “quatrille”
(de quatre, quatro em francês). Alcançou
enorme sucesso na corte francesa.
A
França era um modelo aristocrático para outras cortes e não tardou que esta
dança viesse ao mundo português, traduzida em “quadrilha”. A princípio manteve
o formato original, sem canto, com acompanhamento instrumental, em 6/8 e 2/4,
cinco partes com final agalopado e evoluções ordenadas pronunciadas em francês por
um mandador (Portugal) ou marcador / marcante (Brasil).
Feita
dança palaciana na época da Regência, da corte carioca, dos salões da alta
sociedade, muito breve ganhou as camadas populares, difundindo-se profundamente
pelo litoral e interior. Uma página magistral a respeito nos legou Luís da Câmara Cascudo,
que de tão esclarecedora é uma consulta indispensável .
Pelo
imenso interior brasileiro a quadrilha ganhou as mais variadas influências de
outras danças regionais pré-existentes ou que chegaram depois. O francês da
marcação se corrompeu, estropiado no linguajar sertanejo, ou mesmo cedeu
espaço ao português coloquial; velhas marcações foram abandonadas, adaptadas ou
substituídas por outras de criação nacional. A quadrilha original então
desapareceu do Brasil, perdida no turbilhão das mudanças. A dinâmica imensa do
folclore criou suas variantes:
- Lanceiros: de
influência inglesa era uma modalidade de quadrilha. Existe um registro para o
Amazonas ,
municípios de Manaus e Tefé. Dançavam com uma lança curta na mão, os pares se
enfrentando, com entrada pomposa, trajes nas cores verde e amarelo: chapéu de
palhinha, jaquetão e calção. Em Minas Gerais também foi conhecida.
- Solo-inglês: “espécie de lanceiros, muito dançado na
Maioridade e no Segundo Império, na corte e nas províncias. Dançavam-no aos
pares, havendo vênias, trocados de lugar e volteios” (Cascudo, op.cit. verbete: Solo-inglês).
Desapareceu no fim do século XIX.
- Baile sifilítico
ou sifilito: versão caricata da quadrilha na Bahia e Goiás, de que não se
dispõe de muitas informações.
- Saruê:
corruptela de “soirée”, sarau. Quadrilha registrada no Brasil Central, “misto de figuras das quadrilhas francesa e
americana, com passos de danças originais do sertão, marcas estapafúrdias”
(Cascudo, op.cit. verbete: Saruê.
Baseado em Antônio Americano do Brasil, Cancioneiro de Trovas do Brasil
Central, 1925).
- Esquinado: dança
outrora popular no nordeste e sudeste do Brasil, desaparecida na primeira
metade do século XX .
- Mana Chica: quadrilha
muito peculiar irradiada a partir do norte fluminense
para o Espírito Santo e
Minas Gerais. Sua origem é atribuída ao município de Campos onde desenvolveu
outras variantes regionais: mana Joana e maricota. Há uma marcação como a da
quadrilha mas um acompanhamento com palmas e por fim um intenso sapateado,
quase um desafio. Recolhi em 1996 graças à gentileza de uma senhora octagenária
de Barbacena/MG, Dona Josefina, uma significativa versão:
Mana Chica,
Mana Chica, {BIS}
|
Mana Chica,
Mana Chica, {BIS}
|
Mana Chica do
sertão,
|
Mana Chica de
Goiás,
|
Mana Chica me
chamou {BIS}
|
Ela montada em
sua besta {BIS}
|
E pegou na
minha mão!
|
Meu burrinho
rinchando atrás.
|
Ai... Mana
Chica! {BIS}
|
Aonde você
vai?
|
Ela montada em
sua besta, {BIS}
|
Meu burrinho
rinchando atrás.
|
Ainda outra quadra da mesma informante:
Eu joguei o barco n'água
eu avistei o remador;
Quando o barco foi virando,
Mana Chica me chamou!
- Numerada: tipo
de quadrilha que se dançava em São João del-Rei com a particular característica
dos dançantes irem aos poucos formando uma fila única, sob o comando do
marcador, sempre se referindo a expressões ferroviárias: “locomotiva!” (o
primeiro casal se perfilava), “vagão de carga” (outro casal aderia à fila) –
sempre em movimento de balancê – “vagão de
passageiros”, “guindaste”, “trem pagador”, “turma do lastro”, etc. A cada
marcação, novo casal se punha na mesma fila, acoplando novos vagões e em
seguida partiam em ritmo, fazendo uma marcha que simulava uma viagem de
Maria-fumaça.
|
Quadrilha escolar.São João del-Rei/MG. Foto: álbum familiar, 1980. |
Desaparecidas as versões acima
listadas sobreviveu porém aquela que teve de todas a maior capacidade
adaptativa, a mais ampla aceitação popular: a quadrilha caipira, como é chamada
no centro-sul do país ou quadrilha matuta, como se diz no nordeste.
Guardando consigo a matriz da
quadrilha francesa, permitiu um sem-número de variações regionais com novas
marcações bem ao gosto interiorano, ganhando um ar brejeiro. Nas cidades ganhou
mais força que nas vilas, com nítida influência popularesca, de letrados que
nela imprimiram novo formato de valorização das tradições nacionais, num
folclorismo evidente.
Os trajes, os trejeitos, a
contextualização busca então evocar tudo o que na cidade se julga camponês,
caipira, matuto, caboclo, pois que, o homem da roça foi então configurado como
um protótipo brasileiro. Há porém uma ambiguidade, posto que ao pé da letra há
uma afetação, um exagero no representado, que caminha para a depreciação dos
valores rurais, haja vista na zona rural as danças não transcorrerem como na
cidade as representam. Não há roupas remendadas ou chapéus esfarrapados. Na
roça quando vão para uma festa usam a melhor roupa. Ninguém então usa de
trejeitos.
Mas detalhes à parte, estes aspectos
já se incorporaram ao universo das quadrilhas.
É frequente a realização de um
entremeio dramático chamado “casamento caipira”, um simulacro de cerimônia
matrimonial, muito sarcástica e picaresca. O casal surge em cena trazido numa
carroça ou charrete, ou mesmo a pé. Um dos quadrilheiros aparece trajado de
padre, um sacerdote trapalhão; outro faz o sogro, violento, bruto, armado; o
noivo é gaiato e malandro, faz de tudo para embromar o pai da noiva. Vem
trajado com um terno surrado, pouco elegante. Para completar a trupe a noiva: figurada numa jovem com vestido branco, véu e grinalda, maquiagem exagerada, abestalhada, fazendo-se ora de
assanhada ora de tímida. O quarteto encena de improviso um casamento forjado,
com muita criatividade, humor e gaiatice. O pai não quer o casório, a noiva quer
muito. O noivo tenta escapar e o padre não consegue celebrar. Por fim tem de
fazer o casamento forçado pelo pai da noiva, sob ameaça de morte. Tudo acaba
bem, embora na bagunça e a festa de casamento transcorre com a dança da
quadrilha. Em Coronel Xavier Chaves/MG, na Vila Mendes, um grupo chamado
“Arraiá dos Fundo” vem desempenhando uma quadrilha com o casamento caipira com
uma extraordinária originalidade.
Nos arredores de São João
del-Rei vários grupos tem atividade relevante e podem ser vistos em diversas áreas, merecendo destaque as festas com quadrilhas na Colônia do Marçal e nas
Águas Santas. Nos anos 1970 se tornaram memoráveis os encontros de quadrilha
que aconteciam no Largo Tamandaré, sob os auspícios do saudoso Sr. Djalma
Assis.
Vinculadas aos festejos juninos e
depois também julinos, as quadrilhas são presença certeira nas festas de Santo
Antônio, São João Batista e São Pedro, e por vezes sem santo algum, mas sempre no
inverno, ao lado das fogueiras, dos enfeites de arcos de bambu, de
bandeirinhas, balões multicores, fogos de artifícios – traques, busca-pés,
bombinhas. Todo um complexo cultural se formou em torno delas e mesmo
econômico, girando fortemente recursos humanos e financeiros onde elas alcançaram
maior popularidade. Movimentam o turismo como vemos a imprensa noticiar no
nordeste brasileiro. Fabricantes de roupas, vendedores de adereços e de comidas
típicas, tocadores de sanfona, zabumba, etc., sonorizadores, gravadores de
músicas, propagandistas e até coreográfos e estilistas, encontraram nas
quadrilhas um importante meio de renda. As quadrilhas estilizadas desenvolvem a
cada ano temas próprios e absorvem novidades da cultura de massa, novos ritmos
se sobrepondo aos forrós e arrasta-pés. Novos motivos estéticos para
desenvolver os uniformes a cada ano: temas do cangaço, dos filmes de mocinho e
bandido, de novelas televisivas, etc.
Assim vemos a moda country, o cowboy
cinematográfico e até a contemporaneidade funkeira, e outros mais, dominar a
quadrilha urbana, sobretudo dos grandes centros. A quadrilha estilizada
conserva um público jovem e surge nas escolas, bairros, associações ao
contrário das quadrilhas típicas ou tradicionais, mais propriamente
comunitárias.
Umas e outras porém são um exemplo extraordinário da capacidade adaptativa do
folclore, o poder da popularização. A quadrilha francesa não existe mais por
aqui, mas a brasileira continua inabalável.
Notas e Créditos
* Texto: Ulisses Passarelli
- Outrossim aparece as grafias: “contra dança” e “contra-dança”.
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