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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Pai João

Das heranças culturais do período econômico e histórico da produção escravocrata, uma das mais arraigadas é a dos "negros velhos". Com esse nome passou para a cultura popular a imagem do africano ou seu descendente, já idoso, trazendo no corpo os estigmas dos castigos das senzalas, as cicatrizes, o andar trôpego, o olhar desconfiado, a fala engrolada mesclando a linguagem popular com palavras dialetais; imensa sabedoria, inteligência, calma para alcançar os objetivos. Pertinaz, goza também da fama de curandeiro, sabedor dos mistérios espirituais, grande devoto do rosário, senhor absoluto dos congados e folias.

Este estereótipo passível de mais qualificativos, goza de tremendo respeito nos meios populares e é sempre muito querido, não raro tratado carinhosamente pelo cognome de "vô" ou "vovô".

Muitas são as estórias que lhes rodeiam e tematizam. Algumas singelas revelam o sofrimento dos escravos; outras, pendem a revelar a perspicácia em vencer obstáculos.

Neste contexto folclórico que ora se aborda, as questões racistas e discriminadoras felizmente passam longe. O conteúdo valoriza a sua contribuição étnica, cultural, humana, religiosa, social e moral.

Não é raro que estes personagens venham com o nome de "pai", que tal como o de avô, já citado, denotam carinho, proximidade, confiança, parentesco, proteção, filiação, ligação, sintonia.

Dentre tantos nomes um dos mais populares dentre os chamados negros velhos é o de Pai João, tema deste post. Há pelo menos quatro sentidos para a denominação em foco: 01- guia, entidade espiritual; 02- personagem de algumas queimas de judas; 03- personagem de certas folias de Reis; 04- personagem fictício de uma série de contos populares. Passemos em rápida revista cada um deles.

01- Em alguns terreiros de umbanda, Pai João é o nome de diversas entidades espirituais da chamada Linha Africana, que vem acrescidos de qualificativos de identificação: Pai João de Angola, Pai João do Congo, ... de Minas, da Mata, da Calunga, Serrador, do Cruzeiro, etc. Vem aos terreiros incorporar nos médiuns e exercer trabalhos espirituais em favor dos filhos de fé. Mas ora não é objetivo traçado enveredar por esse viés (*).

02- Apenas de passagem é mister recordar que existe também um personagem  humano cômico, mascarado, espécie de guardião da Chácara do Judas e do próprio boneco. Veste-se com roupas velhas, rasgadas, remendadas, puídas, do avesso, alpercatas ou descalço, botinas em frangalhos, chapéu de palha, máscara na cara, relho na mão. Pai João impede que as crianças invadam a chácara e roubem as prendas do Judas, antes do boneco estourar. Uma vez estourado pelas bombas, libera à agitação da petizada, que pega todos os pertences do Judas. Pai João aborda os presentes, falando com voz disfarçada e cavernosa, pede dinheiro, bebida, cigarro. Para os automóveis e com a desculpa de angariar algum dinheiro, faz-se de guarda de trânsito, inspecionando as condições do veículo e pedindo para ver os documentos, fazendo sempre comentários jocosos. Por vezes surgem dois ou três destes mascarados na festa da queima do boneco. Costume hoje raríssimo só encontra refúgio em pouquíssimas localidades rurais. Ainda é tradicional no arraial do Glória (Ritápolis) e também houve em São João del-Rei, cidade e no distrito de São Miguel do Cajuru. Nesta acepção o Pai João encontra par nos “caboclos”, mascarados que cercam o Judas no Alto Oeste Potiguar (Major Sales), e os “caretas” do sertão cearence central, Piauí e Tocantins.

03- Pai João é ou era ainda outro personagem mascarados que acompanhava as folias de Reis da zona rural, compondo com o palhaço (bastião) e a catirina, um animado trio de bufões que tramavam os diálogos e recitativos com o anfitrião que recebia o grupo. Como tal foi conhecido desde a região das Vertentes ao sul mineiro e daí na área serrana limítrofe do Rio e São Paulo.

04- Por fim nos contos populares, Pai João é um nome tradicional e indefinido para designar qualquer africano ou seu descendente, idoso via de regra, envolvido na narrativa. As estórias de escravos ou forros “Pai Joões” cheios de sabedoria, força religiosa, calma, malícia, bondade, humor, tudo amalgamado num único personagem são tradicionais e difundidas no país, formando mesmo um ciclo temático dentro da literatura oral: 
“Acorda Pai João, 
levanta Mãe Maria; 
pra tomá café, 
que já raiou o dia!” 
(Catupé,Lavras, 2004.
Canto de congado na chegada ao local onde se serve o desjejum.) 

Um exemplar de Pai João tematizando um conto popular colhi em 1997 do saudoso José Cândido de Salles ("Zé Cristino Boiadeiro"), morador de Santa Cruz de Minas, mas natural da zona rural de Antônio Carlos. Nesta estória de delicioso sabor popular Pai João se posta como adivinho e por pouco se livra de uma terrível encrenca. Ei-lo:

Cachimbo de escravo. Caquende (São João del-Rei/MG). (**)

Cachimbos de escravos. Três Praias (São João del-Rei/MG). (**)

Pai João vivia com a Mãe Maria e juntos tinham muitos filhos pequenos. Foi um tempo que ele ficava só encabulado num canto, pensativo, não agia. Trabalhava nada. Parece que tinha desanimado de lutar pela vida. Ela, cheia de preocupações, alertava o tempo todo:

_ Pai João, Pai João... vai caçar modo de trabalhar pra sustentar nossos filhos que os mantimentos tão acabando e agente passa falta!

Foi um dia que Pai João respondeu:

_ Vocês pensam que eu tô atoa? Tô não. Estou trabalhando muito aqui, óh! (apontando para a cabeça). Tô botando a cachola pra trabalhar que Pai João agora vai fazer adivinhação.
_ O quê?! Adivinhar? Você... Pai João, Pai João... cuidado! Que essa história de adivinhação vai dar em merda de cavalo preto!
_ Pai João vai adivinhar sim, você vai ver. Dai vou ganhar dinheiro.
_ Pai João, Pai João... a porca quando não tem o rabo comprido é rabicha! 

Com aquelas curiosas expressões Mãe Maria sabiamente alertava que adivinhar ele não tinha capacidade e poderia colocá-lo em encrencas. Não ia dar certo. Acabaria mal.

Mas não lhe deu ouvidos. Perto dali era um pouso movimentado de tropas que levavam a produção dos campos para a corte. Pai João começou a agir. Ficou o dia todo vendo a movimentação e se achegou aos tropeiros, ganhou confiança. De ouvidos atentos ouviu eles conversarem que tinham de entregar aquele grande carregamento urgente no dia seguinte, sob pena de severo castigo e prejuízo, fizesse chuva ou sol. Esperou eles dormirem e pôs seu plano em ação.

Correu em casa buscou um cincerro[1] e tirando no mato um pedaço de cipó, com ele amarrou-o ao pescoço da madrinha[2] e saiu juntando os animais cargueiros do pasto vizinho ao pouso para bem longe. Depois se recolheu.

Com a barra do dia apontando, logo um tropeiro deu o alerta que os animais tinham sumido. A agitação foi grande e não faltaram comentários sobre os castigos que o rei lhes daria pelo atraso da entrega.

Pai João já estava por ali.  Ficou esperando a hora certa até que soltou a sugestão, que era capaz de adivinhar onde a tropa estava. Os tropeiros se assanharam. Mas ele se fez de difícil e os homens lhe ofereceram recompensas: uma boa porção de cada gênero que eles iam carregando. 

Pai João falou assim:

_ Vocês lá vão levando uns rolos de fumo, né? Dá um pedaço pra nêgo véio pitá [3]...

Calmamente, picou o fumo, esmigalhou na palma da mão, carregou o fornilho do cachimbinho feito de toco de raiz de araçá do campo[4], fez que estava concentrando... Os tropeiros desesperados todos olhando para ele.

_ Vocês põe sentido no rumo que a fumaça vai pender. [5]

E de propósito baforou no rumo que tinha escondido os animais, na reta de uma grota erma, para adiante de um espigão.

Juntaram todos para lá. Pai João pois condição:

_ Nêgo véio tá cansado, não aguenta andar longe. Precisa de montaria.
_ Mas Pai João, todas sumiram...
_ Sozinho vocês não acham.

Foram agoniados pela redondeza e alugaram um animal para ele montar.

Saíram por ali fora, rompendo o saivá[6]. Depois de muito andar, eles já iam desistindo, quando Pai João, ao sopé do morro detrás do qual tinha soltado a tropa, falou:

_ Chegou.
_ Mas não vemos nada, Pai João.
_ Mas Pai João vê. Sobe no morro e olha pro lado de lá que vocês acha.

E lá estavam. Ficaram alegres, elogiaram Pai João, deram parabéns. De volta, como prometido deram-lhe de tudo um bom tanto e foram embora de viagem. Ele chegou em casa com toda aquela comida e abasteceu a despensa para muito tempo, falando que foi através de seu serviço de adivinhação. Mãe Maria ficou satisfeita com o suprimento mas não deixou de alertar de novo:

_ Pai João, Pai João... essas adivinhação ainda vai dar em merda de cavalo preto! A porca quando não tem o rabo comprido é rabicha!

O caso é que a fama dele de adivinho esparramou. E um dia, no castelo, três garçons roubaram um tesouro. O rei e a rainha muito apegados à sua fortuna desconfiaram de Deus e o mundo[7], de menos dos três que tinham muita confiança. Começaram um grande interrogatório e até judiaram de estrangeiros que passavam por ali, fazendo torturas que visavam a confissão.

Foi aí que alguém se lembrou das habilidades do africano. Ele seria capaz de adivinhar onde estava a riqueza roubada. O rei mandou um criado lhe chamar sob pena de morte.

_ Eu bem que te avisei Pai João... (disse Mãe Maria).

Diante das majestades saiu essa ordem da boca real:

_ Você tem três dias para me dizer onde está o tesouro. Se adivinhar te dou uma parte dele e você fica rico pro resto da vida; se não, vai pra forca.

Prendeu o adivinho num porão isolado de tudo e de todos, para não interferir na sua concentração e mandou os garçons levarem para ele comida e água à vontade e com fartura. No fim do primeiro dia, depois da janta, o garçom foi levando um bule com café quente e ao entregar, Pai João exclamou:

_ É... já foi um, só faltam dois!

Se referia aos dias do prazo para morrer pois não sabia adivinhar coisa nenhuma. Mas o garçom entendeu que ele já tinha adivinhado o furto: o um seria ele próprio, ou seja teria adivinhado um dos ladrões. Ficou com muito medo e contou para os outros, pois achava que Pai João tinha mesmo esse poder.

No segundo dia foi o mesmo processo. Na hora do café antes de dormir ele...

_ É... já foram dois, só falta um!

Estava com medo pois faltava um dia para sua execução. Os garçons com mais medo ainda se juntaram e chegaram à conclusão, que, se ele já tinha descoberto dois facilmente, descobriria o terceiro e resolveram se confessar a Pai João. Foram os três ao porão:

_ fomos nós Pai João que roubamos o tesouro mas pedimos sua ajuda senão o rei mata agente na hora. Óh, temos umas economias aqui que agente tem juntado do nosso trabalho de garçom. É tudo seu se não contar que foi agente.
_ Mas e o tesouro, onde está? Retrucou Pai João.
_ Agente escondeu mas vamos aproveitar a madrugada para por no lugar de novo. Temos liberdade e confiança para entrar em qualquer lugar.
_ Então tá certo.

Assim foi feito. Pai João, vencido o prazo e já tranquilo, foi levado à presença do trono.

_ Seu prazo venceu, disse o Rei. Onde está meu tesouro?
_ Uai, tá no lugar seu Rei.
_ Está brincado comigo?
_ Não senhor. Essa é a adivinhação de Pai João. O tesouro voltou pro lugar...

Saiu às pressas para conferir e voltou todo alegre, deu os parabéns a ele, elogiou. Mas como gostou das habilidades do adivinho, lhe impôs um novo desafio, agora por pura diversão. Cochichou no ouvido de um servo para soltar suas montarias no pasto e reservar no piquete um animal predileto, o que mais gostava, um cavalo de lustrosa pelagem preta.

_ Pai João: tenho muitos cavalos. Soltei tudo no pasto, só reservei um preso, meu preferido. Que cor que ele é? Se adivinhar aumento sua riqueza, senão você não volta mais pra sua casa.

Ele baixou a cabeça, entristeceu o semblante, se viu em apuros. Como não tinha saída, lembrou de sua esposa:

_ É... bem me disse Mãe Maria que daria em merda de cavalo preto...
_ Isso mesmo Pai João! Parabéns!!! O cavalo é preto.

A corte toda o aplaudiu. A rainha, muito encrenqueira, para não ficar para trás, chamou também sua ama e fez o mesmo jogo, agora prendendo uma leitoa nabuca[8] e propôs o mesmo a Pai João: aumentar a recompensa ou a prisão.

Caiu ele noutra agonia e sem ter saída ...

_ É... bem me disse Mãe Maria que a porca quando não tem o rabo comprido é rabicha...
_ Isso mesmo Pai João! Adivinhou! Ela não tem rabo, é cotó.

E assim, aclamado, aplaudido, respeitado, Pai João voltou cheio de muita riqueza e quando Mãe Maria perguntou o que ia fazer com tanto dinheiro, respondeu:

_ Pai João vai formar os filhos para advogado para defender Pai João ...

 E nunca mais mexeu com adivinhação.


Pai João em argila. 09/10/2016.
São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG)

Pai João em madeira. 09/10/2016.
São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG) 

Notas e Créditos 

* Um fato digno de nota observamos no distrito de São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei) onde algumas pessoas a rigor católicas, conservam em suas casas, em geral na estante da sala entre objetos comuns, uma imagem artesanal de negro velho típico da cultura popular a que chamam indistintamente de "pai joão". Não é um gongá. A aparência é de um simples bibelô. Dizem: "é bom ter um pai joão em casa. Espanta os males..."


** Obs.: os cachimbos destas duas fotos foram encontrados em cascalheiras de antigas lavras de ouro por Luis Antônio Sacramento Miranda. São peças artesanais em barro, preservando apenas o fornilho (falta o pito). Mesmo que não se possa historicamente provar que pertenceram a escravos, na cultura popular, cachimbos deste tipo quando porventura são vistos são imediatamente rotulados de "cachimbo de escravo". 

*** Texto e desenhos de cachimbos: Ulisses Passarelli  

**** Fotografias: Iago C.S. Passarelli (as fotografias foram acrescidas após a edição desta postagem). 



[1] - Cincerro: sineta metálica, em geral de bronze, que se amarra no pescoço dos animais para facilitar a localização no pastoreio e para guiar outros animais como o guia do rebanho.
[2] - Madrinha: a guia do rebanho, quase sempre uma égua muito mansa que os outros animais sempre acompanham a direção.
[3] - Pitar: fumar.
[4] - Araçá: Psidium, arbusto da família das mirtáceas. A crença popular atribui à sua raiz misteriosos poderes sobrenaturais que afastam males, daí ser usado para confecção de cachimbos artesanais. Um verso de congado alude a essa madeira: “Casca de buta, / raiz de araçá, / sai do caminho / que eu quero passá!” (Capitão Luís Santana, Bairro São Dimas, São João del-Rei / MG, 1996)
[5] - Prática divinatória tradicional: a fumaça do cigarro, cachimbo, charuto ou fogueira ritual durante a benzeção ou cerimônia vira-se no ar apontando a direção do que se procura e motivou o rito. No norte mineiro, vale do São Francisco, corre que se a fumaça da fogueira de São João direcionar-se rio abaixo indica ano com chuvas regulares, se for rio acima (região da nascente ou cabeceira), muita chuva, se subir verticalmente, ano seco.
[6] - Saivá: matagal, terreno inculto, pasto sujo de arvoredos e espinhos, densamente vegetado, de passagem difícil. O mesmo que sarandi e restinga (neste sentido exclusivo. Não confundir com a vegetação típica de restinga, que é litorânea).
[7] - “De Deus e o mundo” – expressão popular de amplitude; todos, qualquer pessoa.
[8] - Nabuca – sem cauda ou de cauda excepcionalmente curta. O mesmo que cotó, sura, suruca ou rabicha.

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