Este estereótipo passível de mais qualificativos, goza de tremendo respeito nos meios populares e é sempre muito querido, não raro tratado carinhosamente pelo cognome de "vô" ou "vovô".
Muitas são as estórias que lhes rodeiam e tematizam. Algumas singelas revelam o sofrimento dos escravos; outras, pendem a revelar a perspicácia em vencer obstáculos.
Neste contexto folclórico que ora se aborda, as questões racistas e discriminadoras felizmente passam longe. O conteúdo valoriza a sua contribuição étnica, cultural, humana, religiosa, social e moral.
Não é raro que estes personagens venham com o nome de "pai", que tal como o de avô, já citado, denotam carinho, proximidade, confiança, parentesco, proteção, filiação, ligação, sintonia.
Dentre tantos nomes um dos mais populares dentre os chamados negros velhos é o de Pai João, tema deste post. Há pelo menos quatro sentidos para a denominação em foco: 01- guia, entidade espiritual; 02- personagem de algumas queimas de judas; 03- personagem de certas folias de Reis; 04- personagem fictício de uma série de contos populares. Passemos em rápida revista cada um deles.
01- Em alguns terreiros de umbanda, Pai João é o nome de diversas entidades espirituais da chamada Linha Africana, que vem acrescidos de qualificativos de identificação: Pai João de Angola, Pai João do Congo, ... de Minas, da Mata, da Calunga, Serrador, do Cruzeiro, etc. Vem aos terreiros incorporar nos médiuns e exercer trabalhos espirituais em favor dos filhos de fé. Mas ora não é objetivo traçado enveredar por esse viés (*).
02- Apenas de passagem é mister recordar que existe também um personagem humano cômico, mascarado, espécie de guardião da Chácara do Judas e do próprio boneco. Veste-se com roupas velhas, rasgadas, remendadas, puídas, do avesso, alpercatas ou descalço, botinas em frangalhos, chapéu de palha, máscara na cara, relho na mão. Pai João impede que as crianças invadam a chácara e roubem as prendas do Judas, antes do boneco estourar. Uma vez estourado pelas bombas, libera à agitação da petizada, que pega todos os pertences do Judas. Pai João aborda os presentes, falando com voz disfarçada e cavernosa, pede dinheiro, bebida, cigarro. Para os automóveis e com a desculpa de angariar algum dinheiro, faz-se de guarda de trânsito, inspecionando as condições do veículo e pedindo para ver os documentos, fazendo sempre comentários jocosos. Por vezes surgem dois ou três destes mascarados na festa da queima do boneco. Costume hoje raríssimo só encontra refúgio em pouquíssimas localidades rurais. Ainda é tradicional no arraial do Glória (Ritápolis) e também houve em São João del-Rei, cidade e no distrito de São Miguel do Cajuru. Nesta acepção o Pai João encontra par nos “caboclos”, mascarados que cercam o Judas no Alto Oeste Potiguar (Major Sales), e os “caretas” do sertão cearence central, Piauí e Tocantins.
03- Pai João é ou era ainda outro personagem mascarados que acompanhava as folias de Reis da zona rural, compondo com o palhaço (bastião) e a catirina, um animado trio de bufões que tramavam os diálogos e recitativos com o anfitrião que recebia o grupo. Como tal foi conhecido desde a região das Vertentes ao sul mineiro e daí na área serrana limítrofe do Rio e São Paulo.
04- Por fim nos contos populares, Pai João é um nome tradicional e indefinido para designar qualquer africano ou seu descendente, idoso via de regra, envolvido na narrativa. As estórias de escravos ou forros “Pai Joões” cheios de sabedoria, força religiosa, calma, malícia, bondade, humor, tudo amalgamado num único personagem são tradicionais e difundidas no país, formando mesmo um ciclo temático dentro da literatura oral:
Canto de congado na chegada ao local onde se serve o desjejum.)
Um exemplar de Pai João tematizando um conto popular colhi em 1997 do saudoso José Cândido de Salles ("Zé Cristino Boiadeiro"), morador de Santa Cruz de Minas, mas natural da zona rural de Antônio Carlos. Nesta estória de delicioso sabor popular Pai João se posta como adivinho e por pouco se livra de uma terrível encrenca. Ei-lo:
Cachimbo de escravo. Caquende (São João del-Rei/MG). (**) |
Cachimbos de escravos. Três Praias (São João del-Rei/MG). (**) |
Pai João vivia com a Mãe Maria e juntos tinham muitos filhos pequenos. Foi um tempo que ele ficava só encabulado num canto, pensativo, não agia. Trabalhava nada. Parece que tinha desanimado de lutar pela vida. Ela, cheia de preocupações, alertava o tempo todo:
Com aquelas curiosas expressões Mãe Maria sabiamente alertava que adivinhar ele não tinha capacidade e poderia colocá-lo em encrencas. Não ia dar certo. Acabaria mal.
Mas não lhe deu ouvidos. Perto dali era um pouso movimentado de tropas que levavam a produção dos campos para a corte. Pai João começou a agir. Ficou o dia todo vendo a movimentação e se achegou aos tropeiros, ganhou confiança. De ouvidos atentos ouviu eles conversarem que tinham de entregar aquele grande carregamento urgente no dia seguinte, sob pena de severo castigo e prejuízo, fizesse chuva ou sol. Esperou eles dormirem e pôs seu plano em ação.
Correu em casa buscou um cincerro[1] e tirando no mato um pedaço de cipó, com ele amarrou-o ao pescoço da madrinha[2] e saiu juntando os animais cargueiros do pasto vizinho ao pouso para bem longe. Depois se recolheu.
Com a barra do dia apontando, logo um tropeiro deu o alerta que os animais tinham sumido. A agitação foi grande e não faltaram comentários sobre os castigos que o rei lhes daria pelo atraso da entrega.
Pai João já estava por ali. Ficou esperando a hora certa até que soltou a sugestão, que era capaz de adivinhar onde a tropa estava. Os tropeiros se assanharam. Mas ele se fez de difícil e os homens lhe ofereceram recompensas: uma boa porção de cada gênero que eles iam carregando.
Pai João falou assim:
Ele baixou a cabeça, entristeceu o semblante, se viu em apuros. Como não tinha saída, lembrou de sua esposa:
E assim, aclamado, aplaudido, respeitado, Pai João voltou cheio de muita riqueza e quando Mãe Maria perguntou o que ia fazer com tanto dinheiro, respondeu:
Pai João em argila. 09/10/2016. São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG) |
Pai João em madeira. 09/10/2016. São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG) |
Notas e Créditos
* Um fato digno de nota observamos no distrito de São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei) onde algumas pessoas a rigor católicas, conservam em suas casas, em geral na estante da sala entre objetos comuns, uma imagem artesanal de negro velho típico da cultura popular a que chamam indistintamente de "pai joão". Não é um gongá. A aparência é de um simples bibelô. Dizem: "é bom ter um pai joão em casa. Espanta os males..."
** Obs.: os cachimbos destas duas fotos foram encontrados em cascalheiras de antigas lavras de ouro por Luis Antônio Sacramento Miranda. São peças artesanais em barro, preservando apenas o fornilho (falta o pito). Mesmo que não se possa historicamente provar que pertenceram a escravos, na cultura popular, cachimbos deste tipo quando porventura são vistos são imediatamente rotulados de "cachimbo de escravo".
*** Texto e desenhos de cachimbos: Ulisses Passarelli
**** Fotografias: Iago C.S. Passarelli (as fotografias foram acrescidas após a edição desta postagem). |
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