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Bem vindo!Esta página foi criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas, tampouco acadêmicas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Dois Causos de Matosinhos

(Oferecimento: com gratidão a José Cláudio Henriques)  

           1- LUGAR ONDE O CACHORRO FALOU 

Dizem que fica na beira do Córrego da Água Limpa, limite do Grande Matosinhos. Logo se vê que foi um fato passado há muito tempo, quando suas águas ainda eram limpas... Lá pras bandas do lugar chamado Ouro Preto, onde os viajantes John Luccock e Robert Walsh comentaram no século XIX, de um velho dique – benfeitoria dos serviços de mineração de ouro – rompido pela força de uma enxurrada. Ali, na Fazenda Velha, diz que morou um rico senhor, dos mais miseráveis que já se viu.

      O ganancioso fazendeiro gostava de uma caçada e tinha seu cachorrinho fiel, que sofria de uma fome crônica, visível na sua magreza. Era pele e osso, como se diz.

      Certa feita o sovina caçou gordas codornas – seu prato predileto – e mandou uma escravizada cozinheira prepará-las. Mãe Maria as fazia como ninguém. Seu tempero dava água na boca. Serviu-lhe. Se lambuzava no comer, deliciando-se com o pitéu. E o pobre cão de caça, varado de fome, debaixo da mesa, babando, língua de fora, ofegante, olhos estatelados, rosnava de fome como que a implorar uma migalha, que o garrafinha recusava lhe dar. Não fosse Mãe Maria que vez por outra às escondidas lhe dava algo, já teria morrido à míngua. Nem sequer os ossos reservava ao cachorro. Guardava-os para torrar, moer e fazer farinha, que punha sobre o feijão. E o cão, vendo que nem sequer lhe restavam os ossos, arranjou voz e falou: “_ ô patrão: mas nem os ossos?”

      O homem desmaiou de susto. Acudiram. Ao acordar tratou fartamente do cão. Dizem que depois daquela lição inesperada melhorou de caráter, deixando de ser tão munheca para beneficiar os necessitados. E o local ficou conhecido como "O lugar onde o cachorro falou".

Confluência do Córrego do Cala-boca (direita da foto) no Ribeirão da Água Limpa (esquerda da foto), 
em cujas proximidades teria se passado a estória acima narrada. 
São João del-Rei/MG.  

     2 - O CALA-BOCA

Este é o curioso nome de um córrego que também limita o Grande Matosinhos. Deságua no Ribeirão da Água Limpa. Sua história ou estória está ligada a um triste assassinato. Foi nos idos da escravidão. Havia uma grande fazenda por lá, com muitos escravizados e dentre eles uma mulher de uma beleza primorosa. O senhor tinha por ela uma espécie de capricho, um xodó, desejando-a e abusava sexualmente dela, à força e sob ameaças.

O caso se arrastava há bom tempo, até que um dia a esposa do fazendeiro – a sinhá – descobriu a safadeza do marido, por meio da candonga de uma preta que não gostava da tal mulher preferida. Revoltada, não pensou duas vezes. Logo que o marido saiu a cavalo para resolver um negócio, chamou um feitor – mal como o diabo – mandou que ele levasse a escravizada para um grotão bem deserto e lá matasse a infeliz. E deu-lhe ordem de silêncio absoluto e que voltasse diante dela para informar o resultado. Assim foi feito.

A sinhá satisfeita e vingada diante do feitor, determinou-lhe que calasse a boca, sem jamais contar o fato. Do contrário, daria um jeito de eliminá-lo também.

Voltou o marido e já maquinando no caminho seus desejos secretos, foi logo à procura de satisfazer-se com a escravizada, como de costume. Não a encontrou. Mandou capatazes e feitores procurá-la. Viram os urubus na capoeira e lá acharam seu corpo. Forçou explicações com os empregados e notando o nervosismo do feitor assassino, arrancou-lhe na marra a confissão. Ele clamava que obedecera a uma ordem da patroa, que pedira para ele calar a boca sob pena de morte. Duplamente revoltado, contam, o sinhô deu uma surra na sinhá, ajuntou os seus pertences, pôs sobre um animal cargueiro e mandou devolver ao sogro. E como na briga de dois sempre lucra um terceiro, satanás foi quem ganhou... quatro almas: a do casal, a do feitor e a da delatora fofoqueira.

Placa na BR-265 nos arredores de São João del-Rei/MG. 

Créditos

Pesquisa, texto e fotografias (2013): Ulisses Passarelli.
Informante: Aluísio dos Santos (São João del-Rei/MG), 1999. 

Notas 

I- Pequeno glossário de termos populares vigentes em São João del-Rei e aproveitados no texto: 

- Candonga: africanismo banto, que significa fofoca, intriga, futrica, fuxico, mexerico, calúnia. 
- Capoeira: pequena mata. Floresta minúscula.
- Garrafinha: sovina, usurário, mesquinho. 
- Munheca: o mesmo que garrafinha. “Munheca de samambaia”.
- Pele e osso: expressão indicativa de extrema caquexia. Magreza.
- Urubu: abutre, ave catartídea que devora cadáveres. Carniceiro.
- Varado: "magro como se fosse uma vara"; magérrimo ou apenas com muita fome.
Na marra: forçadamente; sob imposição. 
Mal como o diabo: expressão que intensifica o adjetivo da maldade; muito mal; ruim em demasia. 

II-  Por uma gentileza do pesquisador e escritor são-joanense José Cláudio Henriques, este texto foi originalmente publicado no jornal: O Grande Matosinhos, n.13, nov.2000, São João del-Rei, ASMAT, p.2.

III- as notas de rodapé, as fotografias e o glossário não fazem parte da publicação original em jornal. 

IV- Sobre a rede fluvial do Bairro Matosinhos, leia também: ÁGUAS FLUVIAIS  

V- Revisão: 04/04/2025.

                                              Referências bibliográficas

LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes Meridionais do Brasil: 1808-1818. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.

WALSH, Robert. Notícias do Brasil em 1829-1829. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1985.  

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