O tempo das festas das crianças
continua... mas outubro é mesmo conhecido na tradição católica como o período
dedicado ao santo rosário. Por toda parte nas comunidades religiosas as festas
marianas sob esta invocação acontecem fervorosamente nesta época, muitas vezes enriquecidas
pelos congados.
Nossa Senhora do Rosário, São João del-Rei/MG. 2011.
A origem desta devoção remonta aos monastérios medievais da Europa, quando havia o costume de marcar o
número de orações por pedrinhas e depois flores, depositadas na imagem de
Maria, em especial rosas, com estas encordoadas para compor uma guirlanda, daí
o termo rosário, com sentido plural, coletivo: conjunto, coleção de rosas.
Está claro que a dificuldade de
semelhante composição impôs logo mudanças mas o nome ficou. Foram substituídas as
rosas por sementes duradouras e contas, encadeadas em sequências padronizadas,
arrematadas pela cruz do Senhor. O rosário era então o objeto e também o tipo de oração nele executado, além do nome de uma invocação da Virgem.
O rosário consiste num conjunto de 150 contas encadeadas e equidistantes, correspondentes a igual número de ave-marias que se deve rezar. A cada 10 unidades o espaçamento aumenta para acondicionar uma conta extra, do mesmo tamanho ou maior, mas sempre mais afastada, correspondente ao pai-nosso, totalizando 15. Cada conjunto de 1 pai-nosso e 10 ave-marias é chamado de mistério. Portanto o rosário tem 15 mistérios. Fechada a sequência, impõe-se uma medalha ou elo de ligação correspondente a uma salve-rainha. Daí pende uma pequena parte de extremidade livre, terminada em cruz, contendo 1 conta isolada, valendo o credo e mais 3 próximas, correspondendo a mais três ave-marias extras, geralmente em louvor à Santíssima Trindade. A reza deve incluir reflexões bíblicas dos mistérios do nascimento, vida e paixão de Cristo, contemplando seus frutos. Os mistérios são classificados em gozosos, gloriosos, dolorosos e luminosos, estes, recentemente incluídos pelo Papa João Paulo II.
Assim nos chegou o rosário, após muitas
gerações, pelo trabalho missionário das irmandades religiosas, sobretudo os dominicanos que mais se distinguiram
na difusão dos valores do rosário, tendo como figuras emblemáticas São Domingos
de Gusmão e Santa Catarina de Siena (ou Sena). Ele, pregador do Senhor contra heresias, tendo como símbolo um cão mordendo uma tocha acesa; ela, tendo recebido um novo coração, ardente de amor por Jesus.
Santa Catarina de Siena e São Domingos de Gusmão,
na Procissão do Rosário de São João del-Rei, 1999.
Uma das iconografias mais
conhecidas desta invocação mostra a Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo,
ambos entregando o rosário (objeto de oração), a São Domingos e a Santa
Catarina. Esta representação ficou
conhecida como “Nossa Senhora do Rosário de Pompéia” e ainda é muito difundida
sob a forma de quadros nas casas de devotos, emoldurada nos mastros festivos,
esvoaçante nas bandeiras dos congados.Seria originária de uma aparição
de Nossa Senhora ao pecador Bártolo Longo, nas ruínas da cidade de Pompéia,
destruída pelo Vulcão Vesúvio na Itália.
Nossa Senhora do Rosário (de Pompéia) numa bandeira de congado de São João del-Rei.
Catupé do capitão Raimundo Camilo, 1999. Bairro São Dimas.
Em São João del-Rei/MG ainda hoje
a procissão de Nossa Senhora do Rosário quando vem às ruas do Centro Histórico
traz os andores da Virgem, de São Domingos e de Santa Catarina. Na antiga Igreja do Rosário desta cidade houve desde a primeira metade do século XX um desligamento das tradições congadeiras, que sobreviveram porém nos bairros periféricos e distritos. Mas as atividades religiosas no grande templo continuam com vigor e o mês de outubro realmente se processa como Mês do Rosário, com missas diárias e rezas do terço (terça parte do rosário), diante de Jesus Sacramentado, seguido de bênção do Santíssimo Sacramento. É mister ressaltar que a igreja em questão foi edificada em 1719, sendo a mais antiga das ainda existentes em São João del-Rei e a sua confraria remonta a 1708, ainda ativa, sendo possivelmente a mais antiga de Minas Gerais. Dentro das festividades de outubro também se dedica um dia para Nossa Senhora dos Remédios, que possui uma antiga imagem naquela igreja. Para este ano o dia maior do rosário está programado para 27 de outubro, com missa solene às 8 horas e 30 minutos, seguida de terço; 18 horas, missa na intenção dos mesários, ex-mesários e benfeitores da Venerável Confraria e profissão de novos irmãos. Segue-se a procissão e à sua chegada o Te-Deum Laudamus e Bênção do Santíssimo Sacramento.
Quanto à questão da data de outubro,
prende-se a um fato histórico. No auge das guerras entre católicos e
turcos aconteceu a batalha naval de Lepanto, em 1571, momento decisivo para o
destino da contenda. Os cristãos estavam em desvantagem numérica e a derrota se
desenhava clara. Puseram-se a rezar insistentemente o rosário e alcançaram inesperadamente a vitória. O Papa Pio V estabeleceu a memória festiva daquela luta como consagração a Nossa Senhora das Vitórias, mas pouco tempo depois, já o Papa Gregório XIII reconheceu que esta vitória foi devida ao rosário e declarou o dia da Batalha
de Lepanto, 07 de outubro, como o dia de Nossa Senhora do Rosário. Posteriormente, no século XIX, a extensão dos festejos abraçou o mês todo que ficou conhecido como Mês do
Rosário, por instituição do Papa Leão XIII, em 1883.
Iniciados os trabalhos
missionários de religiosos católicos ainda na África, nos primórdios da escravidão
negra, já a devoção ao rosário foi plantada pelos cristãos. Na ânsia aculturativa sob o pretexto da catequese, buscava-se similitudes que pudessem
aproximar ou justificar uma nova expressão religiosa. O costume africano do uso
de colares sagrados foi certamente um forte elo de ligação à devoção ao rosário
em detrimento de outras invocações marianas.
No imenso setentrião arenoso, sob
influência muçulmana, estavam os aguerridos “malês”, designação genérica dada
nos tempos do tráfico negreiro aos africanos islamizados do norte africano, de
diversas etnias. Os malês usavam o tecebá, muito parecido ao rosário cristão,
composto por noventa e nove contas terminadas por uma esfera grande. No centro
do continente pátrio da espécie humana, estavam os chamados “sudaneses” ou “iorubas”,
detentores de fortíssimas expressões religiosas e ao sul os “bantos”, uns e
outros com suas guias, colares de sementes, invocativos de suas entidades. A
conversão pretendida usou como ponte o paralelismo entre os colares sagrados
dos cristãos e os nativos da África, digamos assim, querendo absorver as guias
e tecebás em detrimento do rosário.
Algumas controvérsias não plenamente esclarecidas apontam para a devoção ao rosário plantada apenas entre os bantos. É fato que devemos a eles as tradições dos congados em toda sua pujança.
Embora isto tenha começado no
próprio seio africano e se intensificado no Novo Mundo, as coisas não saíram
bem como planejadas. A força opressiva impôs novas expressões religiosas ao
escravo mas este embora as tenha absorvido e praticado não abandonou sua raiz e
manteve velado sob o sincretismo muitas de suas devoções pátrias.
Constituindo um complexo cultural
notável, a devoção ao rosário se aliou e estendeu a outros santos que nos
tempos do cativeiro figuraram como protetores dos escravos: Santa Efigênia, São
Benedito, Santo Elesbão e outras invocações de Maria correlatas – Nossa Senhora
do Amparo, Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora Aparecida.
Os elementos litúrgicos
envolvidos fogem ao interesse primário das diretrizes deste blog, não obstante
sua importância fundamental. Os aspectos culturais e da religiosidade popular
em torno do rosário são do maior interesse para os estudos antropológicos,
sociológicos e folclorísticos, passando necessariamente pela tradição dos
congados e de seus reinados com reis, rainhas e sua corte; dos festejos animados
ao largo, congregando a comunidade junto aos mastros, nas naves dos templos, em
procissão pelas ruas do interior ou em plena capital. Dotados de uma riqueza
visual, musical, social, religiosa e mitológica imensuráveis, por muitas
regiões, brasileiros de diversas procedências étnicas e mesclas culturais se
irmanam em torno do santo rosário como elemento de união, simbólico da fé
cristã, imbuídos do mesmo objetivo missionário de valorizar a negritude e a
luta pela igualdade.
O rosário é neste aspecto bem
mais que um objeto sagrado de preces ou um venerando título de Nossa Senhora:
sem deixar de sê-lo, transcende as definições típicas para se tornar uma
bandeira de lutas, um caminho evangelizador e um elemento identitário no qual, muitos se encontram desde a
mais tenra infância e nele seguem fielmente até o fim da vida. Muitas comunidades
congadeiras edificam suas famílias sob a égide do rosário e neste sentido os
versos abaixo, entoados pelo notável capitão de moçambique Luís Maurício, da
cidade Passa Tempo/MG (ano 2000), são bem ilustrativos, irradiando poesia e saber:
Sinhô rei,
eu vim trazer,
|
Sá Rainha
eu vim trazê,
|
Um recado
que Angola mandô,
|
Um recado
lá de Angola,
|
Eu não sei
se vou resistir
|
Eu não sei
se vou resistir,
|
Dar esse
recado ao sinhô...
|
Dar esse
recado à senhora...
|
|
|
Na Angola,
tá minha raiz,
|
Eu era
pequenininho
|
Foi d’Angola
que veio o meu povo,
|
Ai, o
rosário me chamou,
|
Somos filhos
de um só passarinho
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Não sabia
onde era a Igreja
|
Somos gema
do mesmo ovo...
|
Foi Mamãe,
foi que me levou!
|
|
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No
rosário, ai, eu nasci,
|
No
rosário, eu vou morrer,
|
No
rosário, eu plantei,
|
No
rosário, eu vou colher...
|
Referências Bibliográficas
GAIO SOBRINHO, Antônio. Santos negros estrangeiros. São João del-Rei: [s.n.], 1997. 153p.
MEGALE, Nilza Botelho. 112 Invocações da Virgem
Maria no Brasil: história, folclore e iconografia. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1986. 376p.
POEL, Francisco van der, Frei. Cronologia da Devoção de N.Sra. do Rosário entre os bantos na África, em Portugal e no Brasil, nos séculos XV-XVII.
Revista da Comissão Mineira de Folclore, Belo Horizonte, n.20, ag.1999. p.60-75.
Piedosas e Solenes Tradições de Nossa Terra. v.2. São João del-Rei: [s.n. ; s.d.].
Notas e Créditos
* Texto e fotografias: Ulisses Passarelli
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