As folias de Reis e similares obedecem a uma série de rituais
protocolares na chegada a uma casa. A grosso modo e independente do santo
estampado na bandeira, no geral, chegam em silêncio junto à porta da casa
visitada. A um sinal do mestre, por vezes de seu apito, irrompem os
instrumentos e logo entra a cantoria que se chama tradicionalmente de “abrição
de porta”, um pedido em versos no qual é solicitada a abertura da casa ao
proprietário, pois um santo veio visitar.
O passo seguinte caso o pedido seja atendido é o de recebimento da bandeira e elogio aos
donos da casa. Narra-se então algo sobre o santo festejado e em seu nome se
pede uma oferta. A seguir o óbolo é motivo de agradecimento cantado. A bandeira
é solicitada também por via cantada, sequenciada por pedidos de proteção ao lar
e despedidas.
É isto, em suma. Mas, eventualmente, o ritual ou a sequência de
passos, se incrementa ou abrevia, consoante a receptividade. Se a folia tiver um
palhaço os procedimentos se complexam.
Isto ocorre porque o palhaço se posta em vanguarda e como
intermediário irreverente entre visitados e visitantes, fazendo uma interlocução livre, em
verso ou prosa. Se for numa fazenda compete-lhe adiantar-se até a sede enquanto
a folia aguarda a resposta de fora. Vai então cuidando de espantar cachorro
bravo, levantar vaca deitada no caminho, tirar um galho caído. Deixa o caminho
desimpedido à folia.
Folia de Reis de Ibertioga/MG, durante a Festa do Divino em São João del-Rei (Bairro Matosinhos).
Foto: José Cláudio Henriques, 2002, gentilmente cedida para esta postagem.
Se for numa casa, logo corre a gritar aos moradores:
“Venha abrir a sua
porta
E acender a sua luz,
Quem veio lhe visitar
Os mensageiros de
Jesus!”
A posição do palhaço é de muita liberdade e as concepções
sobre seu papel ou a forma de se comportar variam de um grupo para outro. Em
certas folias o palhaço fica de fora até o mestre terminar toda a cantoria e só
então este pergunta ao dono da casa se deseja ver alguma brincadeira do palhaço
e se consente sua presença dentro da casa. Caso afirmativo é que o chama para dentro.
Algumas áreas rurais das Vertentes usavam desse sistema. Enquanto esperava não
era raro o palhaço correr pela porta dos fundos, entrar na cozinha e roubar
coisas de pouco valor, como uma réstia de cebola ou alho, algumas bananas,
abóbora ou ovo. Quando chegava sua hora de entrar em cena, mostrava o produto
do roubo e com gaiatices ia pedindo ao dono da casa: que seus filhos estão com
fome; que tem trinta e sete crianças só com a Catirina ;
que ela é uma patroa brava, etc. O palhaço é um grande pedinchão.
Numa dessas estripulias, narrou-me um saudoso folião do Elvas,
que as folias daquela área pararam de empregar o palhaço a muitos anos, porque
aconteceu um fato lamentável certa vez. Uma folia visitando uma casa daquelas
comunidades em derredor, trouxe consigo um palhaço meio abusado nas
brincadeiras. O grupo chegou num sítio no escuro da noite. O dono da casa veio
com lamparina à mão abrir a porta enquanto a esposa, com gravidez avançada
correu à cozinha para adiantar um cafezinho aos nobres visitantes. O palhaço
deu volta pelos fundos e entrou sorrateiro pela porta de trás. A mulher que não
o tinha visto ouviu o barulho de seus passos e se virou de repente. Ele deu um
grito e pulou na frente dela: “ô...
patroooa!!!”. Ela deu um grito de pavor e com a crise de susto entrou em
trabalho de parto. Desnecessário descrever a complicação de semelhante circunstância.
Noutros lugares, porém, mormente na cidade, o palhaço é o
primeiro a entrar na casa e em alta voz chega pedindo licença e avisando ao
mestre: “olha só o que eu encontrei!”, apontando para um quadro de santo na parede e então o mestre é obrigado a
cantar um louvor. Se ver um presépio armado tem por obrigação absoluta e
inquestionável se ajoelhar perante o mesmo e assim retira respeitosamente a
máscara. Se souber versificar, declama a sua loa, que pode ser simples ou
longa, mas via de regra deve conter a base da profecia messiânica até a
natividade e visita dos magos e pastores. Após isto pode se levantar e vestir a
máscara. Então o mestre canta sua embaixada laudatória e durante esta o palhaço
não pode fazer interrupções ou gracejos, só dançar de forma comedida e emitir
expressões que reforçam o sentido da cantoria, como: “olha que beleza!” ou “que
mistério tão profundo!”.
Mas se não sabe este esquema então é obrigado a uma penitência
de permanecer de joelho enquanto durar a cantoria para o presépio.
Uma brincadeira de praxe efetivada entre palhaço e anfitrião
é o da oferta inusitada e provocativa. O dono da casa presenteia o palhaço com
algo inesperado, de pouco valor, como um prego, um biscoito, uma banana, uma xícara... e pede ao
palhaço que faça um verso para agradecer, no qual deve conter uma referência
explícita àquela oferta.
Compete ao palhaço observar detalhes que poderiam passar
despercebidos ao bandeireiro no trato dispensado à bandeira pelo anfitrião. É
de costume o homem receber a bandeira com um beijo e passá-la ao ósculo dos
filhos e depois a entrega à esposa, que a leva para o quarto do casal. Quando
há visibilidade do cômodo o palhaço observa discretamente se vai amarrar algo
na bandeira, tal como dinheiro, uma nova flor (natural ou artificial), uma fita
de cetim, jogar perfume ou por um ramo de erva aromática (alecrim, manjericão,
patchouli, etc.). Então deve ter em mente o aspecto da bandeira, cada flor que
já existe para anunciar ao mestre durante o interlúdio que...
“Enfeitou nossa
bandeira,
Com uma rosa do
jardim,
Santos Reis que abençoe
para sempre, amém sem fim...”
Então o mestre cantará seu agradecimento. Se é um pouco de
perfume derramado sobre o pano da bandeira então corre ao mestre dizendo que do
céu caiu água de cheiro, e o mestre saberá manifestar seu agradecimento em
versos.
Um palhaço com gesto airoso apresenta a bandeira de uma folia de São Sebastião, no distrito de São Sebastião da Vitória, São João del-Rei/MG. Autor da foto e data não identificados. Gentilmente cedida por Roberto Batista Reis.
Para o folião é vergonhoso sair da casa sem perceber que algo
diferente foi posto na bandeira. Indica despreparo e falta de zelo com a guia
sagrada.
Sabendo desta tradição tem morador que gosta de testar a
esperteza do folião e faz provas silenciosas. Se o folião não passar por elas
dá o direito ao dono da casa reter a bandeira por tempo indeterminado, que se
diz “prender” a bandeira, e, até o folião responder a contento, não pode ir
embora.
Uma das formas mais típicas é por dinheiro na bandeira,
prendendo-o por um alfinete. Sobre este ato em especial divergem os foliões
sobre o procedimento. Há quem o faça por promessa tendo então o caráter de
ex-voto e não deve ser retirado passando a incorporar a bandeira. Neste caso o
mestre deve ser avisado. Isto acontece em várias regiões.
Cédula de R$1,00 afixada permanentemente numa bandeira de folia de Reis, junto com flores, fitas e fotografias 3 x 4 (ex-votos). Ituverava / SP, durante Encontro de Folias em Ribeirão Preto. Foto: Ulisses Passarelli, 2011.
Alguns mestres consideram que o dinheiro posto na bandeira vira enfeite da
mesma e não deve ser retirado, independente de promessa.
Já outros consideram uma profunda falta de respeito e que desencadeia um ritual
.
Neste caso o palhaço observador avisa ao mestre no ato da entrega:
“A bandeira veio de
dentro ( ou do quarto)
Com um enfeite
diferente;
O dinheiro que está
nela
Não pode seguir em
frente...”
Ou:
“Santos Reis é
milagroso,
Ele anda o mundo
inteiro,
Onde é que já se viu
Misturar santo com
dinheiro?”
O mestre entra então com uma cantoria vigorosa, quase
ofensiva, onde fala sobre o desrespeito com o santo e pede ao dono da casa que
se arrependa de seu pecado, se ajoelhe diante da bandeira, desamarre o
dinheiro, ponha no embornal (que é o lugar certo). Isto retarda um pouco o
ritual e em verdade por vezes o mestre propositalmente alonga a versalhada para
aumentar o tempo que o dono da casa deverá permanecer ajoelhado, visando um castigo penitencial ao anfitrião, como vi diversas vezes em São João del-Rei.
Resta dizer que nos casos de teste ao folião é comum o
dinheiro ser posto bem escondido, dobrado por trás de uma fita, por exemplo, ou
sob as flores, o que obriga o palhaço ou na sua falta ao bandeireiro, ter um
jogo sagaz de visão. Se a bandeira acaso não for presa e o dono liberar sem que
os foliões percebam, acreditam que dali para frente a folia desanda: perde
afinação, acontecem discussões entre os participantes, folião adoece, palhaço
passa mal, arrebenta couro da caixa ou corda do violão. Em suma: acontece um desequilíbrio místico.
Está claro, que no ato de uma visita folieira, quanto mais o
dono da casa conhece os rituais de folia, mais complexos eles serão pois as
exigências e testes do “patrão” (dono da casa) não ficam sem resposta. Em
verdade existem vários outros rituais de folia que oportunamente este blog
estará abordando em outras postagens.
* Texto: Ulisses Passarelli
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