Esta postagem é a primeira parte de um pequeno relato rascunhado a caneta esferográfica em pedaços residuais de papel, que encontrei entre meus guardados. Os rabisquei em agosto de 2008 e o novo objetivo para este blog impôs revisão e acréscimo. Dedica-se especialmente à figura do palhaço, que carrega em si uma carga imensa de simbolismos.
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Nas folias de Reis existe um personagem em geral conhecido
por “palhaço”, mas que, apesar do nome, não se confunde ou filia à arte
circense. É mera analogia pelas roupas de cores vivas, largas no corpo para
permitir a liberdade de movimentos e das brincadeiras que faz com as pessoas.
Em vez da pintura de maquiagem no rosto usa a máscara, que figura elementos
simbólicos e atávicos. De fatura artesanal, a máscara é extremamente individual.
Como uma impressão digital pode-se dizer que não existem duas iguais no universo das folias, denotando uma
riqueza artística de criação imensurável.
O palhaço de folia é uma figura ambígua. Não obstante ser
interpretada como maléfica, recita louvores e benze os doentes. Na verdade a
carga maligna que lhe é atribuída é tão somente influência das concepções
catequéticas, que lhe carimbaram o selo de demoníaco. Nada, porém, ele possui de
diabólico quando se perscruta suas origens, na análise dos gestos, ações,
palavras e funções; ou seja: seu verdadeiro âmago. É um personagem ancestral. Não
se pode julgá-lo pela mera aparência de sua máscara, cheias de barbas
desgrenhadas, de um cabelo de crina, de chifres, de dentes pontudos e
evidentes. Isto é uma aparência superficial que choca o observador carola, pois
traz à tona a palavra do missionário religioso descrevendo o capeta de cor
vermelha... O palhaço na verdade evoca o sagrado primitivo das forças naturais
que, é a figuração bestial de um princípio anímico.
Palhaços da folia distrital de São Sebastião da Vitória (São João del-Rei-MG).
O público assiste fielmente ao desempenho dos mascarados.1994.
A origem pagã se prende a rituais agrários e a ritos de
passagem da adolescência, como demonstrou sobejamente Pinelo Tiza com os caretos,
chocalheiros, máscaros, filandorras, etc., seus arquétipos ibéricos.
As roupas vermelhas, a máscara de careta, a voz cavernosa, as
estripulias fazem parte da composição figurativa de um personagem e são
elementos muito mais extrínsecos que intrínsecos, embora possam estar eivados
de simbolismos. As lambadas de seu “rêio” (relho) são purificadoras, posto que disciplinares.
Se ele carrega um ramo de espada de São Jorge (gênero Sansevieria, família
asparagaceae) ou uma espada de madeira ou uma lança é como uma arma
simbólica, que defende todo o grupo, espantando o adversário espiritual; os
chocalhos atados à cintura ou ao tornozelo tinem evocando espíritos benfazejos,
forças do bem, como as campainhas rituais (sinetas, carrilhões, adjás) e os
guizos dos moçambiqueiros (paiás, gungas, maçaquaias).
Sua passagem nas casas e sítios ajuda expurgar pragas,
doenças, maldições, espíritos perturbadores. Nesse papel de catarse o "medonho-bonito" de sua máscara se equipara às carrancas do vale do São Francisco,
que outrora podem ter tido papel de adorno como figuras de proa das barcas e hoje
são considerados amuletos no conceito popular. A cara feia espanta, afasta,
amedronta, isola.
Este post foi idealizado
curto e não permite destrinchar muito o assunto, mas seria o caso de se
aprofundar pelo conceito e significado da máscara, elemento religioso e
cultural cosmopolita, presente em muitas civilizações, desde a antiguidade
remota.
O palhaço das folias é conhecido por vários outros nomes
Brasil afora: marungo, bastião, tenente, matias, pastorinho, boneco, alferes,
saca-trapo. O nome palhaço é sem dúvidas o mais divulgado. Nem por isso goza de unanimidade, porque
entendem alguns mestres que é um nome desrespeitoso para a função religiosa que
exerce, ou seja, ele faz brincadeiras, mas não “palhaçada”.
Palhaço da folia de Ritápolis/MG conduz sua vara enfeitada e com chapinhas idiofônicas na ponta,
além da bandeira do grupo. 1996.
Nesta afirmação encontra-se a pista da verdadeira função do
palhaço: a religiosa e/ou mística. A visão dos mestres (interna) é lendária e
de uma interpretação de ordem funcional. Cada área geográfico-cultural tem sua
versão dominante. Uma das mais conhecidas narra que os palhaços representam
soldados da guarda do Rei Herodes, disfarçados, mandados para seguir a Sagrada
Família e descobrir seu paradeiro. Voltariam para avisar ao malvado monarca
onde era o local para que mandasse matar Jesus. Descobriram, mas se converteram e não retornaram, passando a acompanhar o
Menino Deus dali para frente, fazendo brincadeiras para distrair a atenção dos
judeus e romanos enquanto José e Maria fugiam para o Egito com o Messias no
colo.
Em São João del-Rei/MG, corre a crença que o palhaço é um
centurião que acompanha a bandeira, como um guardião, um soldado disfarçado que
usa de brincadeiras para dissimular sua verdadeira identidade. É o defensor da
folia e por conseguinte dos folieiros. Graças a esta concepção, é possível nesta
região que o palhaço se aproxime da bandeira, a segure, e até que seja o
próprio bandeireiro, situação inimaginável na maioria das outras regiões onde existe.
A ambiguidade está nele. É um convertido, mas o peso da perseguição
inicial ainda o faz pecador. Ser um palhaço é um ato penitencial e até mesmo
votivo. Não é mera diversão. Brincar faz parte de sua personalidade, contudo entrar
na farda e se ocultar na máscara é uma missão árdua que obedece a uma rigorosa
praxe estipulada pelo mestre de cada grupo. Algumas folias fazem um ritual de
proteção especial ao palhaço na abertura e encerramento da jornada, para vestir
e retirar a farda. Existem casos de sincretismo religioso.
Em sua chegada nas residências o palhaço é aquele que
primeiro intermedia o contato entre visitantes e visitados. Enunciando um verso
de chegada, ou apitando, ou com gritos e exclamações, alerta aos moradores
acerca da chegada da folia: “Ôôôô...pá!”
; “Óia nóis chegando aí, gente!” ; “ô, patrãozinho: prende os cachorro que
Santos Reis está chegando na sua morada!” ; “ ô nhánhá: é de vosso agrado
recebe nossa bandêra?” ; “Óia nossa chegada” ; “Dá licença, aí!!!” ; “Boa
noite, gente!”
Exemplo de versos coligidos em São João del Rei nos anos noventa:
“Santos Reis aqui chegô
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“Aqui chegou bandeira santa,
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Com a sua companhia,
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Do mártir São Sebastião,
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Procurando a bela rosa
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Nós somos seus soldados
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Para festejar seu dia!”
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Ele é o nosso capitão!”
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Assim acontece nas casas em geral. O anonimato do palhaço
leva o primeiro pedido de licença e a saudação inicial. É protocolar, antes
mesmo da bandeira ou do mestre. Se a chegada é numa fazenda é de regra que a
folia espere de fora do terreno, antes da porteira. Compete ao palhaço abri-la,
pedindo licença, e começando a gritar desde longe da sede, vai até a moradia
chamando pelo dono da casa. Estabelece com ele um diálogo breve, do tipo “como
vai, como passou”; pede as licenças devidas para a chegada, pergunta se é do
agrado receber a bandeira e os nobres foliões, etc. Obsequiado pela permissão,
volta acelerado ao grupo, gritando a resposta positiva e abre a porteira para a
folia entrar. Agora entra junto com o grupo sem passar de novo na frente da
bandeira.
Dentro da residência desenvolvem-se vários outros
procedimentos protocolares quando o palhaço está presente. Eles estarão
tematizados na segunda parte desta postagem, em breve. Aguardem!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
TIZA, António Pinelo. Inverno
Mágico: ritos e mistérios transmontanos. Lisboa: esquilo, 2004. 287p.il.
BITTER, Daniel. A Bandeira e a Máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Rio de Janeiro: 7 Letras; Iphan/CNFCP, 2010. 224p.il.
* Texto e fotos: Ulisses Passarelli
ResponderExcluirfeliz em conhecer os relevantes "serviços"executados pelos palhaços, marungo, bastião etc., isto é muito interessante.
Abraços e parabéns pelos transcritos acima
Grato pelas observações e visita. Volte sempre, acompanhe nosso trabalho.
ExcluirPorque os palhaço .chama de bastião
ResponderExcluirMuito elucidativa essa explicação. Nas folias do jequitinhonha não tem a figura do palhaço. Tem o boi e em algumas o toureiro e em Rubim tem o véi ou Véio que usa máscara e bengala. Teria alguma aproximação?
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