Como conceito genérico, a expressão "alma penada" se aplica a qualquer assombração não identificada; assombro inespecífico; visão, vulto,
visagem, "invisão", espectro, espírito que vaga sem rumo.
Percebe-se, que apesar de ser aplicável a influência doutrinária católica da existência do purgatório, como um local de penúria, no sentido da purificação, há ao mesmo tempo, uma peculiaridade neste conceito dentro da cultura popular: as almas do purgatório estão presas nele, não podem sair... Para elas rezam o ano todo, encomendam matraqueando na quaresma, preces de missas lhes são dirigidas, velas iluminam o seu resgate via São Miguel Arcanjo e Nossa Senhora do Carmo, os intercessores mais requisitados nestes casos.
A alma penada ao contrário, não está presa no limbo ou no umbral: perambula sem rumo. Não está no céu, nem no inferno, tampouco no purgatório. Não foi embora. Permanece no nosso mundo, invisível (senão por assombrosas e eventuais aparições...), se recusando a partir porque não aceitou a morte, ou foi impedida de ir pois não foi justiçada, ou ainda porque cometeu um tipo de crime que só depois de desvendado garantirá sua libertação deste mundo; ou, ainda, se deixou uma dívida, que, por caridade, deve ser paga porque alguém terreno em nome do devedor morto.
Por vezes a alma penada tem ainda uma missão a cumprir e como não pode falar nem escrever como os viventes, para pedir ajuda, fica presa a um lugar chamando a atenção como pode, para ser percebida e talvez interpelada por algum corajoso _ daí os barulhos inexplicáveis, de corrente de arrasto, portas batendo sem terem sido fechadas, sons de torneiras abertas estando de fato vedadas, luzes que se acendem sozinhas, barulhos de passos, sensação de ter alguém perto nos observando mas não tem ninguém, calafrios sem motivo aparente, friagem no ar mesmo estando calor. Medo. É a alma penada que está por perto...
O conceito de alma penada ganha aos poucos complexidade e se mitifica. No folclore corresponde em certa medida ao egum das religiões de matriz africana. Como um mito a alma penada fica no vasto rol dos fantasmas com finalidades educativas, pois se atinge esta condição por uma punição às leis sagradas transgredidas. É a exemplaridade. E ainda: como um alerta aos incautos _ não se deve sair a horas mortas de casa pois se pode tornar um alvo de alguma alma penada, que o segue de volta até a casa, fazendo daí sua moradia; para as crianças que abusam na desobediência querendo ir a algum lugar que não podem, logo os pais o dizem: "_ não vai não, menino, que lá tem alma penada"...
Visto assim a alma penada é um ser em sofrimento, carecendo de socorro, que por vezes deseja e busca. Outras porém, eivadas de maldade, se aproveitam desta sina para apavorar, só pelo prazer que isto lhes traz. Daí o perigo que representam, perturbando o cotidiano.
Tais são os conceitos reinantes na cultura popular dos Campos das Vertentes, de espíritos vagando sem rumo e
descanso porque na vida terrena a pessoa da qual desencarnou, deixou na Terra
uma missão incompleta ou uma dívida espiritual. Então sua alma penará até que
alguém complete a missão ou pague sua dívida. Só então descansará.
A alma
penada pode contudo aparecer com a aparência de um ser humano. Mas só se tornará visível a alguém de grande força
espiritual, mediunidade e coragem. A este fará verbalmente o pedido para completar o serviço. Então ganha o dom da fala. Surgirá com o aspecto que tinha em vida, aparente ilusão das roupas de costumes, objetos, trejeitos, deformidades. Então, neste momento mágico, revela o que está lhe travando a partida e clama por socorro: o vivente por caridade faz o que a alma penada deixou pendente e uma vez cumprido a alma se liberta, deixa de ser assombrada e quem lhe ajudou receberá benesses.
Narro por fim um causo que ilustra bem esse folclore das almas penadas. Ouvi-o em São João del-Rei. Versa sobre uma das figuras mais respeitadas da religiosidade popular que já passaram por esta tricentenária urbe: o senhor "Emídio do Bengo"(*), que deixou seu nome escrito em nossa história pela força da caridade e retilínea conduta, tratando do padecimento de muitos com remédios homeopáticos e preces.
Conta-se que certa feita, numa noite tempestuosa, Emídio ouviu bater à sua porta, na Colônia do Bengo. Estranhou a circunstância mas como era muito solícito e procurado foi atender. Era um estranho, que não se identificou. Disse-lhe:
_ o senhor é seu Emídio... tem coragem?
_ Sou. Tenho.
_ Pega enxadão e pá e me acompanha por favor.
_ Um momento...
_ No caminho vão tentar nos atrapalhar. Senhor tenha fé e coragem que nada vai lhe acontecer, disse-lhe o forasteiro.
Subiram por uma trilha escura no mato. Caminho acima, o homem ia célere adiante de "seu" Emídio do Bengo. Começaram a jogar-lhes pedras. Emídio reclamou do perigo. O tal lhe respondeu que avisara que tentariam atrapalhar, mas que não temesse porque nenhum calhau lhe acertaria. E zuniam as pedradas muito próximas e intensas, mas nenhuma atingiu seu Emídio.
No topo de uma colina, sobranceira ao vale do Rio das Mortes, em plena colônia de imigrantes italianos, disse o sorumbático homem, sempre mantendo meia distância:
_ Seu Emídio, por favor, cava aqui que eu não posso.
Ele obediente e atento escavou, até que a ferramenta tiniu numa peça cerâmica.
_ Achou. Tira com cuidado.
Era uma botija, cheia de ouro. "_ Por este dinheiro eu morri", disse-lhe o homem. Orientou-lhe que com ele fizesse ali mesmo uma igreja em honra a Santo Antônio de Pádua e mandasse rezar tantas missas pela alma de fulano de tal. Com o restante fizesse como bem entendesse. No instante que o corajoso Emídio do Bengo olhou para a botija que tinha nas mãos e voltou os olhos ao estranho, ele já tinha desaparecido para sempre.
Diz a narrativa que assim foi feito. O homem misterioso, que era na verdade uma alma penada, nunca mais foi visto. A sobra do ouro seu Emídio empregou para a caridade.
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Capela de Santo Antônio do Bengo, em São João del-Rei, citada neste texto. Construída em 1905, graças aos esforços do memorável sr. Emídio do Bengo. |
Notas e Créditos
* Cognome de Emygdio Apollinário dos Passos Moraes (1876-1958). Sobre ele ver: OLIVEIRA, Dyleini Moraes Silva de et all. Centenário da Capela de Santo Antônio do Bengo: a fé de seu fundador, a fé de sua comunidade. São João del-Rei: [s.n.], 2005
** Texto e fotografia: Ulisses Passarelli
*** Informante do causo de Sr.Emídio: Aluísio dos Santos, 1993.
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