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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quarta-feira, 31 de julho de 2013

O que é, o que é? Adivinhe se puder!

Adivinhações & Enigmas

O universo do folclore se descortina abrangente no horizonte da cultura. Existem muitas expressões culturais que nem sequer imaginamos, à primeira vista, que façam parte deste contexto das ciências humanas. Porque nós mesmos somos portadores de certos saberes que nos parecem tão simplórios, comuns, que não sugerem necessidade de abordagem especial.

Ledo engano. Tudo no folclore é importante. Uns folcloristas se especializam numa certa área, focam um tema em especial e por vezes algumas áreas ficam mais privilegiadas em termos de estudos. Brincadeiras de nossa infância passam-nos despercebidas na fase adulta o que é o mesmo que matar a criança que há em nós.

No campo da literatura popular e da folk-comunicação se encontram muitas manifestações típicas do saber humano nessas condições supra. Este blog nas próximas postagens fará breves revistas nesses temas a começar das adivinhações.

Alguns folcloristas tem se debruçado sobre a coleta e o estudo das advinhas. Elas não são exclusivas de nosso país, muito menos da região aqui estudada. Contemplando esta proposição, segue exposta uma curta coletânea de advinhas dos Campos das Vertentes, especialmente ouvidas em São João del-Rei e Santa Cruz de Minas durante a década de 1990, exceto indicação em contrário.

É uma casinha de bom parecer,
Não há carpinteiro que saiba fazer...

(Resposta: amendoim em casca. Referência à casca seca com duas metades, que se prende às raízes da planta, dentro da qual ficam os grãos comestíveis.)

Trempe de ferro,
Barriga de pau,
Três crioulinhos
Tocando berimbau...

(Resposta: feijão, cozinhando na trempe. É uma referência às velhas panelas de ferro de fundo arredondado, com três pontas de ferro no fundo, fazendo de “pé” ou suporte. Ficam sempre tisnadas pelo fogo do fogão à lenha).  

Subi em cima de você,
Fazendo meu vai-e-vem;
N’eu subi, o leite desce,
N’eu descê, o gostoso vem...

(Resposta: a colheita do mamão. Quando se tira o fruto do mamoeiro escorre parte da seiva leitosa).

Menina vamos deitar,
Fazer o que Deus mandou;
Um por baixo, outro por cima,
A menina presa ficou.

(Resposta: menina dos olhos. Referência às pálpebras, que cerradas pelo sono escondem a pupila, popularmente chamada “menina dos olhos”).

Preto por fora,
Amarelo por dentro.
Tacho é, tacho é...

(Resposta: tacho de cobre. A resposta vem no próprio enunciado, curiosamente armado para causar confusão. O tacho, usado na produção caseira de doces, tem pelo lado interno a viva cor deste metal e pelo exterior o escuro do uso no fogão à lenha.)

Sou branco por nascença,
Preto por natureza,
A morte me faz alegria,
A vida me traz tristeza.

(Resposta: urubu. Este abutre, catartídeo, Coragyps atratus, ainda ninhego, tem as penas brancas e só depois passa por muda para a cobertura plumária preta).

A mãe é verde,
A filha encarnada;
A mãe é mansa,
A filha danada.
(Resposta: pimenta e pimenteira)

Um sobrado,
com duas janelas,
Que abre e fecha
Sem ninguém tocar nelas.
(Resposta: olho.)

Verde nasci,
De luto me cobri,
Para dar gosto ao mundo,
Para os ares me sumi.
(Resposta: tabaco)

Nasci no meio dos espinhos,
Nos espinhos fui criado.
Eu trouxe o nome de Ana,
Por Ana fui batizado.
(Resposta: ananás)

Meu estado é verde,
Visto-me de luto para morrer arrebentada...
(Resposta: jabuticaba)

O que é, o que é:
Que entra duro e sai mole pingando?
(Resposta: macarrão cozinhando)
O que é, o que é:
Que cai em pé e corre deitado?
(Resposta: chuva)

Qual é o céu que não tem estrelas?
(Resposta: palato, “céu da boca”)

O que é, o que é:
Que tem bico e não belisca,
Tem asa mas não avoa?
(Resposta: Bule)

Xará no nome,
Não no parecer;
Um canta dentro do outro,
O quê que pode ser? (*)

(Resposta: capoeira. A palavra capoeira tem aqui duplo significado: porção de mato no meio do campo ou cerrado, com árvores altas, pequena mata, capão; ou ainda, nome de uma ave galiforme, odontoforídea, Odontophorus capueira, também conhecido por uru. A ave chamada capoeira canta dentro da mata chamada capoeira.)

As advinhas do tabaco e da pimenteira foram registradas a muitos anos no Ceará por Leonardo Mota em variantes praticamente idênticas às daqui[1].

Algumas usam as palavras com um sentido duplo, que induz ao pensamento de uma resposta chula, de conotação erótica, como as adivinhações da menina dos olhos, do macarrão e do mamoeiro.

Outras tem uma conformação tipicamente rural, cuja linguagem fica com a compreensão limitada aos que não são afeitos ao palavreado da roça. A este exemplo estão as adivinhas da capoeira e da panela de feijão.

Câmara Cascudo revela de forma magistral e de leitura indispensável a universalidade das adivinhas, denotando interpretações e processo classificatório. Ensinou: “as fórmulas são rápidas, na maioria susceptíveis de metrificação para facilitar a assimilação mnemônica” [2].

Nos exemplos acima nota-se formulações muito simples, de frase única, como uma mera pergunta (“Qual o céu que não tem estrelas?”). Lembro-me de uma muito comum na infância: “Qual a diferença entre o bule e o padre?”. A resposta típica é curiosamente versejada: “O bule é de por café; o padre é de muita fé”. Existem várias adivinhações no padrão de simples perguntas constituindo um passatempo brincar com elas.

Certas adivinhações assumem a forma de enigmas, distantes da fórmula típica do “o que é, o que é”. Os enigmas são adivinhações mais intrincadas, que não fazem necessariamente perguntas. São enunciados aparentemente sem nexo:

Quatro pés, em cima de quatro pés, esperando quatro pés.
Quatro pés não veio, quatro pés foi embora, quatro pés ficou.”

(Resposta: um gato sobre uma mesa esperando a passagem de um rato. O rato não veio, o gato foi embora, a mesa ficou.)

Eu vi um morto,
Carregando um vivo...

(Resposta: um cadáver descendo o rio boiando e o urubu em cima por causa da carniça.)
 
Passei na porteira: bá!
Toco minha galinha: xi!
Chamo meu cachorro: cá!
(Resposta: abacaxi)

Galinha no choco...
Cachorro late...
(Resposta: chocolate)

Um morreu,
Outro, está entre nós;
O terceiro, ainda vai nascer.

(Resposta: passado, presente e futuro)

            O gosto pelas advinhas se configura em outros formatos a exemplo dos jongos de roça ou jombas de roça, assim chamados certos cantos de trabalho de turmas de capinadores, que cantam em sistema de pergunta e resposta enquanto trabalham. Aqui em São João del-Rei o finado “Chico Cumbuca” saía com esta jomba:

O quê que nasceu suruco,
No alto do chapadão?

(Resposta: inhambu, ave tinamídea. Suruco (a): diz-se do animal sem cauda ou de rabo curto)

            Neste caso a adivinhação não é típica porque se faz cantada em vez de enunciada. Mas o espírito de entretenimento e desafio é o mesmo. Um jongueiro de Santa Rita do Ibitipoca, “seu Júlio”, cantou-me um velho ponto de capina:

Olha o sapo de cangalha,
O mantimento, de quem é?

O outro trabalhador da turma respondeu ao desafio com este canto, emendando de imediato:

É da Fazenda do Rufino,
É do tenente-coroné!” [3]

Estas fórmulas se infiltraram de forma adaptada nos calangos como desafios de perguntas e respostas aos desafiantes; assim também nas chulas dos palhaços de folias de Reis, desafiando outros palhaços nos encontros de duas folias ou apenas brincando com o público da assistência. São extensões do processo de adivinhação, além das formas típicas.

       Assim enigmáticas são as adivinhações. Linguagem cifrada, estimuladora do raciocínio, diversão simples das horas de vacância, de moleques e adultos. Cultura popular genuína, antiguíssima, cosmopolita, desde a esfinge egípcia.

       E para encerrar, deixo esta para vocês decifrarem:

Vinte e cinco boi parado,
Vinte e cinco boi andando,
ganhando quinhentos réis,
quantos contos dá no ano? (**)


Notas e Créditos



*Luís da Câmara Cascudo no seu livro "Folclore do Brasil" (p.96) registrou a seguinte advinha tradicional, que se desenvolve de forma mais elaborada com a do capoeira, contudo, no mesmo padrão: 

"Somos iguais no nome,
desiguais no parecer;
meu irmão não vai à missa,
eu não a posso perder.
Entre bailes e partidas
todos lá me encontrarão,
nos trabalhos da cozinha
isto é lá com meu irmão."
(Resposta: o vinho e o vinagre)

** Contos: contos de réis, antiga designação monetária.

*** Informantes: Júlio Prudente de Oliveira, Aloísio dos Santos, Maria de Carvalho Santos, Elvira Andrade de Salles, Maria Aparecida de Salles, José Cândido de Salles, Francisco de Assis Cipriano.

**** Texto: Ulisses Passarelli

***** Para maiores referências às adivinhações, ler: 

OLIVEIRA, Sebastião Almeida. Cem Adivinhas Populares. In: Revista do Arquivo Municipal. São paulo: departamento de Cultura, 1940. n.66, p.59-76.



[1] - MOTA, Leonardo Ferreira da Mota. Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearence. 3.ed. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961. 302p. p.273.
[2] - CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. 930p.il. Verbete: adivinhas.
[3] - Com procedência de Bias Fortes colhi como peça solta do cancioneiro, em variante: “Olha o sapo de cangalha / mantimento de  quem é? / É do homem da beirada / que não cuida da mulhé.”

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