Adivinhações &
Enigmas
O
universo do folclore se descortina abrangente no horizonte da cultura. Existem
muitas expressões culturais que nem sequer imaginamos, à primeira vista, que
façam parte deste contexto das ciências humanas. Porque nós mesmos somos
portadores de certos saberes que nos parecem tão simplórios, comuns, que não
sugerem necessidade de abordagem especial.
Ledo
engano. Tudo no folclore é importante. Uns folcloristas se especializam numa
certa área, focam um tema em especial e por vezes algumas áreas ficam mais privilegiadas
em termos de estudos. Brincadeiras de nossa infância passam-nos despercebidas
na fase adulta o que é o mesmo que matar a criança que há em nós.
No
campo da literatura popular e da folk-comunicação se encontram muitas
manifestações típicas do saber humano nessas condições supra. Este blog nas
próximas postagens fará breves revistas nesses temas a começar das
adivinhações.
Alguns
folcloristas tem se debruçado sobre a coleta e o estudo das advinhas. Elas não
são exclusivas de nosso país, muito menos da região aqui estudada. Contemplando
esta proposição, segue exposta uma curta coletânea de advinhas dos Campos das
Vertentes, especialmente ouvidas em São João del-Rei e Santa Cruz de Minas
durante a década de 1990, exceto indicação em contrário.
É uma casinha de bom parecer,
Não há carpinteiro que saiba fazer...
(Resposta:
amendoim em casca. Referência à casca seca com duas metades, que se prende às
raízes da planta, dentro da qual ficam os grãos comestíveis.)
Trempe de ferro,
Barriga de pau,
Três crioulinhos
Tocando berimbau...
(Resposta:
feijão, cozinhando na trempe. É uma referência às velhas panelas de ferro de
fundo arredondado, com três pontas de ferro no fundo, fazendo de “pé” ou
suporte. Ficam sempre tisnadas pelo fogo do fogão à lenha).
Subi em cima de você,
Fazendo meu vai-e-vem;
N’eu subi, o leite desce,
N’eu descê, o gostoso vem...
(Resposta:
a colheita do mamão. Quando se tira o fruto do mamoeiro escorre parte da seiva
leitosa).
Menina vamos deitar,
Fazer o que Deus mandou;
Um por baixo, outro por cima,
A menina presa ficou.
(Resposta:
menina dos olhos. Referência às pálpebras, que cerradas pelo sono escondem a
pupila, popularmente chamada “menina dos olhos”).
Preto por fora,
Amarelo por dentro.
Tacho é, tacho é...
(Resposta:
tacho de cobre. A resposta vem no próprio enunciado, curiosamente armado para
causar confusão. O tacho, usado na produção caseira de doces, tem pelo lado
interno a viva cor deste metal e pelo exterior o escuro do uso no fogão à
lenha.)
Sou branco por nascença,
Preto por natureza,
A morte me faz alegria,
A vida me traz tristeza.
(Resposta:
urubu. Este abutre, catartídeo, Coragyps
atratus, ainda ninhego, tem as penas brancas e só depois passa por muda
para a cobertura plumária preta).
A mãe é verde,
A filha encarnada;
A mãe é mansa,
A filha danada.
(Resposta:
pimenta e pimenteira)
Um sobrado,
com duas janelas,
Que abre e fecha
Sem ninguém tocar nelas.
(Resposta:
olho.)
Verde nasci,
De luto me cobri,
Para dar gosto ao mundo,
Para os ares me sumi.
(Resposta:
tabaco)
Nasci no meio dos espinhos,
Nos espinhos fui criado.
Eu trouxe o nome de Ana,
Por Ana fui batizado.
(Resposta:
ananás)
Meu estado é verde,
Visto-me de luto para morrer arrebentada...
(Resposta:
jabuticaba)
O que é, o que é:
Que entra duro e sai mole pingando?
(Resposta: macarrão cozinhando)
O que é, o que é:
Que cai em pé e corre deitado?
(Resposta:
chuva)
Qual é o céu que não tem estrelas?
(Resposta: palato, “céu da boca”)
O que é, o que é:
Que tem bico e não belisca,
Tem asa mas não avoa?
(Resposta:
Bule)
Xará no nome,
Não no parecer;
Um canta dentro do outro,
O quê que pode ser? (*)
(Resposta:
capoeira. A palavra capoeira tem aqui duplo significado: porção de mato no meio
do campo ou cerrado, com árvores altas, pequena mata, capão; ou ainda, nome de
uma ave galiforme, odontoforídea, Odontophorus
capueira, também conhecido por uru. A ave chamada capoeira canta dentro da
mata chamada capoeira.)
As
advinhas do tabaco e da pimenteira foram registradas a muitos anos no Ceará por
Leonardo Mota em variantes praticamente idênticas às daqui.
Algumas
usam as palavras com um sentido duplo, que induz ao pensamento de uma resposta
chula, de conotação erótica, como as adivinhações da menina dos olhos, do
macarrão e do mamoeiro.
Outras
tem uma conformação tipicamente rural, cuja linguagem fica com a compreensão
limitada aos que não são afeitos ao palavreado da roça. A este exemplo estão as
adivinhas da capoeira e da panela de feijão.
Câmara
Cascudo revela de forma magistral e de leitura indispensável a universalidade
das adivinhas, denotando interpretações e processo classificatório. Ensinou: “as fórmulas são rápidas, na maioria
susceptíveis de metrificação para facilitar a assimilação mnemônica” .
Nos
exemplos acima nota-se formulações muito simples, de frase única, como uma mera
pergunta (“Qual o céu que não tem
estrelas?”). Lembro-me de uma muito comum na infância: “Qual a diferença
entre o bule e o padre?”. A resposta típica é curiosamente versejada: “O bule é de por café; o padre é de muita fé”.
Existem várias adivinhações no padrão de simples perguntas constituindo um
passatempo brincar com elas.
Certas
adivinhações assumem a forma de enigmas, distantes da fórmula típica do “o que
é, o que é”. Os enigmas são adivinhações mais intrincadas, que não fazem
necessariamente perguntas. São enunciados aparentemente sem nexo:
Quatro pés, em
cima de quatro pés, esperando quatro pés.
Quatro pés não
veio, quatro pés foi embora, quatro pés ficou.”
(Resposta:
um gato sobre uma mesa esperando a passagem de um rato. O rato não veio, o gato
foi embora, a mesa ficou.)
Eu vi um morto,
Carregando um vivo...
(Resposta:
um cadáver descendo o rio boiando e o urubu em cima por causa da carniça.)
Passei na porteira: bá!
Toco minha galinha: xi!
Chamo meu cachorro: cá!
(Resposta:
abacaxi)
Galinha no choco...
Cachorro late...
(Resposta:
chocolate)
Um morreu,
Outro, está entre nós;
O terceiro, ainda vai nascer.
(Resposta:
passado, presente e futuro)
O gosto pelas advinhas se configura
em outros formatos a exemplo dos jongos de roça ou jombas de roça, assim
chamados certos cantos de trabalho de turmas de capinadores, que cantam em
sistema de pergunta e resposta enquanto trabalham. Aqui em São João del-Rei o
finado “Chico Cumbuca” saía com esta jomba:
O quê que nasceu suruco,
No alto do chapadão?
(Resposta:
inhambu, ave tinamídea. Suruco (a): diz-se do animal sem cauda ou de rabo curto)
Neste caso a adivinhação não é
típica porque se faz cantada em vez de enunciada. Mas o espírito de
entretenimento e desafio é o mesmo. Um jongueiro de Santa Rita do Ibitipoca, “seu
Júlio”, cantou-me um velho ponto de capina:
Olha o sapo de cangalha,
O mantimento, de quem é?
O
outro trabalhador da turma respondeu ao desafio com este canto, emendando de
imediato:
É da Fazenda do Rufino,
Estas
fórmulas se infiltraram de forma adaptada nos calangos como desafios de
perguntas e respostas aos desafiantes; assim também nas chulas dos palhaços de
folias de Reis, desafiando outros palhaços nos encontros de duas folias ou
apenas brincando com o público da assistência. São extensões do processo de
adivinhação, além das formas típicas.
Assim
enigmáticas são as adivinhações. Linguagem cifrada, estimuladora do raciocínio,
diversão simples das horas de vacância, de moleques e adultos. Cultura popular
genuína, antiguíssima, cosmopolita, desde a esfinge egípcia.
E para encerrar, deixo esta para
vocês decifrarem:
Vinte e cinco boi parado,
Vinte e cinco boi andando,
ganhando quinhentos réis,
quantos contos dá no ano? (**)
Notas e Créditos
*Luís da Câmara Cascudo no seu livro "Folclore do Brasil" (p.96) registrou a seguinte advinha tradicional, que se desenvolve de forma mais elaborada com a do capoeira, contudo, no mesmo padrão:
"Somos iguais no nome,
desiguais no parecer;
meu irmão não vai à missa,
eu não a posso perder.
Entre bailes e partidas
todos lá me encontrarão,
nos trabalhos da cozinha
isto é lá com meu irmão."
(Resposta: o vinho e o vinagre)
** Contos: contos de réis, antiga designação monetária.
*** Informantes: Júlio Prudente de Oliveira, Aloísio dos Santos, Maria de Carvalho Santos, Elvira Andrade de Salles, Maria Aparecida de Salles, José Cândido de Salles, Francisco de Assis Cipriano.
**** Texto: Ulisses Passarelli
***** Para maiores referências às adivinhações, ler:
OLIVEIRA, Sebastião Almeida. Cem Adivinhas Populares. In: Revista do Arquivo Municipal. São paulo: departamento de Cultura, 1940. n.66, p.59-76.
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