São chegadas as férias de inverno. A gurizada sobe aos
morros em busca de locais mais ventilados com suas pipas. Nas praias aproveitam
a brisa oceânica. Ora se torna perigoso quando o palco são as ruas
convencionais, pelo risco da fiação elétrica da rede pública. Soltar pipa é uma
das diversões tradicionais mais queridas da criançada e que muito marmanjo não
consegue deixar, vencida a infância física.
É um brinquedo milenar, de remota origem chinesa, que
disseminou mundo afora desde longa data. Da Europa o recebemos e por todo o
país se esparramou ganhando peculiaridades locais, mas guardando em si a mesma
essência e sensação de liberdade ao se praticar. ALENCAR (1971) afirmou: "antiquíssima é a brincadeira universal de empinar papagaios de papel. Teria surgido na China, no século XIII ou XIV e dali invadido a Europa", porém indica possibilidade de uma origem bem mais antiga. O autor fez um importante estudo perpassando pelo histórico, a tipologia, modelos, vocabulário, etc.
O objetivo específico do presente texto não é
descrever a brincadeira, que de assaz conhecida talvez dispense esse passo; tão
pouco traçar sua caminhada histórica, hoje de consulta fácil .
É tão somente pretexto para expor uns detalhes intrínsecos que evocam a minha
própria infância nos altos campos da Caieira, em São João del-Rei da década de 1970, que portanto vivenciei, e que
depois foram reforçados por informações mais tardias, de 1999, tomadas com
jovens afeitos ao brinquedo das pipas.
Basicamente o processo começa com a escolha da matéria
prima: bambu, que deve ter os gomos longos e estar “de vez”, ou seja, em estado
intermediário entre verde e maduro. A peça é lavrada à faca até formar varetas
que são amarradas em cruz, com linha retesada entre os extremos. É a base da
pipa, muito leve, chamada “armação”.
A etapa seguinte é cobri-la. A escolha da cor é muito
individual e existem combinações simples ou variadas, uma verdadeira expressão
artística, com figuras geométricas (losangos, triângulos, círculos, polígonos),
faixas e outras formas variáveis. Temas do futebol também perpassam nas
coberturas, como na combinação de cores ou no aproveitamento dos brasões. Um
símbolo de caveira é também frequente. Mormente se usa a folha de seda para as
composições.
A cola pode ser a branca comum, para papel, a mais
usada, mas já se usou muito o “grude”, uma cola caseira tosca, feita com
polvilho e água, mexidos vigorosamente ao fogo dentro de uma lata, gerando uma
massa pegajosa.
O próximo passo é fazer a “rabiola”, uma longa linha
atada a parte de trás da pipa, com muitas fitas plásticas retalhadas amarradas
por nós. Em minha infância eram mais comuns as fitas feitas de folha de seda,
dando um colorido especial à rabiola, porém grande fragilidade. Por vezes se
mesclam cores de tanto em tanto gerando a sensação de faixas, ou se alternam
fitas de duas cores. Algumas crianças faziam rabiola de jornal cortado. A
rabiola é que estabiliza a pipa no ar, contrabalançando seu peso. A rabiola tem
as fitas na parte inicial amarradas muito próximas umas das outras, conferindo
um aspecto denso, daí ser chamada de “cabeleira”. Na parte média as fitas vão
gradativamente se afastando, ganhando o nome de “rabada” e por fim o terço
final quase sem fitas ou mesmo sem elas é apenas um prolongamento de linha
conhecido por “chicote”.
A linha preferida para soltar pipa é a nº10, leve e
resistente. Quando se constroem pipas grandes que fazem mais força no contra
vento, usam-se linhas mais fortes como cordonê e o fio de nylon de pescaria. A
linha se prende à pipa por um artefato de linha preso na armação, em dois ou
três pontos, chamado “tem-tem” ou “cabresto.
O ato de soltar pipa se dá em espaço livre, dependendo
do vento para erguer o brinquedo e liberá-la para mais longe (“dar linha”). A
simples brincadeira é empinar a pipa ou fazê-la remexer no ar, rebolar (“dar
carioquinha”) ou fazê-la descer em riste após movimentos hábeis das mãos na
linha, conduzindo-a a um voo rasante (“dar de bico”) e imediatamente antes dela
cair no chão se solta mais linha e ela retoma a posição inicial com um rápido
manejo. A pipa que consegue fazer estes movimentos é considerada boa, digo, bem
construída. Se for avantajada é alcunhada “pião”.
Por outro lado se não consegue é ruim e ganha os
apelidos pejorativos de “camelo” e “caixote”. Se a rabiola é curta, insuficiente
para estabilizar a pipa ela se põe descontrolada a fazer giros no ar, mais ou
menos velozes conforme o comprimento desse acessório. Diz-se que a pipa “dá de
rodinha”. Se a falta de estabilidade é por erro na medida da armação, com
desigualdade na medida de distância na centralização das varetas, ela tende a
tombar para um lado ou nunca se alinha, inclinando-se de maneira aleatória, daí
se dizer que a pipa “dá de lado”. Se a diferença é pequena se resolve
amarrando-se do lado oposto à inclinação umas fitas largas para contra peso. Outro
defeito corrigível é “dar de tábua”, assim chamada quando a armação é muito
plana fazendo com que a pipa prancheie no alto sem obedecer aos comandos. A
solução é “morgar” a armação, esticando uma linha bem tensa entre os extremos
direito e esquerdo para obrigar uma certa curvatura.
O cerol (“ceral”, dizem alguns) é um preparado de
vidro fino moído com massete dentro de uma lata, cujo pó se aplica à linha de
soltar com uma mistura de cola branca de papel ou preferencialmente cola-madeira.
Uma variante usa goma-arábica com pó de serralheiro (pó de ferro que solta das
serras de cortar vergalhões nas oficinas de serralheria). O cerol pouco
cortante por ter vidro insuficiente é apelidado “água de batata”.
Este preparado é passado à linha de soltar e ao
chicote para a disputa mais querida dos soltadores que é cortar a pipa do outro,
rompendo a linha no ar pela habilidade de “cruzar” as linhas até que o cerol
corte quem está “liso” (sem cerol) ou com cerol mais fraco. Ao cortar de insulto,
muitas vezes o vencedor grita ao perdedor: “ôh, goiaba!”, como um brado de
superioridade. Os habilidosos vão conduzindo sua pipa desde longe até próximo
da pipa que se almeja cortar, ato chamado de “buscar”.
A pipa rompida desgoverna em corrupios no ar, como um
bailado surrealista, ao bel-prazer do sopro eólico. Está “voada”, não tem dono.
É de quem pegar. Quem cortou “debica” sua pipa tentando “aparar” a pipa voada,
rompida, ou seja, capturá-la em pleno ar, trazendo-a para si na emboleira de
linhas e rabiolas. Passa a ser seu dono incontestável pela supremacia da
habilidade. Dizem então que “mandou e aparou”. Alguns soltadores se tornam
respeitados tal a capacidade de fazer isto. Mas se a pipa está de fato perdida
no seu voo, ao léu a molecada corre desesperadamente para alcançá-la, onde
cair. O primeiro a pegar é o novo dono e
cuida logo de gritar “tá na mão!”, indicando posse desde então.
O cerol tem sido alvo de protestos e campanhas
educativas visando sua exclusão devido ao grande número de acidentes que
provoca, com cortes profundos na pele, até mortais, quando ciclistas e
motociclistas são atingidos no pescoço acidentalmente na corrida sobre seus
veículos.
Além das pipas existem os papagaios. A diferença
básica para a região das Vertentes é a cobertura, de plástico nestes. Outra
diferença é que não costumam deixar espaços vazados na armação, havendo uma
cobertura total. Em geral não tem rabiola e por isto os movimentos no ar são
bem mais limitados. São diversos os modelos de papagaios, como o “arraia” e o
“morcego” cuja forma imita a silhueta dos animais que lhes emprestaram os
nomes; o “jaú”, um papagaio losangular grande, sem rabiola, e o “peixinho”,
losangular pequeno e por exceção com rabiola.
Por fim existe o mais simples desses brinquedos e de
todos o mais improvisado: o “jirico” ou “jiriquinho”, feito com uma simples
folha de caderno, com as bordas de fora a fora dobradas em largura de uma
polegada em 90º em relação à planura da folha. Dois furinhos para trespassar o
tem-tem e a rabiola (de papel) o completam. Como não tem armação e não suporta
muito vento, subindo pouco, basta-lhe a linha de costura comum, nº40. Porém o jirico
é o caminho do aprendizado dos pequeninos para depois chegar às pipas, piões e
papagaios.
Soltando um jirico.
Soltar as efêmeras pipas é uma atividade alegre que
desperta nas crianças sociabilidade e espírito esportivo. Tem ainda um lado de
diversão familiar quando os pais ajudam ensinado a confecção e participando da
soltura.
São objetos artísticos posto que concebidos de forma criativa,
individualizada, dependendo de escolha de cores e disposição dos recortes de
folha. O fazer é estritamente manual e a transmissão do aprendizado se dá
informalmente. Diferentes épocas conservam domínios do fazer de diversos tipos,
denotando uma dinâmica. A prática conserva um linguajar específico. A produção
do cerol e a aplicação na linha se prendem a um conhecimento prático. O
controle da aerodinâmica vem de uma atividade empírica. Em tudo a pipa se
configura como uma brincadeira da cultura popular que pode ser enquadrada na
característica da manifestação folclórica.
Referências Bibliográficas
ALENCAR, Edigar de. Papagaios-Pipa-Arraia.
Revista Brasileira de Folclore, n.29, jan./abr.1971. p. 5-23.
Notas e Créditos
* Texto, desenhos e fotografias: Ulisses Passarelli
** Obs.: em 1992 observamos na Praia da Boa Viagem, no Recife, capital pernambucana, vendedores de pipas que as traziam suspensas no ar atadas todas a uma linha mestra. Caminhavam insistentemente ao longo da areia e a brisa marítima contínua não deixava as pipas caírem. Esta cena a registramos no desenho abaixo reproduzido:
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