Os Trava-línguas
“O povo brinca com a linguagem, como se pode
observar à farta no folclore infantil. Chega a fazer dela um objeto com o qual
também consegue se divertir: divertir e aprender.” (Weitzel)
O
vasto campo da oralidade se descortina com grande amplitude de opções ao
pesquisador folclorista; algumas raras, outras bem populares, se não mesmo próximas,
como diversão praticada em nossa própria infância.
Nos
momentos de lazer uma das diversões são os jogos de linguagem, joguetes da
fala, dentre os quais um dos mais conhecidos é o trava-línguas. Assaz
difundido, algumas versões ultrapassam as fronteiras regionais e se estendem
pelas vastidões nacionais.
A.H.Weitzel estudando-os junto com a linguagem secreta,
outra preciosidade oral popular, sugeriu o uso dessas manifestações para
trabalhos de dicção pelos terapeutas da fala. Sugeriu uma classificação dos
trava-línguas em simples, compostos e complexos conforme a predominância dos
fonemas consonantais e pontos de articulação.
Observando
a pequena coletânea que disponho de minhas
pesquisas de campo, notei pelo menos
três formatos, que obviamente não invalidam a classificação proposta pelo
notável estudioso. Primeiro vejamos uns trava-línguas típicos, digamos assim
:
1)
O rato roeu a roupa do rei Ricardo de Roma.
2)
O peito do pé de Pedro é preto.
3)
O homem da horta humilhou ontem o hortelão honesto.
4)
O galego gago vigia o gageiro e joga gagau[2]
com o gigante.
5)
Três pratos de trigo para três tigres tristes.
6)
Sabia que o sabiá sabia assobiar?
7)
Casa rasa, chão sujo.
Dos exemplos
acima o 3 e o 4 denotam grande antiguidade, visível nas palavras em desuso.
Em alguns
casos o trava-línguas se processa repetindo-se a frase sucessivas vezes e cada vez
mais rápido, misturando os sons e gerando o erro: “macarrão, camarão, caramujo”. O mesmo
processo induz o som de alguma outra palavra não enunciada, por vezes chula: “burro
do sertão”. E que ninguém julgue mal a este blog por estas e outras, porque
ainda está por se escrever o “folclore do sexo” ou algo assim, que é de uma
extensão admirável no universo cultural do brasileiro.
Outro formato é o de estrofes,
quadras, abordando em geral o tema amoroso
:
Com pena peguei na pena,
Com pena não te escrevi;
Com pena peguei na pena,
Com pena não te esqueci...
Não sei se é fato ou se é fita,
Não sei se é fita ou se é fato;
O fato é que ele me fita,
Me fita mesmo de fato.
Não sei se sei...
Se sei, não sei;
Só sei que sei,
Que por ti me apaixonei...
Desejo que sua vida
Seja uma sucessão de sucessos
Que se sucedam sucessivamente
Sem cessar.
Gostei, gosto, gostarei,
Do gosto gostoso
De gostar de você...
Gostou, gostoso?!
O exemplar
mais insólito de trava-línguas colhi-o cantado num congado, a guarda de catupé “São
Benedio e Nossa Senhora do Rosário”, de São João del-Rei, no Bairro São Dimas,
do Capitão Luís Santana, pelos idos de 1993:
Eu vim de Baretama,
Vou pro “toma!, dê cá!”
Não há “cá!”, sem “toma!”,
Nem há “toma!”, sem “dê cá...”
É
uma referência enigmática ao mercado de trocas, posto de barganhas, onde se entrega
uma mercadoria (toma!) recebendo-se outra como paga (dê cá!).
Outra fórmula se
faz prosaica. Ouvi muitas vezes enunciada pelos moleques de meu tempo:
O doce perguntou pro doce, qual era o doce que era mais doce.
O doce respondeu pro doce, que o doce que era mais doce, era o doce de
batata-doce.
Os
trava-línguas demonstrados geralmente consistem numa brincadeira entre duas
pessoas: a mais habilidosa desafia a outra a repetir sem tropeçar nas palavras.
O desembaraço consiste em grande habilidade com as palavras e o exercício dessas
expressões um passatempo e treino de linguagem.
Referências Bibliográficas
WEITZEL, Antônio Henrique.
Folcterapias da Fala. Revista da Comissão Mineira de Folclore, n.20,
ag.1999, Belo Horizonte.
* Texto: Ulisses Passarelli
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