Muitas vezes quando abordamos a cultura popular temos a tendência de nos inclinar mais para as manifestações imateriais. Este blog bem que andou por estes rumos... cantorias, lendas, festas, folguedos, benzeções, crendices. Mas é preciso não esquecer que o universo da folclorística é muito amplo e abraça também os elementos materiais dos bens culturais.
Se bem que "o fazer" seja em si, intangível, o produto final é concreto, material.
Assim poder-se-ia passear pelo artesanato, a luteria, o fabrico de remédios como as garrafadas, produtos culinários, artefatos de caça e pesca de fatura caseira, implementos agrícolas de fabricação manual. A depender da técnica, do fazer, podem ser enquadrados no campo da cultura popular.
Ora abordamos de breve passagem a indústria caseira. Com este nome entendemos a fabricação a nível individual ou familiar, eventualmente comunitária, de produtos que servirão ao consumo ou uso humano, sempre com técnicas manuais, empíricas e tradicionais. A produção se mantém segundo velhas receitas passadas pelas gerações através de um aprendizado informal. A matéria-prima é de simples acesso no meio em que se vive, parte do próprio cotidiano do fabricante.
Muitas vezes temos assistido ao esmaecimento desse labor, sob a falta de apoio da política cultural vigente no país, que desde longa data inferniza a vida dos produtores rurais com taxas, burocracias e exigências que desestimulam a produção e dificultam a comercialização. O rumo deveria ser bem outro, o do incentivo, o da facilitação, aumentando a renda e ajudando a fixação do morador rural.
Assim, impossibilitados ou dificultados de se adequar às exigências sanitárias e fiscais, vai o homem rural ficando sem o possível ganha-pão. Desanimado, vende seu sítio e migra para os subúrbios, agravando os problemas sociais.
Vários produtos poderiam ser citados ou descritos dentro da chamada indústria caseira, a típica, dentre farináceos, queijos, bebidas, doces, etc. Mas ora esta página se atém a duas velhas receitas colhidas com pessoas entrevistadas em Santa Cruz de Minas, mas comuns em verdade a todos esses "campos" que "vertem" cultura.
Farinha de Milho:
Também chamada "farinha de pilão".
O milho debulhado (os grãos tirados do sabugo) são postos a fermentar em uma vasilha com água, onde ficam submersos. A água vai sendo trocada de tanto em tanto conforme vai ficando turva. Gasta em torno de três dias para o milho azedar.
Uma vez pronta a fermentação o milho é socado manualmente em pilão ou em monjolo.
A massa resultante é passada na peneira. O produto que ficou sobre a peneira é posto sobre um grande abano de palha trançada, onde é acomodado com as mãos, formando uma massa achatada, em forma de disco.
Num tacho previamente aquecido em forno e untado com gordura, é virado o abano para cair a massa que vai torrando, sendo virada com grandes espátulas de madeira. Essa massa é o "beiju" (biju). Uma vez pronto ele é separado fora do fogo.
A seguir o restante da massa peneirada, ou seja, a que passou pelo crivo, é posta a torrar livremente sem fazer biju, como se fosse outra farinha qualquer. Depois de pronta, essa farinha é misturada ao biju que é quebrado em pedaços, dando uma granulação floculada à farinha de milho.
Sabão de Bola:
Também chamado "sabão preto".
A confecção do sabão começa com um processo de decuada da cinza de fogão à lenha, em um "barrileiro": um balaio do tipo jacá, forrado com palha de bananeira, cheio de cinza, suspenso em um suporte, tendo debaixo uma vasilha de aparar. Acomoda a cinza de modo a deixar um vão no meio ("boca").
Vai se despejando água no meio do jacá, e por filtragem a água de cinza vai saindo por baixo, como quem coa café num coador. O produto, ou seja, a "dicuada de barrilêro" é amparada num vasilhame.
A segunda etapa é por uma matéria gordurosa a derreter num tacho ao fogo. Pode-se usar abacate ou sebo de vaca. Depois de derretido, pouco a pouco se vai acrescentando a cinza coada, sempre misturando, com grande colheres de pau.
O ponto de sabão é tirado em uma bacia com água onde se põe uma porção para experimentar: se desmanchar sem fazer espuma precisa ficar mais no fogo.
Ao chegar no ponto certo, espera-se esfriar. Ainda morno vai-se enrolando para fazer bolas ou caso não queira nesse formato, é vertido dentro de formas retangulares para fazer barras, que depois de frias podem ser cortadas em tabletes.
Se feito em bolas é em geral depois enrolado em palha seca de bananeira e de uma tira de sua fibra se faz o amarrio por constricção.
Alguns produtores acrescentam ao sabão artesanal ramos batidos da herbácea chamada mané-turé (também conhecida por mané-magro e isopo, Leonurus sibiricus, Lamiaceae), que garante um sabão que produz muita espuma.
Outros ainda somam a soda cáustica, produto químico que apressa o processo de produção para um dia, pois pode levar até três no sistema tradicional. O caso é que o sabão sodado é inadequado para a pele, prejudicando as principais indicações do sabão de bola.
* Texto e pesquisa: Ulisses Passarelli
** Informante: Elvira Andrade de Salles (1995) e José Maria do Nascimento (2013), naturais de Bias Fortes / MG.
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