De como um antigo código dificultava as manifestações populares...
No mais recente livro
do professor Gaio
lê-se na íntegra a transcrição que meticulosamente fez do Código de Posturas de
1829, de São João del-Rei, um precioso documento para estudo histórico e
análise social dos costumes então vigentes.
O código discorre sobre tudo o que concerne ao aspecto
físico da urbe, saúde pública, regras para obras, segurança, vias de trânsito,
comércio, educação, comportamento, propriedade, etc., perpassando
insistentemente sobre toda sorte de limitações às atividades sociais dos escravos
e quase que por extensão ao cidadão comum.
Como que num espelho, vê-se nos artigos do código,
refletido claramente, uma divisão social e uma comunidade preocupada com
possíveis revoltas populares ou escravas, coibindo ajuntamentos de povo, diversões,
atividades variadas.
Neste sentido e ainda que superficialmente, ocorre a
dificuldade imposta à vivência da cultura popular, sujeita a diversas
proibições. Senão, vejamos a compilação abaixo que segue comentada:
Título IV – Da
Segurança Pública - Cap.I
Art.99
“É
proibido pedir esmolas para quaisquer invocações. Multa de 4$rs e prisão de 4
dias. Excetuam-se a Misericórdia, as Irmandades do Santíssimo, das Almas e as
que tiverem nos seus compromissos licenças para pedir esmolas.” (p.23)
Art.100
“Nos
casos do artigo antecedente em que é permitido pedir esmolas, é proibido aos
que as pedirem levar imagens. Prisão de um dia e do dobro nas reincidências.” (p.23)
Os dois artigos supra, dificultavam sobremaneira, se
cumpridos a rigor, a prática das manifestações populares de folias (de Reis, de
São Sebastião, do Divino), que são desde sempre pedintes de ofertas em nome do
santo estampado na bandeira ou estandarte. Bandeiras nos meios populares são
equiparadas às imagens, tratadas com as mesmas prerrogativas rituais.
A permissão de esmolar se abria porém a irmandades
religiosas plenamente constituídas.
Do século XVIII ao princípio do seguinte, existiam em São
João del-Rei os esmoleres, espécie de ermitões que andavam pelos caminhos
portando oratórios de pescoço, assim chamados pequenas caixas de madeira
contendo a imagem de um santo, penduradas ao pescoço por uma tira de couro. Os
fiéis beijavam o santinho e ofertavam um óbolo na intenção de uma obra
religiosa. Naturalmente o artigo também se aplicava sobre este costume.
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Recorte de uma aquarela de João Maurício Rugendas, de 1824, retratando o Bairro de Matosinhos, São João del-Rei, no qual se vê um ermitão com oratório de pescoço recebendo saudações. |
Cap.II – Sobre Medidas
Preventivas de Danos
Art.119
“Fica
proibido: §1 – O jogo de ronqueiras e busca-pés. §2 – O jogo de ar lançado fora
dos lugares em que for permitido por Editais da Câmara que ficarão sendo parte
destas posturas. Multa de 2$rs e dobro nas reincidências e prisão de 2 dias”
(p.25)
Tentativa de regulamentação das práticas pirotécnicas,
que afetaria um dos mais queridos costumes de muitas festas populares: a
soltura de fogos de artifício. Notadamente as festas juninas ficariam sem seu
característico busca-pé, modalidade rasteira de artifício querido da criançada
arteira.
A ronqueira era um artefato estrondoso de pólvora seca,
também chamado “tiro de toco”. Consistia num cano de ferro metido num pedaço
cortado de tronco de árvore, em angulação adequada. No seu interior se punha a
pólvora, espremida por uma bucha. O fogo era tocado no pavio, soltando a
explosão com grande estrondo. Era muito usado nas Festas do Divino.
Contudo a proibição não conseguiu exterminar o velho
costume. Os busca-pés ainda alcancei na infância, nas festas juninas da “beira
da praia” (atual Rua Antônio Josino Andrade Reis, Centro de São João del-Rei,
no “Arraiá do Pito Aceso”).
Na
Festa do Divino de 1883, garante o jornal Arauto de Minas (n.2, de 17 de maio),
“não faltaram ronqueiras, fogos de vista”
.
Art.134
“Não
haverá espetáculo algum público sem licença da Câmara. Fica desde já fixado em
30rs a licença por dia de Cavalhadas. Para os outros espetáculos a câmara
taxará o preço da licença sem outra atenção que a qualidade do espetáculo, e
estado da povoação. Multa igual ao valor da licença e prisão de oito dias e o
dobro nas reincidências. Os presépios não terão o passo da escritura.” (p.26)
As cavalhadas foram de quantos espetáculos um dos mais
aristocráticos. Eram mantidas em geral por ricos comerciantes e fazendeiros,
que dada sua influência na sociedade mereceram no código esta reserva especial
de autorização.
Mas outras dramatizações populares, não gozavam da mesma
sorte.
Dos presépios comentarei adiante.
Art. 135
“É
proibido as danças de batuques nas Casas das Povoações com algazarras de dia ou
de noite de sorte que incomode a vizinhança. Pena de prisão por um dia e
desfazimento do ajuntamento.”
Batuque é o nome genérico para diversas danças de
procedência africana, mormente com os dançantes dispostos em círculo, ritmados
por atabaques. Com vasto registro no Brasil, eram muitas vezes temidos pelos
senhores de escravos, sempre cuidando de uma imaginável trama violenta dos
servos, que em seus pensamentos poderiam se aproveitar dessas ocasiões de
entretenimento para extravasar sua revolta.
Mas a despeito das proibições os batuques perseveraram e
até meados do século XX não eram tão raros. Hoje apenas uns poucos grupos no
país mantém o batuque típico como atividade cultural, denotando a
extraordinária resistência e luta do negro.
A regulamentação de toda atividade social do escravo na
sociedade oitocentista era uma premissa dos mandatários públicos. A título de
exemplo serve o artigo seguinte:
Art.136
“É
permitido aos escravos tocar, cantar, dançar nas ruas e praças das povoações,
mas os juízes de paz poderão determinar a este respeito o que for conveniente
ao público, podendo-se recorrer dos mesmos para a câmara.”
(p.27)
A permissão dada estava sujeita à avaliação subjetiva do
juizado e havia a restrição noturna:
Art.137
“São
permitidos os quimbetes ou reinados que costumam fazer os escravos em certos
dias do ano contanto que não sejam de noite.” (p.27)
Quimbetes eram modalidades de batuque ora desaparecidos
que os africanos escravizados trouxeram. Poucas informações tem-se a respeito
de seu desenvolvimento. “Dança de origem
negra em Minas Gerais, indicada por Luciano Gallet”, registrou Cascudo.
Em outra obra do professor Gaio se
pode ler que esta dança acontecia em redor da fogueira diante da Igreja do
Rosário, em Conceição da Barra de Minas, finalizando os festejos do reinado,
após os congados. Dançavam os casais de negros madrugada adentro animados ao
som de dois atabaques.
Art.140
“Não
se pode tocar caixa pelas ruas sem licença dos juízes de paz. A contravenção
será punida com multa de dois dias de prisão. Excetua-se o toque de caixas
militares que é independente de licença (etc.)” (p.27)
Este artigo naturalmente prejudicava a execução de quase
todo folguedo popular. A maioria das danças folclóricas são ritmadas por
tambores, tanto mais os congados.
Cap.3 – Sobre
Contravenção contra as Pessoas
Art.151
“É
proibido jogar entrudo nas ruas e praças das povoações. Multa de 300 rs quando
o brinquedo for com cheiros, água limpa ou lavandas artificiais; e quando for
com as naturais; limões ou qualquer outras cousas que possa induzir perigo ou
causar dor ou com águas fétidas será a multa de 12$rs e prisão de três dias.”
(p.28)
O entrudo era a mais arraigada de todas as práticas
carnavalescas. No afã da diversão, os foliões do momo jogavam uns nos outros jatos
de água, limões de cera contendo perfume e pós farináceos. A brincadeira não
agradava a muitos pois quem não estava disposto a semelhante lambança acabava
também atingido. Houve muita perseguição ao entrudo mas ele perseverou por mais
um século. Jornais antigos da cidade dão conta de sua vitalidade ainda no
começo do século XX .
Além destes artigos pinçados no código de posturas, chama
ainda atenção este acórdão de vereança transcrito no “Fontes Históricas de São
João del-Rei”, bem mais antigo:
Acor 03 pg.23: em 28 de
junho de 1749 – “Acordaram mais em
mandarem notificar as pessoas que chegarem a esta vila com exercício de
presépio e bonecos para que despejem incontinenti digo despejem no termo de
três dias e desde já não usem do dito folguedo nesta vila e seu (termo) pelo
prejuízo e gravâmen que resultem ao povo dela com cominação de que usando o
contrário serem presos e serem castigados ao nosso arbítrio.” (p.47)
Neste documento a preocupação se volta para pequenas
companhias amadoras de teatro ambulante, apresentando dramatizações pelos povoados
e vilas do interior com finalidades lucrativas, fosse com bonecos (ventríloquo,
marionete, mamulengo) ou representando com atores vivos cenas do nascimento de
Cristo (presépios).
Os tais presépios ou presepes foram no nordeste brasileiro conhecidos
também por lapinhas.
O enredo dramático dos velhos presépios, uma vez perdida
sua vida própria, foi incorporados pelo folguedo das pastorinhas.
Sobre os bonecos há uma citação do jornal são-joanense A Tribuna, de 30/05/1915 da apresentação na Festa do Divino daquele ano dos fantoches do Mestre Isaías nas dependências do Pavilhão de Matosinhos.
Todas as citações aqui consideradas e outras que podem
ser rastreadas nos livros de história são reveladoras de quantas dificuldades a
cultura de raiz enfrentou para chegar até nós. A presença ainda hoje de
manifestações folclóricas nos leva a contemplar a excepcional força que tem, de
perseverar sobre muitas adversidades, mesmo as impostas sob o rigor de um
código autoritário.
Notas e Créditos
* Texto e foto-montagens: Ulisses Passarelli
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