Devoção a Nossa Senhora da Lapa em
Matosinhos (*)
A história
dessa invocação remonta aos tempos do Império Árabe, quando os mouros tinham
domínio sobre a Península ibérica. Quem a narra é Nilza Megale:
Almansor, califa de Córdoba, invadiu a
Lusitânia, devastando os campos, destruindo a ferro e fogo vilas e cidades,
martirizando os cristãos e profanando a clausura das casas religiosas. Após
assolar as províncias entre o Minho e o Douro, o representante de Maomé
dirigiu-se no ano de 983 para Quintela, atacando e destruindo o convento das
freiras beneditinas de Aguiar da Beira, que foram aprisionadas e levadas em
cativeiro. Algumas religiosas que conseguiram escapar esconderam em sombria
lapa situada nas proximidades uma pequena imagem de Nossa Senhora. Séculos
depois, em 1498, uma menina chamada Joana, muda de nascença, encontrou a imagem
e a escondeu na cesta que trazia o pão e as maçarocas que fiava. Julgando ter
achado uma boneca, com ela brincava vestindo-a e cobrindo-a de folhas
silvestres. Nesse inocente passatempo foi surpreendida pela mãe, que irritada
lançou ao fogo a santinha. Joana, recuperando milagrosamente a fala, protestou,
retirando das chamas o objeto de seus desvelos, e contou como havia encontrado
a linda efígie no fundo de uma gruta, na escarpada serra de Quintela. A mãe,
atônita, sentiu que seu braço direito estava paralisado e só recuperou os
movimentos quando ela e a filha foram à caverna e, colocando a imagem no antigo
lugar, se prostraram de joelhos aos pés da Virgem, que daí em diante se tornou
conhecida pelo título de Nossa Senhora da Lapa. Devido aos estupendos milagres
ali realizados, mais tarde foi construída sobre as pedras da gruta um suntuoso
templo, que até os nossos dias atrai a devoção dos povos circunvizinhos.
Consta que Joana
era pastora. O rebanho de cabras e ovelhas de que tomava conta tinha por hábito
pastar junto àquela gruta onde foi localizada a imagem. Seria de muito boa
virtude e obediência aos pais.
A devoção a Nossa
Senhora da Lapa foi trazida ao Brasil pelos portugueses, com maior destaque
para Salvador/BA (Convento de Nossa Senhora da Lapa) e Rio de Janeiro/RJ (Igreja da
Lapa do Desterro e Igreja da Lapa dos Mascates ou Mercadores).
Ao redor de São
João del-Rei, além de sua presença em Matosinhos, existe uma capela (foto abaixo) de que é
orago na zona rural de Entre Rios de Minas, povoação do Olho d’Água, junto ao leito
do “Caminho Velho” da Estrada Real. A autorização para a sua construção foi
concedida pelo Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Frei Antônio de Guadalupe, por
provisão episcopal de 07/06/1733. Foi uma capela particular, pois que VALE (1985) afirma expressamente: "Manoel Morais Coutinho possuía uma Capela de Nª.Sª.da Lapa, no Olho d'Água, aonde foi sepultada sua mulher Margarida Rodrigues, em 20.08.1737." (p.123) e ainda em outro trecho cita: "De um provimento de visita, em 1824, de D. Frei José da Santíssima Trindade: (...) 'Lapa dos Olhos d'Água, em uma Fazenda, cujo proprietário é obrigado a subministrar os guizamentos necessários ao culto.'" (p.195).
Capela de Nossa Senhora da Lapa em processo de restauração. 05/06/2009.
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Capela de Nossa Senhora da Lapa, Olhos d'Água (Entre Rios de Minas/MG) Caminho Velho da Estrada Real. 03/04/2016. |
A Virgem da Lapa, desde o começo dos festejos em Matosinhos, tinha seu dia próprio na terça-feira após Pentecostes. Sua festa era sequencial à do Divino (Domingo de Pentecostes) e a do Bom Jesus de Matosinhos (segunda-feira). Seu desenvolvimento era como o dos demais dias, como se pode conferir facilmente pela consulta aos antigos jornais da cidade: missa solene, Te Deum laudamus, música e quermesse alcançando grande popularidade.
É
uma das mais antigas devoções do bairro. Segundo consta, sua imagem existe em
Matosinhos desde 1773, patrimônio doado pelo vigário Padre Dr. Matias Antônio
Salgado.
Quando da
reintrodução da imagem restaurada na festa, em 2003, a Comissão do Divino se empenhou
muito em trabalhar a divulgação dessa devoção que já estava apagada. Graças a
um trabalho consciente e de paciência, bem fundamentado, foi resgatada uma
devoção perdida. Nos jornais, entrevistas, até no boca-a-boca sua devoção foi
se espalhando. Foram feitos santinhos, com sua imagem estampada, contendo no
verso e folhas internas, sua história, hino e oração, esta escrita por mim. O
hino foi gentilmente composto em 2004 pelo professor Abgar Antônio Campos
Tirado a pedido dos festeiros. Desde então, a cada ano, o imperador procede à
sua coroação e alguns festeiros carregam o seu andor ao redor do altar, numa
rasoura interna, sob aplausos e vivas, enquanto o Coral Coroinhas de Dom Bosco,
da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar executa o referido hino,
acompanhado ao teclado por seu compositor.
Coroação de Nossa Senhora da Lapa pelo Imperador José Clever de Oliveira,
flagrada em foto por Sebastião Machado Gomes ("Jacó") em 30/05/2009. No plano de fundo, à esquerda, o Coral Coroinhas de Dom Bosco, enquanto cantava o Hino de Nossa Senhora da Lapa.
Acervo: Comissão Organizadora da Festa do Divino. Gentilmente cedida por Antônio da Silva Serpa.
A simplicidade
dessas ações, que podem parecer limitadas, deu um resultado positivo, como se
vê com clareza pela popularidade desse momento da festa, francamente aclamado
pelos fiéis que ainda, em fila, beijam a imagem e se persignam antes da saída
da procissão e após esta concluída.
Tanto mais
exitoso me parece ao ouvir alguns congados e folias lhe cantarem louvores em
versos, em composições de típico improviso de seus mestres. A cultura popular
demonstra seu dinamismo, absorve velhos e novos saberes e devoções, recria e
cultiva sua fé.
MEGALE, Nilza
Botelho. 112 invocações da Virgem Maria
no Brasil: história, folclore e iconografia. Petrópolis: Vozes, 1986.
VALE, Dario Cardoso. Memória Histórica de Prados. Belo Horizonte: [s.n.], 1985. 344p. + anexos.
Notas e Créditos
* Publicado no Informativo do Jubileu do Divino Espírito Santo - Paróquia de Matosinhos, nº16, maio/2013. São João del-Rei: Comissão Organizadora da Festa do Divino. p.7. (As fotografias desta postagem não fazem parte do artigo original).
** Texto: Ulisses Passarelli.
*** Fotografias: Capela dos Olhos d'Água, Ulisses Passarelli; coroação pelo imperador, Sebastião Machado Gomes ("Jacó").
**** Durante a Semana Santa de 1906, a Orquestra Ribeiro Bastos tocou nas cerimônias na Igreja do Pilar, além das peças de costume, uma missa e credo da Senhora da Lapa (fonte: jornal O Repórter, n.10, 08/04/1906, acervo digital (site) da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida, São João del-Rei/MG).
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