"Trevas" é como popularmente se chama a quinta-feira da Semana Santa à guisa de um sombrio epíteto. Quinta-feira Santa. O nome é um corolário de todo o ideal de terror que se infunde nos fiéis durante a quaresma.
Foi o dia no qual Cristo foi aprisionado pela traição de Judas Iscariotes. Em São João del-Rei, é o dia tradicional da “
visitação das igrejas”, quando os devotos à partir das 18 horas vão aos velhos templos do centro histórico visitar um por um, fazer suas orações e ver as montagens cênicas alusivas aos últimos dias de Jesus como humano. Cada templo se esvazia de seus bancos ou os arreda; o assoalho é recoberto por muitas folhas de rosmaninho, que exalam odor característico, muito intenso; todas as imagens dos altares estão recobertas por
panos roxos; a luz está atenuada para melhor efeito da montagem, pois é sobre ela que se focaliza a iluminação; como fundo musical se ouve música barroca. A porta da igreja, meninos portando matracas, batem-nas de tempo em tempo, à chegada dos fiéis, apresentando-lhes uma sacolinha para recolher o óbolo, gritando mecanicamente ao estendê-la:
“para a cera do Santo sepulcro!” e matraqueiam. As ditas montagens são compostas por grandes painéis pintados com figuras bíblicas, ou, mais comumente, por manequins vestidos à imitação de apóstolos, judeus, etc., ou com a mesma função, santos de roca, despidos das vestes habituais e trajados com roupas e adereços que os fazem representar personagens. Vasos de flores, objetos variados, túnicas, barbas postiças, candelabros, cântaros, etc., vão compondo o cenário. Numa igreja se representa a cena da última ceia; noutra, por exemplo, o calvário; ainda outra, a ressurreição de Lázaro, além de outras cenas clássicas. A porta de cada igreja, adultos e crianças vendem cartuchos de amêndoas, arnica, alecrim de horta, manjericão e
rosmaninho, considerados bentos nessa época. Aliás, os altares também se revestem dessas ervas medicinais. Os passinhos estão também abertos à visitação, inclusive o oratório de Nossa Senhora da Piedade e do Bom Despacho.
Mais tarde, terminadas as visitas, aos fundos da Catedral do Pilar, num grande palanque, tendo por fundo um painel com a pintura da mesa da Santa Ceia, realiza-se a solene cerimônia do Lava-pés, quando o bispo com uma bacia, água e uma toalha, lava e enxuga os pés de doze padres, fazendo lembrança do gesto humilde de Jesus para com seus apóstolos. Grande multidão assiste à tocante cerimônia. Em muitas cidades ela é realizada, com maior ou menor pompa. O clima barroco e da música sacra são-joanenses a fazem em tudo especial.
Nas roças, ocorre ou ocorria, nessa noite, um interessante costume, agora, caso ainda existente, banido para os locais mais recônditos: indivíduos no escuro e calada da noite, vagando pelos quintais alheios, roubavam coisas fúteis, objetos de pequeno valor e ao levá-los tinham o cuidado de frisar bem o fruto do roubo com o respectivo indivíduo roubado.
No Sábado da Aleluia, tudo quanto fora roubado surgia no interior da
Chácara do Judas e ninguém o retomava para si, mesmo reconhecendo o seu objeto que sumira. Quando da leitura do Testamento do Judas, ao ser citado fulano ou sicrano nos versos, o mesmo recebia por herança o próprio objeto que lhe fora furtado.
Esse roubo consentido, não traz assim prejuízo material e em si contém uma crítica por ser ao seu próprio dono, aos olhos da comunidade, um presente devolvido pelo traidor de Cristo, uma farpa moral portanto. O sentido simbólico é profundo.
Em alguns lugares essa quinta-feira é justamente chamada “Dia da Judiaria”, pois além da ação dos larápios, fazem ainda travessuras a horas mortas, como abrir porteiras e galinheiros, comportas de moinhos, etc. Tudo é permito nesse dia “sem lei”, pois a lei maior do mundo, o Messias, foi preso por traição.
Judiaria é termo que remete aos atos dos judeus que condenaram o Filho de Deus, como também aos profetas que lhe prenunciaram. Essas questões ligadas aos judeus são constantes na cultura popular cristã. Com base nisso é que existe até o verbo “judiar”: fazer maldades, e daí, judiado, judiação, judiaria ...
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Uma quaresmeira (melastomatácea) da Serra de São José, flor muito representativa do período em questão. O roxo é a cor símbolo da quaresma.
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* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S. Passarelli, 2015
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