Painéis do purgatório e caixas de coleta em favor das almas
Hoje me veio à lembrança momentos da infância, nos quais entrava nalgum bar de São João del-Rei para comprar balas e doces e via na parede uma pequena caixa para depositar ofertas em benefício das almas. Estes óbolos eram recolhidos periodicamente por um zelador ou irmão das almas e destinados a celebrações em sufrágio das almas do purgatório.
Caixa das Almas, Bairro Tijuco, São João del-Rei/MG, no interior de um bar na localidade Buraquinho.
Muitos anos mais tarde pude compreender melhor o velho costume. De origem portuguesa, adaptado à realidade brasileira, era em sua origem uma composição em painel onde se pintava uma cena representativa do sofrimento das almas em chamas, ardendo no purgatório. Chamavam-lhe "alminhas". Apelando para tal comoção, naturalmente reflexiva sobre nosso próprio futuro, estava o painel ligado a um cofre onde o fiel depositava seu dinheiro, crendo que serviria às missas em favor das almas, único refrigério possível para elas.
Painel das Almas. Forro do hall de entrada da sacristia da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar,
São João del-Rei. Pintura do século XVIII, atribuída a Manoel Vítor de Jesus.
Em sua passagem por Minas Gerais na segunda década do século XIX, Saint-Hilaire (*) registrou em Rio Preto, na Zona da Mata: "Na extremidade que termina a povoação há uma cruz, e, segundo o costume, um tronco com um quadro que representa as almas do purgatório."
E Melo Morais Filho, certificou no fim do mesmo século (**): " ninguém há por aí que não tenha visto à porta de certas igrejas, dentro de tabernas e, nas ex-províncias do Brasil, em várias boticas, a caixinha das almas, com figuras pintadas ao alto, brancas e negras, com olhos de brasa e boca de fogo, levantando os braços no meio de labaredas vermelhas, listradas de amarelo..."
Aqui mesmo em São João del-Rei houve em tempos coloniais um Oratório das Almas, construção do século XVIII a muito inexistente, que ficava no Largo da Prainha, bem no centro da cidade, que nada mais devia ser que uma alminha à moda portuguesa.
Porém com o passar dos anos houve mudanças e se desvincularam os painéis representativos das caixas de coleta, dessacralizando o conjunto. Na Catedral do Pilar, nesta cidade, ainda se vê dois painéis que mostram bem a concepção barroca (no sentido da dramaticidade) do sofrimento após a morte: figuras humanas de mãos postas clamam preces em pleno sofrimento ígneo.
Detalhe central de medalhão frontal ao altar de São Miguel e Almas,
Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, São João del-Rei.
Mas além do aspecto propriamente piedoso, existe uma outra natureza nessas ofertas. O povo se habituou a ofertar moedas até nos pés dos cruzeiros e nas capelas de cemitério, por vezes de forma exposta (não depositada em caixas), sem preocupação aparente de desvio da esmola, ciente que, se deu às almas, a elas pertence. Caso alguém roube ficará com o pecado. Elas já viram sua verdadeira intensão e garantirão fartura em sua vida terrena. É o outro lado do costume, denotando uma relação de ordem mais devocional e de troca. Depositar uma esmola no cofre das almas durante sete segundas-feiras seguidas (dia votivo das almas), acompanhado de ave-maria e pai-nosso, garante ao devoto que sua carteira não falte dinheiro. Traz fartura. É uma simpatia divulgada aqui em São João del-Rei, conforme anotei em 2009.
As caixas tradicionais são pintadas de verde, cor votiva da Irmandade de São Miguel e Almas, e costumam trazer inscrições referentes ao objetivo ou a sigla S.M. (São Miguel), do santo guardião e condutor das almas noutro mundo, o espiritual.
Em meu modesto entendimento essas caixas podem ser compreendidas como elementos da cultura popular. Renato Almeida (***) nos ensina que "o folclore não é o que o povo aceita, mas sobretudo o que utiliza". A tendência já visível ruma para o fim das caixas externas em estabelecimentos e sua permanência exclusiva no interior das igrejas, distanciando de vez o costume de suas origens e readequando os comportamentos dos fiéis.
Caixa das Almas flagrada numa coluna do Mercado Municipal de São João del-Rei.
Referências bibliográficas
(*) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às Nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goiás. Rio de Janeiro: Nacional, 1944. 343p. p.52.
(**) MORAIS FILHO. Alexandre José de Melo. Festas e Tradições Populares do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.] 562p. p.270-1.
(***) ALMEIDA, Renato. Vivência e Projeção do Folclore. Rio de Janeiro: Agir, 1971. 161p. p.50.
* Texto e fotos (ano 2000): Ulisses Passarelli
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