As expressões não oficiais de devoção de algumas comunidades católicas se manifestam sob uma diversidade de formas populares, que muitas vezes incluem cantos. Sua tipologia tem uma modalidade específica chamada de excelência (sob corruptela, excelença e incelença). É um canto sagrado, no geral de finalidade mortuária, para se entoar nos velórios ou sentinelas de defuntos. Mas também pode ser invocatória e para livrar de males específicos (intempéries, pestilências). As excelências pertencem ao universo da religiosidade popular e no geral são entoadas por mulheres. Um aspecto típico, sendo de fato característica marcante da excelência é a sequência numérica de execução, que deve ser cumprida. Por exemplo: Uma lecontina ...
Duas lecontina
eu hei de rezar,
que essa chuva muito brava
ela há de parar!
Duas lecontina [palavra sagrada, reza]
que eu rezei, Jesus, Maria,
se não viesse ao mundo,
ai, de nós, o que seria?
Três lecontinas, quatro, etc. Cascudo (s/d) ensinou que as excelências são cantadas em uníssono, sem acompanhamento instrumental, à cabeceira dos defuntos, sem interrupção até o cumprimento de todo o rito sob pena daquela alma não se salvar, pois Nossa Senhora se ajoelha para ouvir o canto e só levanta quando acaba. O canto das excelências é conhecido em Portugal, embora os rituais mortuários tenham uma natureza cosmopolita.
É preciso atentar para a diferenciação entre as excelências e os benditos, pois ambos podem surgir nos velórios. Os dois são cantos sagrados, mas de estrutura não coincidente. O detalhe numérico crescente não acontece com os benditos, nos quais "o canto se repete indefinidas vezes, variando as dimensões das estrofes; em algumas circunstâncias, apresenta um caráter narrativo", segundo Gomes & Pereira (1995). Denota-se então o uso frequente da expressão "bendito, louvado seja!", como fórmula-feita, sendo cantados aos pés do defunto. Gomes Neto (1979) se refere em especial ao fato de a excelência ser "uma súplica ao santo, enquanto o bendito é-lhe um canto de louvor..." Ainda sobre o formato numérico do canto das excelências, esclareceu Poel (1977):
(...) nos livros chamados de excelências, são pequenos cantos sempre repetidos 7, 9 ou 12 vezes, cantados por parentes, amigos e vizinhos em redor de um defunto adulto durante a sentinela noturna. (...) ao mesmo tempo são cantos de despedida pelos quais o povo desabafa seus sentimentos de tristeza e desespero. Nesse contexto há abusos de bebidas alcoólicas. (p.18)
A devoção a Nossa Senhora da Lapa rendeu um curioso exemplar do cancioneiro religioso, coletado em Santa Cruz de Minas/MG, cujo desenrolar dos versos em quadras, rimadas no sistema ABCB, tem um caráter enumerativo crescente, típico das excelências:
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Imagem setecentista de N.S.da Lapa, Santuário do Sr.Bom Jesus de Matosinhos, São João del-Rei/MG. |
Nossa Senhora da Lapatem uma estrela na testa,foram os anjos que puseramno dia de sua festa.
Nossa Senhora da Lapatem duas estrelas no rosto, foram os anjos que puseramno dia de seu encosto.
Nossa Senhora da Lapa tem três estrelas na mão,foram os anjos que puseramno dia de São João.
Nossa Senhora da Lapa tem quatro estrelas nos pés, foram os anjos que puseramno dia de São José. Gomes & Pereira (1995) registraram uma versão dessa excelência em São Gonçalo do Abaeté/MG, classificando-a como "de invocação":
Nossa Senhora da Lapa
Com seu sinale [sinal] no rosto
foi os anjos que lhe pusero
no dia 01 de agosto. (p.314)
(segue: 02 de agosto, etc.)
Referências Bibliográficas
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.
GOMES NETO, José. Alguns apontamentos sobre incelenças. Revista Norte-rio-grandense de Folclore, Natal, Comissão Norte-rio-grandense de Folclore, n.1, jun.1979, p.46-60.
GOMES, Núbia Pereira de Magalhães, PEREIRA, Edimilson de Almeida. Do presépio à balança: representações sociais da vida religiosa. Belo Horizonte: Mazza, 1995.
POEL, Francisco van der, Frei. Deus vos salve, Casa Santa!: pesquisa de folc-música religiosa. São Paulo: Paulinas, 1977. 87p.
Notas
* É corrente em São João del-Rei um ponto de umbanda, da linha dos baianos, com pequenas variantes, que cita esta invocação mariana:
"Nossa Senhora da Lapa,
da lapa do Bom Jesus!
Baiano quando chega,
ele vem aos pés da cruz."
No segundo verso existe uma alusão expressa ao Bom Jesus da Lapa, uma das maiores expressões devocionais baianas, centrada no vale do Rio São Francisco.
** Para saber mais sobre Nossa Senhora da Lapa clique neste link:
Virgem da Lapa
Créditos
Texto: Ulisses Passarelli.
Fotografia: Iago C.S. Passarelli (14/09/2013).
Informante das excelências (lecontina e N.S. da Lapa): Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas/MG, 1996.
Revisão e melhoramentos: 31/03/2025.
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