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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Bumba... meu boi!

“Praça de Touros – No Domingo effectuou a Companhia Tauromachica mais um concorridissimo espectaculo, tendo havido variadas sortes, nas quaes todos os artistas foram bastantemente applaudidos. Poderiam entretanto mais fazerem, serem muito mais felizes se tivessem encontrado rezes mais bravas. No Domingo haverá novo espectaculo.” (O Combate, n.171, 04/06/1902)



O texto em epígrafe revela como noticiou um antigo jornal de São João del-Rei acerca das touradas, àquela época muito queridas. Elas faziam as alegrias nas festas do Espírito Santo em Matosinhos. Essas corridas de touro foram proibidas em 1934, durante o governo Getúlio Vargas. 

O desenvolvimento da consciência protecionista tem evoluído e combatido qualquer forma de entretenimento que implique em estresse e maltrato ao animal, tal como a farra do boi no sul, a rinha de galos (desde longa data proibida) ou a de canários da terra, assim também as antigas praças de touros.

Mas no teatro folclórico o boi é personagem querido e persevera sua mística na representação dos folguedos, encontrando seu ponto alto no bumba-meu-boi, um dos mais expressivos autos da cultura popular nacional.


Curiosa fantasia carnavalesca flagrada no carnaval de São João del-Rei em 2013. 


O bumba é o um dos folguedos mais importantes do país, vastamente distribuído em território nacional, praticamente conhecido em todos os estados, em versões mais simples ou complexas, congregando em torno de si muitos personagens, cantorias, músicas e um belo efeito visual.  

Sua matriz é um boi de fingimento, ou antes, armação imitando bovino, sob o qual se mete um sujeito a dar cabeçadas nos circunstantes, com música, cantoria e dança. É de remota origem europeia, conhecida desde longa dada em Espanha, tal como em Portugal. Mas aqui o brasileiro soube inserir todo um complexo cultural formado em torno do gado, um verdadeiro ciclo temático que contribuiu para a nova fisionomia do folguedo. 
Mas por oras este post se limita a listar as poucas presenças do bumba-meu-boi aqui pelas Vertentes de Minas. 

Informações dão conta que no passado foi conhecido no distrito de São Miguel do Cajuru, em São João del-Rei, segundo SACRAMENTO (2000), saindo na festa do padroeiro, São Miguel Arcanjo, em setembro: "Lembro-me de uma pessoa travestida de boi, cabeça com chifres, restante coberto por pano estampado animando e dando carreiras nos mais distraídos e nos meninos". O mesmo autor, em outro lúcido e importante registro (2010), informa ainda sobre o boi na Festa do Carmo, no povoado do Caquende, também em território são-joanense: "assustavam as pessoas, causando algazarra geral." 


Noutro de nossos distritos, São Gonçalo do Amarante, também é conhecido, com a particularidade de sair no Domingo da Páscoa antes da queima do judas, de rua em rua até terminar junto à Chácara do Judas onde concluía seu desfile dando lugar ao ritual de queima do boneco. É o boi malhado, nos dizeres do informante Lourival Amâncio de Paula, o "Vavá", baluarte da cultura local. 


Meu pai, David Passarelli, que em 1968 trabalhou na mineração do Penedo, em Ritápolis, teve oportunidade de lá ver um grupo desses pelas ruas poeirentas, a correr atrás da molecada em grande alarido. Infelizmente não se lembrava de qual era a festividade. 


Pude observar um boi no carnaval da cidade de Ritápolis em 2001, inserido no bloco Enterro do Zé Pereira. O Boi tinha a aberração de ter duas cabeças. Em Muqui / ES, confirmou-me pessoalmente o folclorista Affonso Furtado, também foi registrado um boi de duas cabeças.


Em Coronel Xavier Chaves ainda é realizado com o nome de boi-de-caiado, originalmente no período junino na comunidade rural onde surgiu (povoado da Cachoeira) e depois, transposto à cidade, ingressou no ciclo festivo carnavalesco. 
Versão bastante simples do bumba-meu-boi, resumida ao boi de fingimento e aos tocadores (sanfona, caixa, pandeiro, violão e eventualmente outros instrumentos). Não há enredo, só a dança do bicho. O homem metido sob a alegoria de animal, promove correrias atrás dos circunstantes e aos corcovos deixa as crianças espavoridas. Sai em diversas épocas do ano, quando houver ocasião propícia, sobretudo nas festas juninas. O ritmo é alegre, com um cantador solista tirando versos improvisados insistentemente contraponteados pelo coro, com um refrão tradicionalíssimo: “_ Esse boi é meu! _ Êh, boi! / Esse boi de caiado! _ Êh, boi! / O meu boi tá cansado! _ Êh, boi!, etc.” (Coronel Xavier Chaves, 1995, informante José do Rosário Anacleto, carinhosamente conhecido por "Zé Carreiro"). É possível que nome do boi seja corruptela de "gaiado", ou seja, de grandes galhas, chifres avantajados. 

Em Santa Cruz de Minas encontrei o boi em 2002, inserido no Bloco das Piranhas.

PELLEGRINI FILHO (2000) registrou em fotografia o boi no carnaval de Tiradentes. Naquele município tradicionalizou-se sob a alcunha do próprio organizador: "Boi do Culote". 

Notícias orais dão conta que já houve também em Resende Costa

Sobrevive em Barroso, arrastando multidão na abertura do carnaval, sob o nome de "Boi Mamado". Notícias jornalísticas do ano de 2019 davam conta que o bloco existia a catorze anos e ressentia naquele ano de desfilar acompanhado por carro de som em vez da tradicional bandinha, devido à falta de apoio do poder público municipal, segundo matéria consultada. 

Dores de Campos mantém o Boi do Major, tradição arraigada, musicalizada por uma banda de metais, formada por músicos dorenses. Após um período de paralisação, foi revitalizado em 2017 e segue em atividade, movimentando o boi para alegria das crianças e adultos. O nome do bloco remete à alcunha do músico local Dácio Silva, trombonista muito querido na comunidade. 

São João del-Rei conhece a tradição desde longa data, desgarrado no meio de blocos de carnaval, sobretudo das bandas do Tijuco, como o boi flagrado na fotografia desta página, vindo das Águas Férreas, metido no homônimo Bloco das Piranhas. 

Boi-de-carnaval, das Águas Férreas, Bairro Tijuco, São João del-Rei, 1992.

Em Prados é onde a tradição se conservou mais forte, com alguns grupos bem preservados que conservam nomes próprios. São conhecidos como boi-mofado, arrastando uma multidão atrás da batucada, movida por suas marchas e refrões... Êh! Boi! Desce acompanhado pela mulinha e pelo toureiro, e ainda, mascarados, que vem na esteira do cortejo. 

Boi-mofado, Prados, 2000. 


Ainda em tempo, vale mencionar o Boi de Caveira, tradição da comunidade de Pedra Negra, que originalmente se desenvolveu tendo ao centro uma estação da Estrada de Ferro Oeste de Minas, no município de Bom Sucesso, área limítrofe com o Campo das Vertentes, mas já na Mesorregião Centro-Oeste de Minas. Com a invasão das águas da Represa do Funil, a comunidade foi inundada. Na margem oposta do Rio das Mortes (esquerda), se formou a comunidade de Nova Pedra Negra, no município de Ijaci, este sim, no Campo das vertentes, microrregião de Lavras. 

Lavras que aliás possuiu segundo LIMA (1970) um bumba-meu-boi que, por sua descrição em um paper gentilmente ofertado pelo Professor Affonso Furtado, do Acervo do Projeto Reisados Brasileiros, tinha uma estrutura que recordava tanto os bois nordestinos quanto os catarinenses, distante do padrão regional dos outros bumbas citados nesta postagem. O Bumba-meu-boi de Lavras contava com um entrecho dramático no qual o Vaqueiro, ferido pelo boi, deitava em dores junto ao chão, onde era acudido pelo Doutor, que o curava com esfuziante alegria da troupe. Havia ainda um entremeio com a dança das fitas; e personagens animais e fantásticos, como o Cavalo Marinho, o Urso e a Bernúncia. Sem dúvidas um caso inusitado para a geografia do boi e está a merecer uma análise meticulosa.


 Referência Bibliográfica

COIMBRA, Pedro (Org.). Às margens do Rio Grande: registro histórico-cultural das áreas diretamente afetadas, de entorno e de influência da UHE Funil. Consórcio do Aproveitamento Elétrico do Funil. Lavras, 2012. 230p.il. 

LIMA, Jacy de Sousa. O bumba meu boi em Lavras. Comissão Nacional de Folclore, Rio de Janeiro,  Documento n.576, 19 de março de 1970. 

SACRAMENTO, José Antônio de Ávila. Alguns Estudos Barroquizantes (ou "Estrondoso Brado") acerca do antigo arraial de São Miguel do Cajuru. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, n.9, 2000.  

SACRAMENTO, José Antônio de Ávila. Caquende. Jornal de Minas, São João del-Rei, nº125, ano 10, 28/05 a 03/06/2010.

PELLEGRINI FILHO, Américo. Turismo Cultural em Tiradentes: estudo de metodologia aplicada. São Paulo: Manole, 2000. 188p.il. Prancha 28E. 


Referências na internet

Boi Mamado abre o carnaval de Barroso nesta quinta-feira. Barroso em Dia, 28 de fevereiro de 2019
Disponível em: https://barrosoemdia.com.br/destaque/boi-mamado-abre-o-carnaval-de-barroso-nesta-quinta-feira/Acessado em 17/10/2021, 16:17h.

Bloco do Boi Mamado abriu o carnaval de Barroso 2019. Barroso em Dia, 01 de março de 2019. Disponível em: https://barrosoemdia.com.br/destaque/bloco-do-boi-mamado-abriu-o-carnaval-barroso-2019/ Acessado em 17/10/2021, 16:20h. 

Para a alegria da criançada dorense, o Boi do Major está de volta. Portal Dores de Campos. Disponível em: https://portaldoresdecampos.com.br/para-a-alegria-da-criancada-dorense-o-boi-do-major-esta-de-volta/ Acessado em 17/10/2021, 16:35h. 

Organizadores do Boi do major estão pedindo ajuda dos dorenses. Portal Dores de Campos. Disponível em: https://portaldoresdecampos.com.br/organizadores-do-boi-do-major-estao-pedindo-a-ajuda-dos-dorenses/ Acessado em 17/10/2021, 16:37h. 

Observações: 

* Para saber mais a respeito ver: 
 Pequena Bibliografia do Bumba-meu-Boi 
Origens do Reisados Brasileiros (sobretudo o item 04 - O Boi, um caso à parte)
** Texto e fotografias: Ulisses Passarelli
*** Postagem revista e ampliada em 17/10/2021.  

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