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quarta-feira, 23 de maio de 2018

Pentecostes em crônica: a Festa do Divino em São João del-Rei

Certas sutilezas acontecem no jubileu pentecostal de Matosinhos, em São João del-Rei. Na correria da grande Festa do Divino, na agitação de cores e sons, movimentos coreográficos e povo, celebrações e reencontros... a gente não percebe alguns detalhes. 

Moçambique de Passa Tempo: presença sempre marcante. 

Assim, por exemplo, o zelo dos congadeiros em levantar o mastro na abertura da festa - a forma como olham ao céu, vislumbrando a bandeira que sobe - é um olhar de esperança, de expectativa, que não se pode descrever, mas apenas sentir pelo convívio ou pela observação com vista clínica. A imagem transcende ao plano material. É telúrica! Esperança de uma grande festa, equilibrada e feliz. O instante imediato do levantamento, a inclinação do madeiro, se reveste de certa tensão, que logo se esvai quando o mastro se verticaliza na posição final. Se o dançante beija o mastro e bate-lhe a fronte para buscar forças, logo, gente da assistência, sem saber por qual razão, repete o gesto. A descida dos mastros é entusiástica, concorrida. Muita gente aglomera em derredor, gerando preocupação aos responsáveis por algum eventual contratempo. Na sonorização se pede para guardar distância de segurança. Mas o povo junta, parece magnetizado; aguarda com ansiedade especial a descida do mastro do Espírito Santo, o mais alto. Querem ver como vai ser, mesmo já sabendo como acontece. É como uma aliança sagrada que é benta de novo, uma promessa que se renova. 

Moçambiqueiro de Pedra Negra entoa seu canto, lamento, louvor, prece!

A cavalgada traz à tona as origens rurais, o ruído característico de cascos no asfalto; o cheiro do estrume. A imagem urbana do casario, o comércio cheio de engenhos publicitários, tudo se contrapõe à vermelhidão dos estandartes e flâmulas, alvejadas ao centro pela clássica figura da pombinha milagrosa. A sua passagem anuncia a proximidade da festa. O povo o diz: olha a festa chegando, a cavalgada passou por aqui! Já se formou o vínculo da imagem dos cavaleiros à chegada do festejo. Ou seja: o objetivo anunciatório é cumprido de maneira natural, espontânea. 

Experiência e sabedoria: moçambiqueiro de Ibituruna. 

Quanto às folias no sábado, véspera do dia maior, o povo fica estático diante do coreto, hipnotizado, ouvindo uma a uma, todos os anos, comparando os estilos (toadas), evocando saudades da roça dos avós quando viam em tenra infância a chegada dos foliões; rememoram os pais que acolhiam as bandeiras e músicos folieiros dobrando o joelho ao chão, coando o café saboroso para servir com quitanda e queijo. Muitos vão à emoção. Folia mexe com as pessoas. "Quem gosta, gosta!", dizem... As folias carregam uma simbologia de um mundo rural, um elo perdido na modernidade, que a melodia resgata na memória, disparando como um gatilho a renovação da aliança com as raízes. (De novo as alianças...) No salão do café, há mais que broas, pães e biscoitos. A ornamentação é toda em branco e vermelho (tecidos, fitas, flores, bexigas de ar, bandeirolas). O quadro negro traz mensagens escritas que saúdam ao Espírito Santo. O bolo tem uma pombinha em cima. É carinho, zelo. Bastaria o lanche, mas o tempero é amoroso. O ornamento aclimata os folieiros. Ali se confraternizam, dialogam, membros de uma e outra folia. Amizades se selam e renovam. Relembram-se velhos participantes que já partiram para o plano maior.

Capitão Tadeu, congado anfitrião de Matosinhos. 

Alvorada é sacrifício de poucos. Tradição. Madrugadinha o caixeiro acorda, pois o despertador zoa irritante. A missão chama: "Quando chega a hora é hora, vamos com Deus e Nossa Senhora!". Um desjejum rápido e já basta. Muito frio nessa época. Lá fora o vento gelado não é receptivo, mas é preciso bater caixa às 6 horas no Santuário. O sino já chama no bronze. Este ano foram dois grupos de caixeiros, com cerca de quatro caixas cada, um de Matosinhos, outro de Santa Cruz de Minas. É coisa rara de se ver. Em verdade quase ninguém vê e nisso reside a mágica do ato. Não se faz para público, não é para aplauso. É para o Divino. Ele o vê e isto basta ao caixeiro. Isto lhe é um suficiente estímulo para sair de seus cobertores ao frio da aurora. Alvorada é saudação ao dia maior. É pedir forças para a tarefa imensa que se seguirá ao longo do dia. E o fazem com tamanho vigor e dedicação como se uma multidão os assistisse; multidão que não passa de meia dúzia de aventureiros que se dignaram acordar tão cedo em gélida manhã. Alvorada é para Deus; não para plateia. Se canta, se reza, se louva. 

Capitães de Barbacena. 

Congados vão chegando pelas oito e meia, nove... O largo se engalana em festa. A Deusa Ceres (*) assiste a tudo estática, impassível, imponente. Em verdade tal estátua fica ainda mais bela nesse dia. 

Devoção à bandeira, com o congado do Bairro São Dimas. 

As pessoas acorrem para apreciar. Se socializam, reencontram, dialogam. Fazem comentários elogiosos sobre a desenvoltura de um sanfoneiro, a expressividade de um capitão, o bailado de um catupé animado, a marcialidade de um congo, o zunir das gungas de um moçambique, o bater idiofônico das manguaras de um vilão. Alguns devotos beijam bandeiras e se persignam. Capitães se saúdam ritualisticamente. Há uma forma de fazê-lo. Não basta acenar ou pegar nas mãos. Se dois grupos se encontram frente a frente podem trocar de bandeiras, cada uma beijando a do outro, como cortesia e respeito. Praxe. 

Congo de São Gonçalo do Amarante. 

No salão Rainha aguarda ansiosa a passagem do congado predileto, elogiando em versos seu vestido abalonado. E sai toda ciente de sua majestade que é real de fato. Na retaguarda do terno de dançantes caminha solenemente. Sinhô Rei vai também... 

Moçambique de Ibituruna em marcha. 

A passagem de tão álacre cortejo suscita a saudação da vizinhança que o aplaudi das janelas e sacadas. Na porta acorrem; na calçada se postam. Dos peitorais das janelas toalhas de cor ornam as fachadas; vasos floridos e imagens são postas. A rua se sacraliza. Não se vê isso todo dia. Festa do Divino mexe com o sentimento. Os dons se esparramam como uma brisa que sopra. Não é raro ouvir comentários que "essa festa é linda!" ou "é minha festa preferida!" ou ainda... "eu lembro da minha mãe..." ... "meu pai era dançante!" 

Nossa Senhora do Rosário, a grande Mãe, estampada na bandeira do catupé de Cláudio. 

Como descrever tanta emoção? Será mesmo possível? Vai vendo... No adro o povo forma corredor. Congados passam pelo meio. Na porta o imperador está postado, como anfitrião maior. De cetro em riste saúda e cumprimenta. Presenteia com uma lembrança artesanal, uma pombinha. O congado passa o portal sagrado e entra no céu simbólico, assim tratada a nave do templo. Diante do altar é de ver e não esquecer a respeitabilidade extremada dos congadeiros ao altar com suas imagens. Que exemplo eles deixam! Rezar com alegria!!! Pra todo lado é gente filmando dos celulares e fazendo selfs. Todos querem uma lembrança. Visitantes se esbarram daqui e dali, gente de fora que veio ver as maravilhas da fé e da cultura.

Moçambiqueiro são-joanense toca um pantagome feito de calotas de carro. 

Almoço é alarido. Comida boa, de muita fartura, limpinha, cheirosa. Bom tempero mineiro. A equipe da cozinha é admirável. Trabalho árduo, dificílimo. Aquilo sim é abnegação! Cozinheira não vê festa, mas festa sem ela não existe. 

Esperança de futuro com jovens e crianças no congado de Resende Costa.  

O Imperador já está agora lá na Igreja de Santa Terezinha. Nossa Senhora do Rosário também. É preciso escoltar seu andor ao santuário. Um imenso cortejo se forma, serpenteante. Escoa em sons e cores pelas ruas, maciço, uniforme, gigante. O pessoal do Departamento de Trânsito e da Guarda Municipal se empenha de corpo e alma para que tudo dê certo; e dá. Sem eles vira uma esculhambação. A chegada ao Santuário é apoteótica. Quem o viu não esquece. Quem não o viu não sabe o que perdeu... 

Moçambiqueiros de Itaguara escoltam o andor de Nossa Senhora do Rosário. 

Curioso também é a indagação constante das pessoas sobre quem é o novo imperador. Todo ano é a mesma pergunta: "Quem vai ser coroado?" A cerimônia em si todos querem ver em detalhe, esticam pescoço, saem dos assentos. O Imperador vira o foco. Quando um deixa a coroa, é logo acolhido pelos dos anos anteriores, como membro de uma fraternidade. E de fato o é. Deveria aliás haver um "Conselho dos Imperadores", agregando como membros natos todos (e apenas) os imperadores de cada ano, para com sua experiência ser o braço direito do Presidente da festa. 

Carrancas também esteve presente com sua congada característica
pelo som raspados dos reco-recos de bambu. 

O imperador que deixa a coroa parece leve, sorri aliviado. O outro está tenso, fisionomia carregada. É o peso da responsabilidade. A coroa pesa. Senhor Bispo o coroa e o apresenta aos fieis sendo então ovacionado. Muitos querem cumprimentá-lo fotografar ao seu lado. O imperador é uma autoridade simbólica. 

Coronel Xavier Chaves, sempre presente com plena autenticidade. 

A procissão é um momento sagrado que a multidão se envolve como uma massa humana focada num só objetivo. Seguindo a liteira de Santo Antônio e os andores de Nossa Senhora da Lapa seguem congadeiros, imperadores e mais devotos, em preces e cantares. Gente precisando de graças especiais "disputa" oportunidade de carregar o andor. É hora de um sacrifício que vale o pedido especial. Quem precisa mais quer entrar com o andor nos ombros pela igreja. É como se o pedido estivesse entrando no céu. Assim o povo o vê. 

No sorriso a fé! Capitão Ganair, de Conselheiro Lafaiete, presença contínua desde 1998. 

Que mundo de detalhes há para observar! Quanta riqueza humana quebrando a rotina escravizadora. A Festa do Divino se faz jubilar na satisfação coletiva que gera. É festa que emociona. É festa que fluidifica a fé na cultura inseparável. 

O grande jubileu acolhe fiéis para evangelização, recebe pesquisadores e amantes da cultura, abre os braços para o turista que vem conhecer as potencialidades culturais de um território riquíssimo. Ao visitante a Festa do Divino proporciona o exótico; ao autóctone, reflete suas origens. No equilíbrio entre um e outro polo, congadeiros e folieiros, ao seu modo, são os grandes atores, que expressam seu devocionário e cultivam seus saberes. Visitar São João del-Rei e conhecer a Festa do Divino é se deparar com uma relíquia, é religar consigo mesmo, é um ato de imersão nas múltiplas etnias que formam a nacionalidade brasileira, é enxergar a nós mesmos num espelho, que reflete uma parte significativa da fé brasileira.

De antigas raízes no rosário o congado de Ritápolis marca presença. 
  
As mulheres do Pilão de Nhá valorizam a cultura rural. Caquende. 
  
Como uma onda azul, chegam os marujos de Congonhas. 

Tradicional guarda de catupé de Santa Cruz de Minas, sob a bandeira de São Miguel. 
    
Marujos de Senhora das Dores se apresentam ao Imperador.  

Capitão do congado de Santana do Garambéu. 

Congado de Itutinga durante o Cortejo Imperial. 

Congado de Resende Costa chega no adro do Santuário. 

O cortejo adentra o adro do santuário. 

Notas e Créditos

* Deusa Ceres: nome corriqueiro de um chafariz de ferro fundido sito ao centro da Praça do Sr. Bom Jesus de Matosinhos. tal fontanário é hoje entendido como uma alegoria ao Verão; mas o nome popular "Deusa Ceres" sobrevive pelo uso comum e automático. 
**Texto e acervo: Ulisses Passarelli
*** Fotografias: Iago C.S. Passarelli, 20/05/2018
**** Obs.: a disposição das fotografias no texto é aleatória e de caráter meramente ilustrativo, sem ligação exata com os parágrafos. Revisado e ampliado em 13/11/2021 e 07/03/2024. 

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