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quinta-feira, 2 de abril de 2015

Nossa Senhora do Desterro

Na hagiografia popular, a imagem de Nossa Senhora do Desterro é muitas vezes referida como "Fuga para o Egito". Representação estampada, pintada ou em forma de imagem de gesso, madeira, etc., do episódio bíblico da fuga da Sagrada Família para o Egito, após São José, o Carpinteiro, ter sido avisado em sonho por um anjo, que Herodes mataria os inocentes (Mt 2, 13-22). 

Figura assim numa viagem: a Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo, sobre um jumento e São José puxando-o por uma corda, tendo na outra mão o farnel, como viajante. Os evangelhos canônicos não descrevem a viagem em si, seguindo a narrativa direto para o batismo e início da vida pública de Jesus. Assim se desconhece os feitos de sua infância. Porém os textos apócrifos narram a infância de Jesus, os temores dessa viagem e os fatos acontecidos. 

O Evangelho Apócrifo da Virgem Maria, por exemplo, descreve a penosa viagem repentina até Alexandria, com o burrico passando imperceptível em meio à profusão das caravanas de mercadores. O Evangelho do Pseudo-Mateus narra fatos extraordinários e prodígios acerca desse desterro, com feras ao lado do Menino Jesus como se fossem animais mansos, a altíssima palmeira se reclinando sob sua ordem para abastecê-los de frutos, dentre outros fatos lendários. Já o Papiro Bodmer e o Proto-evangelho de Tiago oferecem uma versão diferente: ante o massacre dos inocentes, não citam a fuga em si, mas relatam que a Virgem Maria enrolou o Messias em faixas e o ocultou dos soldados de Herodes numa manjedoura de bois. 

Considerados sagrados pelo povo, os textos apócrifos contribuíram sobremaneira para a composição de várias lendas relacionadas a este episódio bíblico. Do amálgama de fontes antigas e tradições seculares brotou a crença. São correntes na região por exemplo, fatos lendários relacionados à saracura, ao gambá e à embaúba, relacionados à Fuga para o Egito, em parte já narrados neste blog, conforme indicam os links. A árvore da embaúba (família urticaceae, gênero Cecropia) ficou marcada na crendice: durante a fuga, atrás de uma velha árvore dessa espécie, muito grossa, ocultou-se Nossa Senhora com Jesus ao colo, de soldados romanos que os perseguiam. Muito mais tarde, teria sido numa embaúba que Judas Iscariotes se enforcou. A biologia não consente tal afirmação, pois o mapeamento botânico indica Cecropia como vegetal da América e não do Oriente Médio, onde não existe. Para a umbanda a embaúba é uma árvore de exu. 

Da Fuga para o Egito surgiu também a imagem de São José de Botas, o viajante, de cajado à mão, botas de canos altos aos pés. Nos tempos coloniais nas Minas Gerais, como aqui em São João del-Rei, donde procedem estas observações, São José de Botas foi muito querido como uma espécie de patrono emboaba e até mesmo dos bandeirantes paulistas, por sua figura de peregrino, caçando uma nova terra. Sua imagem aparece nalgumas igrejas. Protegeria os aventureiros que de longe vieram às nossas betas à cata do ouro, também eles, de alguma forma, desterrados... 

Desterrar é retirar, sair, expatriar. Então, crê o povo, que quando se reza para Nossa Senhora do Desterro, os males são desterrados de nossa vida, da casa, do trabalho, do caminho. É sob a força dessa invocação sagrada que fogem espavoridos os maus espíritos, as assombrações, as potências malignas que perturbam os seres humanos. Sua prece e invocação tem o poder de um expurgo, uma catarse, um livramento. Daí ser tão querida e respeitada. A analogia se faz pela imagem: assim como a Sagrada Família teve de sair de sua terra e fugir dos maus, hoje, em estado glorioso, tem o poder de fazer o contrário, fazendo os maus fugirem. 

Diante desse entendimento é que sabiamente, diz o povo em tom exclamatório ao ver ou ouvir um fato assombroso: "Nossa Senhora do Desterro!" É o que basta para isolar o devoto daquele malefício. Mas há sempre os mais supersticiosos, que na oportunidade complementam automaticamente com três batidas da mão direita fechada sobre uma superfície de madeira, dizendo: "isola!"

Fuga para o Egito. Cerâmica figurativa artesanal do Vale do Paraíba.
Acervo do autor. Artesã: Ismênia. Taubaté/SP. Déc. 2000.

Referências Bibliográficas

Bíblia Sagrada. 6.ed. São Paulo: Ave Maria, 1965. 1602p. + anexos.
MARTÍN, Santiago. O Evangelho Secreto da Virgem Maria. 24.ed. São Paulo: Paulus, 2012. 223p. 

MORALDI, Luigi. Evangelhos Apócrifos. São Paulo: Paulus, 1999. 393p.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografia: Iago C.S. Passarelli 

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