Há tempos este blog lançou a série "Quadrinhas de Amor", com quatro postagens. Durante a seleção daquelas trovas, apareciam também algumas de outras temáticas. Eram anotadas à parte e renderam a presente postagem, não tão romântica, mas certamente bem humorada, muito embora o tema do amor não esteja de todo ausente. Outros assuntos também perpassam as composições, muitas usando de verso-feitos, comuns a várias trovas: "Quando eu vim da minha terra", "Eu entrei pro mar adentro", "Lá do céu caiu um cravo", etc.
A autoria segue em desconhecido. Não identificada, supõe-se que seja anônima, ou pelo menos, o uso as fez assim. A oralidade as transmite, altera, extingue e renasce, mescla e constrói, mutila e sara. Eventualmente podem ser trecho de uma sequência maior, perdida ou desinteressada em sua função original. Ou, tão somente, fragmento de um canto, um excerto poético. Uma vez em uso folclórico tornam-se folclóricas. Patrimônio oral, advindo da cultura popular.
São cinquenta e quatro quadras independentes, correntes em São João del-Rei e Santa Cruz de Minas, provenientes de variadas fontes, colhidas durante os anos noventa do século XX. Em trinta notas de rodapé surgem informações complementares e explicações breves.
Eis a sequência.
* * *
Eu entrei por mar adentro
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Lá do céu caiu um cravo
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Pra brigar com os inglês [1],
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De tão alto desfolhou;
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Bebi chumbo derretido
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Quem quiser casar comigo
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Rotei bala nove mês.
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Vai pedir quem me criou.
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Borboleta pintadinha [2]
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Fui no céu contar estrela,
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Que pintou Nossa Senhora
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Só a do Norte separei;
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Eu quero que tu me pinta
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É por ser o mais bonito,
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O braço dessa viola.
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Só contigo casarei [3].
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Subi na corda da chuva,
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Eu não caso com viúvo,
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No estrondo do trovão,
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Que viúvo viuvou;
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Desci na corda da chuva,
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Não estou pra criar pinto
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Com dois coriscos na mão [4].
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Que outra galinha criou... [5]
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Abaixa-te, limoeiro,
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Santo Antônio Pequenino
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Quero apanhar um limão,
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Tinha os olhos de velhaco;
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Quero tirar uma mágoa
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Namorou Santa Luzia
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Que está no meu coração [6].
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Espiando pelo buraco [7].
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Tenho o meu dentinho de ouro,
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Quando eu era soldado
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Adornado de marfim;
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Meu chapéu era boné,
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As moças, nasce pros moços,
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Vestido de amarelo
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Os moços, nasceu pra mim... [8]
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Da cabeça até os pés.
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Eu mesmo cortei o pau,
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No fundo da minha horta
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Eu mesmo fiz a gamela,
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Tem um pé de beldroega [9],
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Eu mesmo namoro a moça,
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Tá parecendo com a cara
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Eu mesmo casei com ela... [10]
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Da minha defunta égua.
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Duas velhas muito velhas
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Cascavel no barranco
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Duas velhas saragota,
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Eu pego com a mão;
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Ouviu falar em casamento,
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Jaracuçu por ser pequeno,
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Uma velha cagô na outra [11].
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Bainha do meu facão [12].
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O padre foi celebrar missa
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O padre foi celebrar missa
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Na capela de Belém,
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Na capela de Santa Rita,
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Foi rezar Ave-Maria,
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Foi rezar Ave-Maria,
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Disse: “Maricas, meu bem!”[13]
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Disse: “Marica, bendita!”
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Sou filho do meu pai,
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Cascavel bateu guizo,
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Sou neto do meu avô,
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Caninana repicou;
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Sou filho do ganhar dinheiro
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Quem quiser casar comigo,
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Neto do mau pagador.
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Vai pedir ao meu avô.
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Esparramei feijão de corda
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Esparramei feijão-de-corda
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Na panela de gordura,
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Na panela de feijão,
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O feijão é bom sozinho,
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O baião é bom sozinho,
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Quem dirá baião-de-dois [14].
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Quem dirá de dois baião [15].
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Minha boca tá pedindo,
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Eu não caso com viúvo,
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Minha barriga quer comer,
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Que viúvo enviuvou;
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Cala boca, minha barriga,
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Eu não tô pra criar pinto
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Deixa a panela ferver.
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Que outra galinha deixou [16].
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Da banda de lá do rio,
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O cego estava escrevendo,
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Dá banda de cá meu bem,
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O mudo estava ditando;
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De baixo do pé de louro,
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O surdo muito atrevido,
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Doce de laranja tem.
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Atrás da porta escutando ...
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Vou mandar fazer um banco
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No alto daquele morro,
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Da raiz do fedegoso,
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Passa boi, passa boiada,
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Pra sentar os conhecidos,
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Um dia passou um homem
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Principalmente os invejoso.
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Com a calça remendada [17].
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Subi na bananeira,
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Não me importa que te morda
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Pra apanhar jabuticaba
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Marimbondo de ferrão,
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Veio o dono das laranjas,
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Te cutuca no subaco [18]
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_ Não me apanha essas goiaba...
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E te manda lá no chão...
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Quero ser marimbondo,
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Uma velha, muito velha,
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Mas não quero ser abelha;
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Não comia rapadura,
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Quero ser marimbondo
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Viu falar em casamento,
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Que faz a casa na telha.
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A danada ficou dura.
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Cigana, lê minha sorte,
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Sou pequenininha
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Qu’eu te dou cinco merréis [19],
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Do tamanho de um botão
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Depois que tiver lido,
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Trago papai no peito
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Além de cinco eu dou dez.
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E mamãe no coração.
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Eu gosto de um rapaz,
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Joguei o lenço pra cima,
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Mas ele não me dá bola
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Para ver onde caía,
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Por isto vou me afogar
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Caiu no colo de um velho,
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Num copo de Coca-cola [20].
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Cruz-credo! Ave Maria! [21]
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Eu pedi um copo d’água
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Moça que casar comigo
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Ela trouxe na gamela,
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Está servida de marido:
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Você deixa a casa fechada
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No almoço come pedra,
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Qu’eu passo pela janela [22].
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Na janta caco de vidro.
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Homem que casar comigo
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Se eu gostasse de você
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Está servido de mulher:
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Como gosto de repolho,
|
No almoço come pedra,
|
Te mandaria pro inferno,
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Na janta o que tiver.
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Pro diabo fazer molho.
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Camisa sobre camisa,
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Namoro na escola
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Camisa do mesmo pano,
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É uma grande porcaria:
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Se você não souber esse ano,
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Começa na sala,
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Só mesmo eu te contando.
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Termina na diretoria.
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Antes eu te amava
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Na janela do meu quarto
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Como um cravo no craveiro,
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Tem Jesus crucificado
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Hoje te desprezo
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Quem roubar meu namorado
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Como um porco no chiqueiro.
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Vai morrer esturricado...
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Com Deus me deito,
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Quando eu vim da minha terra,
|
Com Deus me levanto;
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Trouxe faca e facão,
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Eu na beirada,
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Pra cortar tornozelo,
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A negra no canto... [23]
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De valentão ... [24]
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Minha calça é de embira,
|
No fundo da minha horta
|
Suspensório de cipó,
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Tem um pé de cai-cai;
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Se quiser me namorar,
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Quem quiser casar comigo
|
Olha pela manga do paletó [25].
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Vai perguntar meu pai.
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Ia passando nesse caminho
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Santo Antônio querido,
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Ramo verde me chamou;
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Vós, de quem sois?
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Cala a boca, ramo verde,
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Me arranja o primeiro marido,
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Nosso tempo já acabou!
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Que o segundo, arranjo depois... [26]
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Se a perpétua cheirasse,
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Batatinha quando nasce,
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Era a rainha das flores,
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Esparrama sobre o chão,
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Como ela não cheira,
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Mamãezinha quando dorme,
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Ela não tem seus amores [27].
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Dá um peido no colchão... [28]
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Quem quiser saber meu nome,
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Senhora dona da casa,
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Não precisa perguntar,
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Seus agrados, nem por isso...
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Meu nome é ... (fulano)
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Tô aqui a tanto tempo,
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Residente nesse lugar.
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Nem café, nem mata-bicho! [29]
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Quem quiser ter bom sono,
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O meu chapéu tem três pontas
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Há de ser com boiadeiro:
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Tem três pontas o meu chapéu,
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Tá dormindo, tá sonhando,
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Se não tivesse três pontas
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Que as vaca tá no terreiro.
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Não era o meu chapéu [30].
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Créditos
- Texto, pesquisa e acervo: Ulisses Passarelli.
Notas
- Revisão: 21/05/2025.
[1]
- Informante: Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas. Inglês: é corrente a corruptela "inguileis".
[2]
- “Borboleta pintadinha” é um verso-feito, que aparece na composição de várias
trovas. Santa Cruz de Minas.
[4]
- Chuva de corda: chuva forte vista de longe, aparentando na linha do horizonte
o aspecto tracejado, com linhas ou cordas que descem do céu a terra.
[5]
- Expressão de rejeição aos futuros enteados.
[6]
- Variante registrada na folia de Reis de Belo Horizonte, Bairro Tirol: “Limoeiro, baixa a rama / que eu quero
apanhar limão, / pra tirar uma mancha preta, limoeiro, / que está no meu
coração.” Fonte: CD Fulias de Minas Gerais, Belo Horizonte, produção Carlinhos
Ferreira.
[7]
- Esta quadrinha, com letra idêntica, em julho de 2013 foi cantada no congado
da cidade de Barroso/MG, pelo Capitão Antônio Francisco dos Santos.
[8]
- A pronúncia corriqueira é adorado
(adornado) e dentin’ (dentinho).
Variante cantada em congado (São João del-Rei e Santa Cruz de Minas): “Dentinho de ouro... / adornado de marfim, /
negro velho gosta de congo (ou de
toco) / morena gosta de mim!” (diversas observações em campo, desde 1992).
[9]
- Beldroega: erva rasteira, portulacácea, comestível
sob a forma de saladas. Corruptela: "budruega".
[10] - Quadra muito difundida. Usa-se pronunciar
em sentido crítico para exemplificar alguém que louva a si próprio, auto-suficiente, como se
fizesse de tudo, do começo ao fim de um processo.
[11]
- Informante: Aluísio dos Santos, 1991, São João del-Rei.
[12]
- Leia mais a respeito nas postagens sequenciais FOLCLORE
DAS COBRAS – parte 1 e FOLCLORE
DAS COBRAS – parte 2.
[13]
- Duas quadras paralelísticas motejando um padre namorador. Motivo frequente no
anedotário popular.
[14]
- Não há rima. Parece fragmento de um canto ou poesia maior. Influência da
cultura nordestina, com a citação ao feijão-de-corda (por aqui, mais chamado
feijão-de-vagem, embora a expressão não seja de todo desconhecida) e
baião-de-dois, prato típico da Região Nordeste do país, referente à mistura do
arroz com feijão (este com caldo escorrido previamente), recebendo tempero
extra e eventualmente pedaços de alguma carne picados no meio.
[15]
- Variante ou sequência da anterior.
[16]
- Referência de negação a se tornar madrasta.
[17]
- Informante: Maria Aparecida de Salles, Santa Cruz de Minas, 1996. O palhaço
da folia de Reis do Arraial das Cabeças, Bairro Bonfim, São João del-Rei,
enunciava nas suas chulas: “No alto
daquele morro, / passa boi, passa boiada, / também passa o palhacinho / com a
sua namorada.” (1993).
[18]
- Subaco ou suvaco: axilas.
[19]
- Cinco merréis: cinco mil réis. Referência à antiga moeda do país.
[20]
- Inf.: Maria Aparecida de Salles, Santa Cruz de Minas, 1996. Quadra de
composição recente usando expressões populares: dar bola – dar atenção, mostrar interesse, compartilhar um flerte; me afogar – afogar as mágoas,
concentrar-se na desilusão, lamentar o destino, descarregar as angústias
bebendo.
[21]
- Inf.: Maria Aparecida de Salles, Santa Cruz de Minas, 1996. Três anos antes
desta coleta, ouvira o palhaço da folia de Reis do Arraial das Cabeças, no
Morro do Bonfim, em São João del-Rei, recitar todo jocoso: “Joguei meu chapéu pra cima / para ver onde caía, / caiu no colo de uma
mocinha / é isto mesmo que eu queria...” A expressão religiosa “Cruz-credo,
Ave Maria” tem sentido de esconjuro.
[22]
- Inf.: Maria Aparecida de Salles, Santa Cruz de Minas, 1996.
[24]
- Aqui apresentado como verso de pé quebrado, tem contudo uma variante com
outra métrica: “Quando eu vim da minha
terra / trouxe faca e facão / pra cortar crista de galo / e topete de valentão.
[25]
- Existe a seguinte variante: “Minha
calça é de embira, / meu colete é de cipó, / ainda vou tirar taquara / pra
fazer um paletó...”
[26]
- Esta quadra se prende à crença que atribui a Santo Antônio de Pádua o papel
de casamenteiro. Leia a postagem: AS
FESTAS JUNINAS E OS TRÊS SANTOS.
[27]
- Quadrinha bastante difundida. Foi informada em 1991, pela avó materna do autor,
Maria de Carvalho Santos, no Bairro Centro, em São João del-Rei.
[28]
- Paródia sobre uma quadra muito parecida, extremamente difundida, exceto pelo último
verso que diz “põe a mão no coração.”
[29]
- Mata-bicho: aguardente. O sentido da quadra é irônico: o anfitrião está sendo
muito educado, cortês, mas efetivamente não ofereceu nada de beber ou de comer.
[30]
- Informante: Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas, 1998. Talvez se
refira ao antigo chapéu tricorne, muito em voga nas últimas décadas do século
XVIII e por conseguinte seria uma trova muito antiga.
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