Outros trabalhos

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Linguagens sonoras

São João del-Rei ficou conhecida como a "Terra onde os Sinos Falam". A construção de sua alma religiosa dobrou séculos, festa a festa, ano a ano, como a areia que cai de uma ampulheta. O tempo das tradições sacras ainda parece colonial... Elas foram conservadas na força de uma fé incomensurável, que dentre tantos costumes preservou uma linguagem singular através de dobrados e repiques dos sinos das igrejas do centro histórico, com tamanha especificidade, que o povo, ainda hoje, identifica pelo eco do bronze, se morreu um padre, se a procissão está saindo, se há um chamado de missa, etc.

Mas vez por outra e talvez desde sempre, uma polêmica rodeia a mudança dos toques de sinos em São João del-Rei. É uma discussão antiga e em verdade inútil. Aposto que, há oitenta anos atrás, os sineiros velhos diziam que os novos (daquela época) estavam mudando os toques e não deveriam... 

Se o sino é uma linguagem, a mudança é inevitável. Toda linguagem é profundamente dinâmica conforme a faixa etária que a adota e as próprias influências culturais de cada época. Senão, vejamos: quando o escravo da Ana Romeira criou a Senhora é Morta foi uma mudança no ritual, e drástica, pois este toque não existia ainda! Vai que um desses meninos sineiros de agora, cria um novo toque que ninguém pensou até hoje ...

Agora, não quer dizer que se deva estimular as mudanças e experimentações. Criações novas são intuitivas. Sou a favor da preservação sim e todos os sineiros devem ser ensinados de como são os toques tradicionais e estimulados a conservá-los. Apenas afirmo que mesmo assim, ainda que se vigie a meninada para não "bater errado", as mudanças virão, positivas e negativas. 

Ou por acaso os repiques e dobrados obedecem a partituras musicais paradas no tempo, fixadas lá em cima na torre? Ou porventura tem um manual lá no alto, escrito numa cartolina, tipo: um repique no sino pequeno e dois no grande significa tal coisa... Não! Não é assim que funciona. Se aprende de oitiva. É uma tradição aprendida informalmente. Não é um aprendizado institucional. O mecanismo é pela transmissão oral, via mestre-aprendiz. Este é o maior pressuposto de uma tradição folclórica. Como tal, está sujeita a mudanças ligadas ao poder de memória de cada executor e a sua coordenação motora. Então, tem mudanças que podem ser involuntárias, fruto de uma capacidade individual limitada em reproduzir com exatidão o que foi aprendido. Vejo isto todo dia nas congadas e folias... É assim que surgem variantes que anos mais tarde se consolidam como se fossem um modelo. 

No passado isto existiu também com os apitos de trem: os maquinistas tinham toques específicos de embarque, alerta, chegada, cumprimentar, etc. E cada um imprimia seu estilo próprio e sabia afinar o mecanismo de apito da maria-fumaça, a ponto do povo antes de ver a locomotiva, dizer: "óh, escuta... o seu Emídio Giarola tá chegando do sertão na 68..." 

O boiadeiro com o berrante também tinha toque de ajuntar boiada, de rancho, de pouso, de retirada, de estouro do gado, de marcha. E a sua comitiva, os fazendeiros e agregados conheciam cada um destes sons e sabiam o que deviam fazer ao ouvi-los. 

Hoje mesmo os traficantes de drogas a altas horas ou a qualquer horário soltam tantos e tais foguetes para avisar a chegada do carregamento e o tipo de entorpecente, assim ouço dizer e graças a Deus, nada entendo disto, porque não é meu ramo, nunca experimentei e nem pretendo. 

Nas alvoradas festivas além da saudação ao dia maior com fogos de artifício, em alguns lugares conservam caixeiros à rua batendo tambores em ritmos próprios e por vezes únicos. Na Festa do Divino de Pirenópolis existe a "banda de couro", um grupo de tamborzeiros com este intuito. Na Festa do Espírito Santo de São João del-Rei, em Matosinhos, igualmente,os caixeiros do Divino. No distrito de São Gonçalo do Amarante os caixeiros possuem um toque de ritmo exclusivo às 5 horas, na madrugadinha da Festa do Rosário, que tem o curioso nome de vamos'imbora, Vitalina! A propósito, os caixeiros mais velhos do lugar o batem de uma forma distinta do atualmente executado e mesmo entre os de hoje há variações individuais impressas como floreados por tocadores mais hábeis. Em todos porém a linha melódica geral é mantida. Estas alvoradas constituem também uma linguagem pois trazem em si um anúncio: acordar cedo e ir para a missa que é dia de festa! A comunidade onde acontece compreende este sinal e o acata. 

Para mim, tudo isto faz parte de um rico patrimônio imaterial. É uma linguagem folclórica, do domínio da cultura popular, viva e utilitária, numa torre eclesiástica ou numa companhia ferroviária...

Caixeiros do Divino nas ruas de Matosinhos, 2009. 

Campanário. São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei), 2011. 

Maria-fumaça, São João del-Rei, passando nas imediações do Sutil, 2000.

Notas e Créditos


* Texto e fotografias (trem e caixeiros): Ulisses Passarelli
** Fotografia do campanário: Iago C.S. Passarelli

3 comentários:

  1. Muito boa esta sua visão em relação aos toques dos sinos.
    Miranda.

    ResponderExcluir
  2. As manifestações sonoras são elementares. São como PAISAGENS SONORAS, cheias de história, de memórias, de tradições.
    Este texto deveria ser trabalhado na REDE MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE SÃO JOÃO DEL-REI. Parabéns, fiquei orgulhoso e feliz ao ler este texto.

    ResponderExcluir
  3. As manifestações sonoras são elementares. São como PAISAGENS SONORAS, cheias de história, de memórias, de tradições.
    Este texto deveria ser trabalhado na REDE MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE SÃO JOÃO DEL-REI. Parabéns, fiquei orgulhoso e feliz ao ler este texto.

    ResponderExcluir