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sábado, 6 de julho de 2013

Velhas Proibições

         De como um antigo código dificultava as manifestações populares...


        No mais recente livro do professor Gaio[1] lê-se na íntegra a transcrição que meticulosamente fez do Código de Posturas de 1829, de São João del-Rei, um precioso documento para estudo histórico e análise social dos costumes então vigentes.
            O código discorre sobre tudo o que concerne ao aspecto físico da urbe, saúde pública, regras para obras, segurança, vias de trânsito, comércio, educação, comportamento, propriedade, etc., perpassando insistentemente sobre toda sorte de limitações às atividades sociais dos escravos e quase que por extensão ao cidadão comum.
            Como que num espelho, vê-se nos artigos do código, refletido claramente, uma divisão social e uma comunidade preocupada com possíveis revoltas populares ou escravas, coibindo ajuntamentos de povo, diversões, atividades variadas.
            Neste sentido e ainda que superficialmente, ocorre a dificuldade imposta à vivência da cultura popular, sujeita a diversas proibições. Senão, vejamos a compilação abaixo que segue comentada:

Título IV – Da Segurança Pública - Cap.I
Art.99
“É proibido pedir esmolas para quaisquer invocações. Multa de 4$rs e prisão de 4 dias. Excetuam-se a Misericórdia, as Irmandades do Santíssimo, das Almas e as que tiverem nos seus compromissos licenças para pedir esmolas.” (p.23)
Art.100
“Nos casos do artigo antecedente em que é permitido pedir esmolas, é proibido aos que as pedirem levar imagens. Prisão de um dia e do dobro nas reincidências.” (p.23)

            Os dois artigos supra, dificultavam sobremaneira, se cumpridos a rigor, a prática das manifestações populares de folias (de Reis, de São Sebastião, do Divino), que são desde sempre pedintes de ofertas em nome do santo estampado na bandeira ou estandarte. Bandeiras nos meios populares são equiparadas às imagens, tratadas com as mesmas prerrogativas rituais.
            A permissão de esmolar se abria porém a irmandades religiosas plenamente constituídas.
            Do século XVIII ao princípio do seguinte, existiam em São João del-Rei os esmoleres, espécie de ermitões que andavam pelos caminhos portando oratórios de pescoço, assim chamados pequenas caixas de madeira contendo a imagem de um santo, penduradas ao pescoço por uma tira de couro. Os fiéis beijavam o santinho e ofertavam um óbolo na intenção de uma obra religiosa. Naturalmente o artigo também se aplicava sobre este costume.


Recorte de uma aquarela de João Maurício Rugendas, de 1824, retratando o Bairro de Matosinhos,
São João del-Rei, no qual se vê um ermitão com oratório de pescoço recebendo saudações.

Cap.II – Sobre Medidas Preventivas de Danos
Art.119
“Fica proibido: §1 – O jogo de ronqueiras e busca-pés. §2 – O jogo de ar lançado fora dos lugares em que for permitido por Editais da Câmara que ficarão sendo parte destas posturas. Multa de 2$rs e dobro nas reincidências e prisão de 2 dias” (p.25)

            Tentativa de regulamentação das práticas pirotécnicas, que afetaria um dos mais queridos costumes de muitas festas populares: a soltura de fogos de artifício. Notadamente as festas juninas ficariam sem seu característico busca-pé, modalidade rasteira de artifício querido da criançada arteira.
            A ronqueira era um artefato estrondoso de pólvora seca, também chamado “tiro de toco”. Consistia num cano de ferro metido num pedaço cortado de tronco de árvore, em angulação adequada. No seu interior se punha a pólvora, espremida por uma bucha. O fogo era tocado no pavio, soltando a explosão com grande estrondo. Era muito usado nas Festas do Divino.
            Contudo a proibição não conseguiu exterminar o velho costume. Os busca-pés ainda alcancei na infância, nas festas juninas da “beira da praia” (atual Rua Antônio Josino Andrade Reis, Centro de São João del-Rei, no “Arraiá do Pito Aceso”).
Na Festa do Divino de 1883, garante o jornal Arauto de Minas (n.2, de 17 de maio), “não faltaram ronqueiras, fogos de vista” [2].

Art.134
“Não haverá espetáculo algum público sem licença da Câmara. Fica desde já fixado em 30rs a licença por dia de Cavalhadas. Para os outros espetáculos a câmara taxará o preço da licença sem outra atenção que a qualidade do espetáculo, e estado da povoação. Multa igual ao valor da licença e prisão de oito dias e o dobro nas reincidências. Os presépios não terão o passo da escritura.” (p.26)

            As cavalhadas foram de quantos espetáculos um dos mais aristocráticos. Eram mantidas em geral por ricos comerciantes e fazendeiros, que dada sua influência na sociedade mereceram no código esta reserva especial de autorização.
            Mas outras dramatizações populares, não gozavam da mesma sorte.
            Dos presépios comentarei adiante.

Art. 135
“É proibido as danças de batuques nas Casas das Povoações com algazarras de dia ou de noite de sorte que incomode a vizinhança. Pena de prisão por um dia e desfazimento do ajuntamento.”

            Batuque é o nome genérico para diversas danças de procedência africana, mormente com os dançantes dispostos em círculo, ritmados por atabaques. Com vasto registro no Brasil, eram muitas vezes temidos pelos senhores de escravos, sempre cuidando de uma imaginável trama violenta dos servos, que em seus pensamentos poderiam se aproveitar dessas ocasiões de entretenimento para extravasar sua revolta.
            Mas a despeito das proibições os batuques perseveraram e até meados do século XX não eram tão raros. Hoje apenas uns poucos grupos no país mantém o batuque típico como atividade cultural, denotando a extraordinária resistência e luta do negro.
            A regulamentação de toda atividade social do escravo na sociedade oitocentista era uma premissa dos mandatários públicos. A título de exemplo serve o artigo seguinte:

Art.136
“É permitido aos escravos tocar, cantar, dançar nas ruas e praças das povoações, mas os juízes de paz poderão determinar a este respeito o que for conveniente ao público, podendo-se recorrer dos mesmos para a câmara.” (p.27)

            A permissão dada estava sujeita à avaliação subjetiva do juizado e havia a restrição noturna:

Art.137
“São permitidos os quimbetes ou reinados que costumam fazer os escravos em certos dias do ano contanto que não sejam de noite.” (p.27)

         Quimbetes eram modalidades de batuque ora desaparecidos que os africanos escravizados trouxeram. Poucas informações tem-se a respeito de seu desenvolvimento. “Dança de origem negra em Minas Gerais, indicada por Luciano Gallet”, registrou Cascudo[3]. Em outra obra do professor Gaio[4] se pode ler que esta dança acontecia em redor da fogueira diante da Igreja do Rosário, em Conceição da Barra de Minas, finalizando os festejos do reinado, após os congados. Dançavam os casais de negros madrugada adentro animados ao som de dois atabaques.

Art.140
“Não se pode tocar caixa pelas ruas sem licença dos juízes de paz. A contravenção será punida com multa de dois dias de prisão. Excetua-se o toque de caixas militares que é independente de licença (etc.)” (p.27)

            Este artigo naturalmente prejudicava a execução de quase todo folguedo popular. A maioria das danças folclóricas são ritmadas por tambores, tanto mais os congados.

Cap.3 – Sobre Contravenção contra as Pessoas
Art.151
“É proibido jogar entrudo nas ruas e praças das povoações. Multa de 300 rs quando o brinquedo for com cheiros, água limpa ou lavandas artificiais; e quando for com as naturais; limões ou qualquer outras cousas que possa induzir perigo ou causar dor ou com águas fétidas será a multa de 12$rs e prisão de três dias.” (p.28)

            O entrudo era a mais arraigada de todas as práticas carnavalescas. No afã da diversão, os foliões do momo jogavam uns nos outros jatos de água, limões de cera contendo perfume e pós farináceos. A brincadeira não agradava a muitos pois quem não estava disposto a semelhante lambança acabava também atingido. Houve muita perseguição ao entrudo mas ele perseverou por mais um século. Jornais antigos da cidade dão conta de sua vitalidade ainda no começo do século XX [5].
            Além destes artigos pinçados no código de posturas, chama ainda atenção este acórdão de vereança transcrito no “Fontes Históricas de São João del-Rei”, bem mais antigo:

Acor 03 pg.23: em 28 de junho de 1749 – “Acordaram mais em mandarem notificar as pessoas que chegarem a esta vila com exercício de presépio e bonecos para que despejem incontinenti digo despejem no termo de três dias e desde já não usem do dito folguedo nesta vila e seu (termo) pelo prejuízo e gravâmen que resultem ao povo dela com cominação de que usando o contrário serem presos e serem castigados ao nosso arbítrio.” (p.47)

            Neste documento a preocupação se volta para pequenas companhias amadoras de teatro ambulante, apresentando dramatizações pelos povoados e vilas do interior com finalidades lucrativas, fosse com bonecos (ventríloquo, marionete, mamulengo) ou representando com atores vivos cenas do nascimento de Cristo (presépios).


Críticas jornalísticas a apresentação de um presépio no Teatro Municipal de São João del-Rei em 1909.
Fonte: site da Biblioteca Municipal Baptista Caetano de Almeida.

            Os tais presépios ou presepes foram no nordeste brasileiro conhecidos também por lapinhas.
             O enredo dramático dos velhos presépios, uma vez perdida sua vida própria, foi incorporados pelo folguedo das pastorinhas.
        Sobre os bonecos há uma citação do jornal são-joanense A Tribuna, de 30/05/1915 da apresentação na Festa do Divino daquele ano dos fantoches do Mestre Isaías nas dependências do Pavilhão de Matosinhos. 
            Todas as citações aqui consideradas e outras que podem ser rastreadas nos livros de história são reveladoras de quantas dificuldades a cultura de raiz enfrentou para chegar até nós. A presença ainda hoje de manifestações folclóricas nos leva a contemplar a excepcional força que tem, de perseverar sobre muitas adversidades, mesmo as impostas sob o rigor de um código autoritário.


Notas e Créditos

* Texto e foto-montagens: Ulisses Passarelli



[1] - GAIO SOBRINHO, Antônio.  Fontes Históricas de São João del-Rei. São João del-Rei: UFSJ, 2013. 154p.
[3] - CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. 930p.il.
[4] - GAIO SOBRINHO, Antônio. Memórias de Conceição da Barra de Minas. São João del-Rei: 1990. p.139-140.

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