Fundamentos do Calango
Nos quatro estados da região sudeste
do Brasil se fixou e desenvolveu um estilo poético-musical acompanhado algumas
vezes por dança, chamado calango. O nome foi tomado por inspiração de um réptil
muito comum, lagarto ligeiro nos movimentos, Tropidurus torquatus e outros congêneres da família tropiduridae.
Um canto muito generalizado traduz
assim sua imagem:
“Quem quiser cachaça boa,
Manda calango buscá,
Calango é bicho esperto,
Vai ligeiro, volta já”.
Desde já fique claro que o calango é
muito mais cantoria que dança, porque esta é uma acompanhante incerta e
bastante genérica, sem nada que lhe caracterize. A movimentação em pares livres
se desenvolve como num forró ou arrasta-pé, dependendo exclusivamente da desenvoltura
do casal e de sua desinibição, sendo mais ou menos animada consoante o fluir
ditado pelos instrumentos, mormente os de fole.
O centro geográfico desta
manifestação é a Zona da Mata entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, donde se
difundiu acompanhando as áreas tradicionais de cafeicultura do sudeste, rumo às
serras capixabas, o interior fluminense, o Vale do Paraíba paulista, o Campo das Vertentes mineiro (e mais além, se estendendo até o norte do estado). No
sul e sudoeste de Minas não chegou com o mesmo vigor mais ainda assim foi
conhecido e incorporado às contradanças [1].
Sujeito às características
regionais, no norte de Minas ganhou uma cor local com a musicalidade das
rabecas e violas, em variantes como o “calango dobrado”, por vezes apenas
instrumental.
O acompanhamento básico é o da sanfona ou acordeon, muito
frequente. Raramente dispensa o pandeiro. Surge também não raro a caixa
(tambor) e o xique-xique, eventualmente outros instrumentos, tais como
reco-reco, violão, cavaquinho e triângulo.
Calango, Bairro São Dimas, São João del-Rei/MG. Autor e data não identificados.
Foto gentilmente cedida para reprodução pelo sr.Luís Santana.
Foto gentilmente cedida para reprodução pelo sr.Luís Santana.
Poucos estudos específicos sobre o
calango se fizeram no Brasil, sendo algumas vezes referido com parcimônia. O
gênero porém é digno de nota e clama por atenção. Suas matrizes podem ter vindo
da Península Ibérica com os colonos mas o mundo caipira moldou-lhe nova
fisionomia com a criatividade brasileira.
A versalhada do calango vagueia
pelas surpresas do improviso e nisto reside a grande habilidade do calangueiro[2].
Há sim muitos cantos decorados que sempre figuram em cantorias aqui e acolá,
com pequenas variantes. Existe também a mescla de versos-feitos, compondo novas
quadras e isto também exige espontaneidade e presença de espírito mas é mesmo
no improviso que reside sua maior força.
O desenvolvimento de um calango
obedece a alguns estilos que podem variar de região a região, aliás, algo bem
típico das manifestações folclóricas. A nomenclatura também se flexibiliza. Mas
existe um elemento mais rígido: a necessidade de rima. A sua busca é uma
constante no calango e quando foge disto se pode suspeitar de uma corrupção do
processo criativo, tal a relevância que atinge. Muitas vezes para se alcançar a
rima se usa de palavras que não dão sentido algum ao fechamento da composição
criando um verso inusitado mas de sonoridade preservada:
“É coisa que não gosto,
De dois pote da furquia, (forquilha)
Um era de água morna
E outro de água fria...”
(São João
del-Rei, 1996, Luís Santana)
A
comicidade popular trespassa muitos versos:
“A mulhé do verdureiro,
Tá na beira do fogão,
O home tem quatro dedo
A mulhé tem cinco mão.”
(Bias Fortes,
1998, Elvira Andrade de Salles)
Como o calango tem um cunho de
desafio de habilidades e poder de cantoria, o calangueiro o tempo todo se
enaltece, declarando fazer coisas impossíveis:
“Eu comi saci assado
Na farofa de fubá,
Peixe grande não me engasga
Lambari quer me engasgá ...”
(São João
del-Rei, 2001, Damião Guimarães)
Ou
são frases ameaçadoras ...
“Você vem de pulo em pulo,
Eu vou de salto mortá,
Eu te entro na cabeça,
Vou sair no carcanhá!”
(São Gonçalo do
Amarante (São João del-Rei), 1999, José Francisco Sales)
Pelos
exemplos dados dá para se notar que para facilitar a criação o cantador
corrompe sem pudor qualquer palavra que julgar necessária para ajustar rima e
métrica. Daí “mortá” (mortal), “carcanhá” (calcanhar), etc. Aliás oxítonas
terminadas em consoante perdem-nas facilmente: capiná (capinar), chorá
(chorar), má (mal ou mar), etc. Palavras no gerúndio tem o “ndo” final
simplificado em “no”: cantano (cantando), arrumano (arrumando). Contrações são
frequentes: pra ou pá (para), procê (para você), d’água (de água). Pretérito
perfeito na terceira pessoa do singular, terminado em “ou” vira facilmente “ô”:
clariô (clariou), calanguiô (calangueou), martratô (maltratô). “Não”, em geral,
vira “num”. E por aí vai. Outras observações poderiam ser apontadas e andam na
direção geral do falar corriqueiro.
Embora
trazido para os subúrbios pelo fluxo do êxodo rural, é no campo que o calango
tem força e as coisas da roça formam o seu universo inspirador: bichos,
objetos, técnicas, assuntos, palavreado, gostos.
“O meu carro é
de aruêra, (aroeira)
Eixo é de
jacarandá,
Uma junta é de
boi preto,
Outra de boi
araçá.”
(São João
del-Rei, 1996, Luís Santana)
Os calangos
obedecem as chamadas linhas, leras (lérias) ou carritias (carretilhas), assim denominadas as rimas propostas para
uma dada cantoria. Aqui na região a mais comum de todas é a “Linha do Á” (São
João del-Rei) ou “do Dessidá” (Bias Fortes) pois é mais fácil de rimar e por
conseguinte a que demora mais tempo em ação, com grande número de estrofes:
“Tico-tico[3]
come verde,
Não espera madurá, (amadurecer)
Tico-tico tá danado
Na semente do juá.”
(Barbacena,
1996, D.Josefina)
Via
de regra se houve consenso de cantar numa linha proposta inicialmente à entrada
da música ou após esta, estabelecida pela primeira estrofe, ela deve seguir sem
ser trocada por outra até que se esgotem as possibilidades poéticas e um dos
cantadores se dê por vencido. Aí, após um intervalo se troca de linha. Por
vezes quando os cantadores não tem grande habilidade vê-se troca repentina: a
linha corrente é bruscamente interrompida porque um cantador responde noutra
rima e daí para frente o contendor a assume também e seguem ambos nela. Outra
vezes a mudança é sem intervalo mas não tão brusca pois se faz anunciada pelo
verso-feito: “agora qu’eu vô cantá” na linha...
A segunda linha mais conhecida no Campo das Vertentes é a “Linha do Ão” (São João del-Rei), “do Avião” (César de Pina (Tiradentes)) ou “do Dessidão” (Bias Fortes), na qual todas as rimas se fazem em “ão”:
“Imbaúba é pau do mato,
Aruêra, do sertão,
Dei um tapa no caxote,
Isfolei a minha mão”
(Barbacena, 1996, D.Josefina)
Em
terceiro lugar de popularidade vem a “Linha da Lilia” ou “da Maresia”, como
dizem nos arredores de São João del-Rei:
“Aaaai... eu tô cantano,
É na Linha da Marisia,
Companheiro falou demais
Macaco te deu bom dia!”
(Coronel Xavier Chaves, 1998, José do Rosário
Anacleto)
As
rimas em “aia” usando palavras como palha, navalha, atrapalha, embaralha... formam
a conhecida “Linha da Marambaia” ou “da Lacraia”:
“Falô, minino,
Mas você não me atrapaia
Se não fosse a tua língua
Não havia mais navaia”
(Bias Fortes,
1998, Elvira Andrade de Salles)
Outras
linhas existem mas são pouco conhecidas posto o difícil domínio das rimas. Linha
do Sirigote:
“Eu vô cantá um bocado
Na Linha do Sirigote,
Cavanhaque do Zé Francisco
Parece barba de bode”.
(Bias Fortes,
2013, José Maria do Nascimento)
Linha
da Sereia:
Calango-tango,
|
No ponto da
meia-noite
|
No calango da
sereia
|
Lobisôme bate
orêia,
|
Quando eu tô
fazeno barba
|
Quem quisé
cantá comigo
|
Meu bigode
balanceia.
|
Se não for
forte bambeia.
|
Falô colega,
|
Rosaro de boi
é canga
|
Meu bigode
balanceia
|
Sapato de
porco é pêia
|
No ponto da
meia-noite
|
Meu amigo,
companheiro
|
Lobisôme bate
orêia.
|
Que amansa
home é cadeia.
|
(São João
del-Rei, 1996, Luís Santana)
Neste
conjunto acima dá para se notar a expressão “calango-tango”, usadíssima por
muitos cantadores em variadas regiões:
Calango-tango,
|
Calango-tango
|
No calango da
Lilia,
|
No calango
dessidão,
|
Quando eu tô
comendo carne
|
Muié depois de
casada
|
Num gosto que
gato mia.
|
Num pode
injeitá fogão.
|
(Lagoa
Dourada, 1991, Rubens Davi da Silva)
|
(Bias
Fortes, 1997, Joana de Paula Nascimento)
|
Por
vezes a fórmula se replica na prosódia do cantador como eco, um recurso para
adequar a métrica: (...) “no calango,
lango-tango, / dentro da linha do á”.
Com
muita frequência se vê também as rimas em enjabement
ou semelhantes. Cantadores em desafio, encadeiam seus versos, um pegando o
último verso do outro para começar a compor sua resposta, como vimos no caso do
calango da sereia. Eis outro exemplo:
Meu amigo e
companheiro
|
Falou, colega,
|
Escute o qu’eu
vô falá,
|
Quem ensinô
Deus a rezá,
|
Quero que você
me diga
|
Mas foi a
Nossa Senhora
|
Quem ensinô
Deus a rezá.
|
Em pézinha no
altá.”
|
(São Gonçalo do
Amarante (São João del-Rei), 1999, José Francisco Sales)
São muito
típicas as expressões de resposta ou de abertura de verso: “falou, colega” ou “falou, minino ”; “eu tô cantâno” ; “é isso mesmo”
; “calango-tango” ; “meu amigo e companheiro” .
Todos os
exemplos acima são de calangos em quadras que são de fato os mais comuns, porém
eles surgem também em sextilhas:
“Eu num sei o quê qu’eu tenho,
|
“Eu nasci de sete mês,
|
Isso é de um
tempo pra cá,
|
Fui criado sem mamá,
|
Tudo qu’eu
planto num nasce
|
Bebi leite de cem vaca
|
E se nasce num
qué dá,
|
Na portêra de currá,
|
Eu não sei se
é da semente
|
Não bebi de cento e vinte
|
Ou se é de
costumá...”
|
Porque não quisero dá.”
|
(São João
del-Rei, 1996, Luís Santana)
A tipologia dos calangos não é muito
vasta. Na região pesquisada ocorrem:
- calango de porfia: é o calango típico,
até aqui exposto.
- calango de demanda ou desafio: o objetivo de
vencer pelo poder da versificação é o objetivo principal e pode suplantar até a
rigidez de uma linha no sistema de pergunta/resposta:
“Meu amigo e
companheiro,
|
“Quantos par
de unha tem
|
Que estudou e
sabe bem,
|
Eu não posso
responder,
|
Catorze pares
de gato
|
Pergunte o meu
cachorro
|
Quantos par de
unha tem.”
|
Que é tão bão
quanto vancê[4].”
|
(São João
del-Rei, 1993, Aluísio dos Santos)
Neste
aspecto ofensas correm soltas:
“O seu pai é uma coruja,
Sua mãe, caxinguelê,
O seu pai morreu de fome,
Sua mãe de tanto cumê...”
(Bias Fortes,
1996, Elvira Andrade de Salles)
- calango de embolada: como as
emboladas nordestinas este calango se embola na boca do cantador pelo ritmo
acelerado do seu enunciado. A habilidade é de compor rápido. O foco não é a
rima rígida nem o desafio:
“Fui no mato,
Cortei pau, fiz um bodoque,
Taquei pedra de galope,
No gogó do sabiá.
Por isso mesmo,
Qu’eu me chamo Lôlo-lôlo,
Mete a faca no côro
Deixa o ferreiro maiá!”
(São João
del-Rei, 1996, Luís Santana)
- calango solto: aquele de composição livre de
amarrios, sem disputas, que pode ser entoado por uma só pessoa. A regra é apenas conservar a rima:
“O papai, mais a mamãe,
Fizero combinação:
O papai comprô um carro,
A mamãe um caminhão,
O papai no frei’ de pé,
A mamãe no frei’ de mão.
Quando foi na Mantiquêra,
Perdero a direção.
O papai rolô pra moita,
A mamãe pro ribeirão.”
(São João
del-Rei, 1996, Luís Santana)
- calango tocado: apenas instrumental, sem
cantoria, com solo de instrumentos musicais. O mesmo que "calangueado".
Em resumo isto é o básico do nosso
calango. Porém como o assunto é bastante extenso, brevemente, este blog postará a segunda parte deste tema.
[1] -
Vide: PASSARELLI, Ulisses. Contradanças. Revista da Comissão Mineira de
Folclore, n.23, ag.2002. Belo Horizonte. 183p. p.15-22.
[2] -
Calangueiro ou calanguista: cantador de calango. Calanguear: verbo forjado
pelos cantadores para indicar o ato de cantar calango: “também sei
calanguear!”, diz um verso bem conhecido.
[3] -
Pássaro embirizídeo, Zonotrichia capensis.
[4] -
Vancê: corruptela de vossa mercê – vosmecê, vassuncê, vancê. Forma arcaica do
pronome você.
Muito Bacana Ulisses! Obrigado por compartilhar alguma coisa sobre o bom e velho Calango!
ResponderExcluirValeu Tiago! Não deixe de ler a parte 2 deste texto e aguarde que ano que vem tem mais!
ExcluirMuito Bom . Queria entender o calongo, isso me deu uma grande noção dessa cultura.
ResponderExcluirMuito boa a tua pesquisa, trouxe muitas informações interessantes. Que fontes você usou para pesquisar? tem indicações de audios/videos ? parabéns e obrigado !
ResponderExcluirQuase todas as minhas fontes sobre o calango são de informantes populares. Colhi direto na fonte com os mestres. Repare que diante de cada estrofe exposta tem o nome de um deles, que me forneceu de bom grado aquele conteúdo. Recentemente localizei livro e vídeo sobre calango que irá embasar um texto futuro. Te sugiro ler também a parte 2 deste texto (Link em "Notas e Créditos"). Obrigado por visitar este blog.
ExcluirValeu Ulisses! Muito top sua pesquisa.
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