Baile na Semana Santa
Todo mundo sabe que é falta de
respeito muito grande fazer festa na quaresma, quem dirá na Semana Santa, que
exige total recolhimento. Há de se fazer abstinência de sexo, jejum de carne,
bebida alcoólica e cantoria. Dança... nem pensar! Não se deve xingar, falar
palavrões. Ai de quem bater um prego num pau qualquer no dia da Paixão! No
Caburu (atual São Gonçalo do Amarante, distrito de São João del-Rei) ouvia dizer que se a criança fizesse arte nesse dia não podia ser
repreendida. Só no dia seguinte, ao romper d’Aleluia. Não se varre uma casa
nesse período. Não. Não se varre.
Canto, só o da piedade religiosa: benditos, motetos, encomendações de almas, matinas, laudes, vias-sacras...
Pois é. Foi então que a muitos anos,
lá naquela roça brava, meio de mundo perdido nos ermos do sertão, um fazendeiro
descrente de tudo, isento de fé e respeito, zombeteiro feito ele só,
desacreditava todos os tabus quaresmais. Ria dos fiéis. "Isso tudo é bobagem, gente!", dizia.
E pra provar que tanto cuidado não
importava em nada, idealizou um bailão na sua fazenda em plena Semana Santa.
Pagou uns músicos que fizeram
dificuldade pela data mas acabaram por se render ao dinheiro e saiu por aí afora
convidando compadres, vizinhos, parentes e amigos. Uns se persignaram ante o
convite – “cruiz-credo! Ond’é que já se
viu... É o fim do mundo, sô!”. Outros, sendo da sua laia acharam boa a idéia.
Outros mais se fazendo de beatos negaram a princípio mas na hora que o fole
gemeu, estavam lá dançando ao ritmo da sanfona.
O baile fervia. O salão estava cheio. Uns bebiam, outros namoravam. Riso, dança e farra
é só o que se via. Alegria sem fim. Nada que fizesse cismar. Nenhum sinal d’outro
mundo. Nem o pio lúgubre d'um corujão. Seria mentira enfim tudo que se dizia
sobre os assombros daquele tempo?
Meia noite. Hora mágica. Os ponteiros alinharam no
doze. O pêndulo do velho carrilhão do canto da sala, herança avoenga, prateava
no brilho da luz tênue dos candeeiros.
Pelo compasso da décima segunda badalada a terra tremeu, estremeceu, retumbou:
acordou, abriu-se, engoliu toda a fazenda. Um terremoto rachou o chão e nada
nem nenhum daqueles pecadores se salvou. Afundou tudo sem deixar rastro e na
imensa cratera brotou água, formou grande lagoa, sem fundo, que marca o lugar
do aviso celeste. Com Deus não se brinca.
Reza de saída de uma via-sacra, São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG), 2009. |
Notas e Créditos
* Informante: Aluísio dos Santos, Centro, São João del-Rei/MG, 1992.
** Texto e fotografia: Ulisses Passarelli
*** Obs.: anos mais tarde ouvi a mesma narrativa de outro informante que me dizia que o fato teria acontecido em Resende Costa e a que a tal fazenda pertencia a uma viúva que gostava de promover bailes. Qualquer um que caia ou entre nessa lagoa submerge e desaparece, pois a maldição persiste. Ainda outra versão coligida no distrito são-joanense de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno detalha que a viúva e a filha se salvaram porque tinham um bentinho no pescoço. A tragédia das águas foi antecedida pela aparição do próprio demônio, travestido sob a clássica forma de um belo rapaz dançarino, irresistível às moças... Nesta versão, não se menciona que a lagoa ainda traga os incautos, mas é possível ouvir os gritos das almas próximo ao centro das águas.
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