Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quarta-feira, 19 de junho de 2013

O Lobo do Cu Queimado

A esperteza vence a brutalidade: mais uma fábula do ciclo de contos do coelho


            Um lobo veio no rastro de um coelho desde lá do cerradão até a horta do fazendeiro. Apurou o faro e achou-o preso numa armadilha no meio da grande horta.

_ Ah! Você tá aí, né seu danado! Agora num escapa, já tá preso nessa gaiola... Hoje eu te como! , disse o lobo.

Mas o coelho muito esperto respondeu com malícia:

_ Me comê?! Pra quê? Deixa de sê bobo seu lobo! Num vê que eu sô magrinho, num rendo carne nenhuma? Óh, eu aqui nesse mundéu, tô enjoado de comê carne ...
_ Num me vem com essas presepada não, que agora você não escapa.
_ Não acredita? Tô falando sério. O dono dessa horta aí é um home bão que gosta de bicho. Todo dia vem cá trazê um trato pra mim, muita carne, de todo tipo, só cê vendo que fartura!
_ Coelho...
_ Sério, lobo. Óh, chega ele aí basta eu pedi: hoje eu quero carne assada, e ele traz; agora eu quero frita... vem!
_ Mas num pode sê... disse o lobo com o boca cheia d’ água.
_ Tô te falando, pode acreditar. Eu tô enjoado de carne. Tô querendo mesmo é uma verdurinha dessas aí de fora... E você pensando em comer um coelhinho quando pode ter tanta fartura de carne...
_ Ai coelho, troca de lugar comigo então. Troco uai, já que você quer... Quando o homem chegar é só fazer sua exigência.

            O lobo suspendeu a porta do mundéu e pulou para dentro para esperar o homem. O coelho passou para fora como um raio e sumiu mato afora em disparada.

            Lá veio o fazendeiro, dono da horta.

_ O quê?! Minha armadilha pegou um lobo!!! Num pode ser... Pensei que fosse um coelho que tava acabando com minhas verduras.
_ Traz pra mim um bife bem passado, mandou o lobo.
_ Óh, tá fazendo exigência... ! Vô trazê pra você um bife bem passado, cê vai vê que beleza...

            O homem saiu raivoso e o lobo ficou lá preso, babando de vontade e já imaginando o cardápio ao seu alcance.

            O fazendeiro foi na tenda, meteu um ferro comprido no braseiro e quando avermelhou a ponta, tirou do fogo e correu até o lobo preso.

_ Cê qué bem passado, né?
_ É, essa é minha exigência.
_ Então toma seu bife!

            E meteu o ferro pra bunda do lobo adentro que num terrível urro de dor deu um pinote, sacudiu a armadilha com tanta força que a quebrou toda e saiu correndo feito louco, uivando, fumengando o traseiro que ia raspando pro chão afora no desespero de aliviar a dor, carregando no lombo restos da porta do mundéu arrebentado.

            Foi pra beira de um córrego aliviar sua dor. Estava com muito ódio do coelho, que naturalmente estaria rindo dele nalguma canto daquele matão. Planejava uma vingança.

            Com pouco foi de novo rastreá-lo e não demorou achar sinais de sua passagem. Procura, procura... correu atrás do coelho e esse fugiu até uma beira de barranco onde um coqueiro inclinou muito, quase tombando na ribanceira e o coelho na carreira que vinha, se aproveitou da inclinação de seu tronco e subiu até junto às folhas.

_ Desce aqui sem vergonha!
_ Eu não, cê vai me comer...
_ Mas é claro que vô coelho, quê que ocê quiria? Ordinário, me tapiô, fiquei com o traseiro tudo queimado! Desce aqui, anda!
_ Vô nada!
_ Eu espero, disse o lobo. Não tô com pressa. Um hora cê tem que descê e fico aqui te esperando.
_ Pra quê que eu vou descer? Aqui no alto do coqueiro tem muita folha e água, do coco e do orvalho.
_ Uma hora acaba. Tenho todo o tempo do mundo.

            E não arredou o pé de sua vigília. O coelho ficou preocupado. Não tinha como escapar. Pensou um plano. Começou olhar para longe, tampando o sol com a patinha e a gritar como se tivesse chamando alguém:

_ Oi! Tá aqui, óh!
_ Que gritaria é essa, coelho?
_ Vem cá, o lobo tá aqui!
_ Tá doido, coelho, que gritaria é essa?
_ Agora cê tá no aperto, lobo. O homem da horta en’vém lá adiante com uma cachorrada medonha, armado de espingarda pra te caçar. E olhando pro horizonte: _ aqui!!!
_ Pelo amor de Deus, coelho, cala a boca, não grita não!
_ O lobo tá aqui, vem cá!

            E o lobo fugiu para muito longe, com medo do homem. O coelho rindo do sucesso de sua artimanha desceu do coqueiro todo tranquilo e foi comer umas folhas. 

O informante, Zé Cristino Boiadeiro.
Notas e Créditos

* Informante: José Cândido de Salles ("Zé Cristino Boiadeiro", foto abaixo), Santa Cruz de Minas, 1999.
** Texto e fotografia do informante: Ulisses Passarelli

2 comentários:

  1. Está historinha é bem mais longa.... Está distorcida!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não está distorcida... O que existem são versões! Em folclorística trabalhamos com dois conceitos: variante e invariante. No primeiro caso são as variações como a narrativa acontece em cada região ou segundo cada fonte de origem; no segundo caso aquilo que não muda em essência. Eu mesmo conheço outra forma desta fábula. Mas todas tem o mesmo sentido do lobo feroz enganado pelo coelho esperto. Ou: o bruto, o forte, derrotado pelo fraco mas esperto. Até os bichos podem mudar, mas no fundo é a estória do fraco vencendo pela sagacidade. Esta é a invariante: o núcleo que não muda, embora a forma de contá-lo possa ser maior ou menor, com mais ou menos detalhes, conforme a boca que o narra. Com este raciocínio não se trata exatamente de distorção mas de uma peculiaridade do folclore.

      Excluir