A esperteza vence a brutalidade: mais uma fábula do ciclo de contos do coelho
Um lobo veio no rastro de um coelho
desde lá do cerradão até a horta do fazendeiro. Apurou o faro e achou-o preso
numa armadilha no meio da grande horta.
_ Ah! Você tá aí, né seu danado!
Agora num escapa, já tá preso nessa gaiola... Hoje eu te como! , disse o lobo.
Mas o coelho muito esperto respondeu com malícia:
_ Me comê?! Pra quê? Deixa de sê
bobo seu lobo! Num vê que eu sô magrinho, num rendo carne nenhuma? Óh, eu aqui
nesse mundéu, tô enjoado de comê carne ...
_ Num me vem com essas presepada não, que agora você não escapa.
_ Num me vem com essas presepada não, que agora você não escapa.
_ Não acredita? Tô falando sério. O
dono dessa horta aí é um home bão que gosta de bicho. Todo dia vem cá trazê um
trato pra mim, muita carne, de todo tipo, só cê vendo que fartura!
_ Coelho...
_ Sério, lobo. Óh, chega ele aí basta eu pedi: hoje eu quero carne assada, e ele traz; agora eu quero frita... vem!
_ Sério, lobo. Óh, chega ele aí basta eu pedi: hoje eu quero carne assada, e ele traz; agora eu quero frita... vem!
_ Mas num pode sê... disse
o lobo com o boca cheia d’ água.
_ Tô te falando, pode acreditar. Eu
tô enjoado de carne. Tô querendo mesmo é uma verdurinha dessas aí de fora... E
você pensando em comer um coelhinho quando pode ter tanta fartura de carne...
_ Ai coelho, troca de lugar comigo
então. Troco uai, já que você quer... Quando o homem chegar é só fazer sua
exigência.
O lobo suspendeu a porta do mundéu e
pulou para dentro para esperar o homem. O coelho passou para fora como um raio
e sumiu mato afora em disparada.
Lá veio o fazendeiro, dono da horta.
_ O quê?! Minha armadilha pegou um
lobo!!! Num pode ser... Pensei que fosse um coelho que tava acabando com minhas
verduras.
_ Traz pra mim um bife bem passado,
mandou o lobo.
_ Óh, tá fazendo exigência... ! Vô
trazê pra você um bife bem passado, cê vai vê que beleza...
O homem saiu raivoso e o lobo ficou
lá preso, babando de vontade e já imaginando o cardápio ao seu alcance.
O fazendeiro foi na tenda, meteu um
ferro comprido no braseiro e quando avermelhou a ponta, tirou do fogo e correu
até o lobo preso.
_ Cê qué bem passado, né?
_ É, essa é minha exigência.
_ Então toma seu bife!
E meteu o ferro pra bunda do lobo
adentro que num terrível urro de dor deu um pinote, sacudiu a armadilha com
tanta força que a quebrou toda e saiu correndo feito louco, uivando, fumengando
o traseiro que ia raspando pro chão afora no desespero de aliviar a dor, carregando
no lombo restos da porta do mundéu arrebentado.
Foi pra beira de um córrego aliviar
sua dor. Estava com muito ódio do coelho, que naturalmente estaria rindo dele
nalguma canto daquele matão. Planejava uma vingança.
Com pouco foi de novo rastreá-lo e
não demorou achar sinais de sua passagem. Procura, procura... correu atrás do
coelho e esse fugiu até uma beira de barranco onde um coqueiro inclinou muito,
quase tombando na ribanceira e o coelho na carreira que vinha, se aproveitou da
inclinação de seu tronco e subiu até junto às folhas.
_ Desce aqui sem vergonha!
_ Eu não, cê vai me comer...
_ Mas é claro que vô coelho, quê
que ocê quiria? Ordinário, me tapiô, fiquei com o traseiro tudo queimado! Desce
aqui, anda!
_ Vô nada!
_ Eu espero, disse o lobo. Não tô
com pressa. Um hora cê tem que descê e fico aqui te esperando.
_ Pra quê que eu vou descer? Aqui
no alto do coqueiro tem muita folha e água, do coco e do orvalho.
_ Uma hora acaba. Tenho todo o
tempo do mundo.
E não arredou o pé de sua vigília. O
coelho ficou preocupado. Não tinha como escapar. Pensou um plano. Começou olhar
para longe, tampando o sol com a patinha e a gritar como se tivesse chamando
alguém:
_ Oi! Tá aqui, óh!
_ Que gritaria é essa, coelho?
_ Vem cá, o lobo tá aqui!
_ Tá doido, coelho, que gritaria é
essa?
_ Agora cê tá no aperto, lobo. O
homem da horta en’vém lá adiante com uma cachorrada medonha, armado de
espingarda pra te caçar. E olhando pro horizonte: _ aqui!!!
_ Pelo amor de Deus, coelho, cala a
boca, não grita não!
_ O lobo tá aqui, vem cá!
E o lobo fugiu para muito longe, com
medo do homem. O coelho rindo do sucesso de sua artimanha desceu do coqueiro
todo tranquilo e foi comer umas folhas.
Notas e Créditos
* Informante: José Cândido de Salles ("Zé Cristino Boiadeiro", foto abaixo), Santa Cruz de Minas, 1999.
** Texto e fotografia do informante: Ulisses Passarelli
Está historinha é bem mais longa.... Está distorcida!
ResponderExcluirNão está distorcida... O que existem são versões! Em folclorística trabalhamos com dois conceitos: variante e invariante. No primeiro caso são as variações como a narrativa acontece em cada região ou segundo cada fonte de origem; no segundo caso aquilo que não muda em essência. Eu mesmo conheço outra forma desta fábula. Mas todas tem o mesmo sentido do lobo feroz enganado pelo coelho esperto. Ou: o bruto, o forte, derrotado pelo fraco mas esperto. Até os bichos podem mudar, mas no fundo é a estória do fraco vencendo pela sagacidade. Esta é a invariante: o núcleo que não muda, embora a forma de contá-lo possa ser maior ou menor, com mais ou menos detalhes, conforme a boca que o narra. Com este raciocínio não se trata exatamente de distorção mas de uma peculiaridade do folclore.
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