(mais uma lenda da Serra do Lenheiro)
De longe, parece ser só mais uma pedra na Serra do Lenheiro, nem tão distante da cidade de São João del-Rei. Entremeio matas e campos e grandes afloramentos rochosos, um rochedo comum traz quase ao rés do chão a escultura de uma face feminina de perfil, coberta a cabeça por um pano, tudo entalhado na pedra dura.
Ao caminhante desatento ou ao afoito passa despercebida a obra de arte. Ao coração poético logo ela chama à atenção. Ninguém sabe sua data exata, ou quem a fez, ou porque entalhou. Tudo reside no campo lendário. Entretanto, onde o fato histórico se perde nas longuras do tempo, ou está obscurecido no esquecimento de algum velho relato, ou talvez perdido nas memórias coletivas, então... a lenda se torna verdade.
Contam-se algumas narrativas da origem, por vezes discrepantes no conteúdo ou até inverossímeis. Mas tem uma versão mais repetida que abaixo reproduzo. Ante a fisionomia tristonha da dama de pedra, encoberta por um pano na cabeça à moda antiga... quiçá é a que de fato remete à verdade perdida! Ou será que não?
Dizem que foi no tempo colonial, no auge do ciclo do ouro. O Canal do Ingleses escoava água em abundância até o grande mundéu ao sopé do Morro do Caititu. Ali os escravos em labuta interminável apuravam o ouro para a riqueza cada vez maior do proprietário das terras. O sinhô branco era como de costume ou modelo daquele tempo, sisudo, ganancioso ao extremo, tendo o status social como maior premissa. Escravo para ele era mero objeto de produção e a esposa, sinhá muito humana, de espírito iluminado, era destratada com a grosseria inexplicável.
Vivia a pobre mulher infeliz, ciosa de um amor que sonhou e nunca teve, posto que seu casamento era um inferno de desventuras. Entre a riqueza, preferia a simplicidade da senzala, para onde sempre fugia, visitando as vovós africanas, de quem ouvia as histórias de seu povo, ou para junto das minas, observar o trabalho braçal dos escravos, luzidios ao sol, com as costas suadas de tanto esforço. Se um escravo ia ao tronco, ela vinha curar-lhe as feridas.
Não demorou que um lhe ressaltasse aos olhos. Para além de seu conjunto físico musculoso, era o sorriso daquele escravo que iluminava sua alma. Reconhecia a sinhá em tal sorriso um velho conhecido. É como se fosse alguém que já conhecera. Mas era apenas mais um escravo. Ele, por outro lado, reconhecia no olhar dela igualmente algo familiar, que não podiam entender, senão mesmo, dava medo... mas o desejo era bem maior. A aproximação não tardou. A sinhá ia para o mundéu vê-lo em trabalho. Até que, sinalizando-lhe com os olhos, chamou-o a um canto. E ele foi.
Se esgueiraram entre as pedras, buscaram a camuflagem dos matos. A barra da longa saia se molhou na água do aqueduto. Riam. Conversavam. Se entreolhavam... e se amaram ali entre as rochas, a natureza por testemunha.
A paixão se apoderou deles e a aventura perigosa mas irresistível tornou-se um costume. Sempre que oportuno fugiam para detrás das pedras onde seus corpos ardentes se tornavam um só. Não faltou quem os alertasse do perigo, mas era inútil. O amor em verdade impossível para o contexto daquela época, machucava pela impossibilidade de uma união permanente ou estável. O escravo registrou essa tristeza em pedra, talhando o rosto sofrido da amada numa rocha.
E foi ocasião que o senhor descobriu o amor dos dois. Enfurecido, logo idealizou vingança sangrenta. Queria lavar sua honra. Prendeu o escravo, humilhou-o o quanto pode e não se contendo, matou-o de forma horrenda: meteu-lhe fogo no corpo, queimando-o por completo. A sinhá em prantos e gritos tentava impedir... mas em vão. O desespero da sinhá era incontido e a dor e sofrimento do escravo que ardia era infinito! O sinhô a tudo observava impassivo, com ódio.
Os escravos cuidaram de seu corpo esturricado. O cobriram de folhas úmidas e frescas, que contribuíram para refrescar seu cadáver carbonizado e com preces em seu favor a alma deixou aquele corpo.
Dali para frente, a vida da sinhá foi só tristezas, lembranças... E na verdade durou muito pouco. A tragédia não acabara: certo dia, não suportando mais a dor da ausência de seu amor, a sinhá saiu por sobre as pedras, galgando-as, olhando infinitamente o horizonte profundo, como se o procurasse. Dentro de si carregava o fruto daquele amor proibido e censurado. Apesar de já amar imensamente aquele rebento, pois era o símbolo de todo o sentimento que nunca tivera antes na vida, seu coração doía e se desesperava ao pensar no destino cruel que lhe era reservado. Seus olhos se perderam na imensidão e seu coração saudoso a impulsionou dali para baixo. Suicidou-se pulando dos Três Pontões. O amor de fim trágico eternizou-se. A busca um pelo outro fora do corpo humano prosseguiu na espiritualidade.
A dama de pedra. Serra do Lenheiro.
São João del-Rei/MG.
"Serra do Lenheiro, Morro de São João,
escalavrado pelo braço forte do escravo,
faiscando o brilho dourado da paixão;
testemunho de amores mal resolvidos.
Na rocha bruta o escravo entalhou,
com rudes ferramentas o rosto marcante,
daquela sinhá tristonha pelas injustiças
sinhá que tanto... ele amou.
Onde prospera a cobiça não cabe o amor;
a chama ardente do mal rompeu o enlace,
do alto da pedreira um grito de horror,
em vertiginosa queda a sinhá se prostrou.
A mesma chama ainda tosta o cerrado.
Mas o sonho renasce, esperança de vida,
pois o espírito pela verdade marcado
retorna ao cuidado donde é guardião!"
Notas e Créditos
* Texto (10/10/2018), fotografia (09/09/2018) e poesia (22/09/2018): Ulisses Passarelli
** Revisado e ampliado em 04/02/2019
Sensacional Ullisses, como sempre! Ontem tive oportunidade de voltar ao local da Dama da Pedra.
ResponderExcluirQue interessante. Nunca tinha ouvido falar sobre...ainda quero fazer um passeio por lá, guiado...
ResponderExcluirMuito bom! Da um bom roteiro pra uma série ou até uma novela, "A Dama de Pedra". Parabéns o autor, Deus abençoe!
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