Brasil afora corre a palavra "caipira" como sinônimo grotesco e zombeteiro de homem do campo, rurícola, produtor rural, morador dos arraiais e sítios. Por onde quer que seja o termo se aplica eivado de uma carga de descaso e até mesmo discriminação. Quase sempre é assim.
Caipirismo se diz à atitude arcaica ou ao modo de agir, falar e vestir à maneira rural e não à urbana. Rural aqui subentendido como um rural muito ermo, tosco, antiquado, provinciano...
SAMPAIO (1987) buscando a etimologia da palavra apostou que procede do tupi "caí-pyra", icaipira, o envergonhado, o tímido. Seria uma formação em particípio passado adjetivo, do verbo "
cai "(envergonhar), conjugado ao sufixo "
pyra" (ou
byra) _ o envergonhado. Contudo, em nota, Frederico Edelweiss discordou alegando ser
kaí um adjetivo guarani.
CASCUDO (s.d.) abordou a possibilidade de caipira ser alteração de caipora, "o morador do mato", segundo origem tupi. Verbetizou-o traçando-lhe com a maestria de sempre seu perfil psicológico e etnográfico: "homem ou mulher que não mora na povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público."
ARAÚJO (1964) registrou como ninguém a cultura caipira, a cultura do caipira. Em abordagem que entremeia a folclorística e a sociologia, o iminente estudioso foi extremamente cuidadoso na descrição e análise dos ritos, as crendices, a religiosidade, o artesanato, a indústria caseira, o modo de vida, as festas, os folguedos e danças, a produção agrícola, a culinária, etc. Verdadeiro documentário, indelével, é obra fundamental para quem queira iniciar ou aprofundar no assunto.
Qual a área do caipira? Poder-se-ia dizer que todo o Brasil. Cada área geográfica tem seu próprio tipo de "caipira" embora que o "típico", digamos assim, resida no interior goiano e mineiro, até terras paulistas, quiçá paranaenses. Tem uma vasta gama de sinônimos ou regionalismos e raro aquele que não vem maculado de zombaria: capiau, jeca, roceiro, tabaréu, matuto, maratimba (sul capixaba), caiçara (litorâneo em São Paulo e Paraná), etc. Para lhe desqualificar os procedimentos revelando sua imaginada idiotice o chamam ou dizem ser um panguá, caboclo, coió, roceiro, jurubeba, jacu, jabacuré, tião, sô zé... Chamar alguém de caipira é xingar-lhe, quando deveria ser um elogio.
Do ponto de vista étnico o caipira é fruto da miscigenação de nossos formadores e nada há nele que o vincule mais diretamente a uma etnia. Ele pertence ao povo brasileiro. A mescla dos saberes de cada um ele herdou e assim construiu uma parcela deveres significativa da cultura popular nacional.
O estereótipo do caipira foi pintado na cidade como supersticioso, crédulo, apalermado, quase andrajoso, desengonçado, bobalhão. Teria roupas velhas e remendadas, chapéu de palha à cabeça, paletó surrado pelo tempo, cabelo desgrenhado, encardido, barba por fazer, descuidado em geral, calçado de alpercatas ou botinas, por vezes, sapatos velhos; cheirador de rapé, fumador de cigarros de palha, bebedor de cachaça. Pendendo no currião (*) um canivete de picar fumo, metido dentro de uma bainha de couro. No bolso de trás da calça um chumaço de palha seca de milho para confecção de cigarros. A mulher caipira não dista muito dessa figuração: vestido estampado, de cores berrantes e desenhos grosseiros, babados, pouca elegância no agir e andar; desprovida de qualquer senso de estética (sob a ótica urbana) ou de vaidade (idem); maquiagem borrada, exagerada, ridícula. Cabelo longo, amarrado com uma tira de trapo, ensebado, lamentável. Sandália simples no pé. Um bolsa sofrível a tiracolo.
Uns e outros infalivelmente arrastando uma linguagem cheia de erros grosseiros de pronúncia e recheada de um vocabulário com termos e expressões das antigas. Sotaque próprio. Usam palavras específicas que na cidade pouco se sabe o que seja. O traje simplório contudo é uma necessidade prática da pesada lida cotidiana. Para os eventos, as festas, as celebrações, o homem do campo se veste bem e com gosto, limpo e cuidadoso. Vimos algumas vezes uma cena inusitada: gente da cidade ir a uma vila assistir uma festa de padroeiro ou outra, ingenuamente vestido de forma simples, e passar vergonha de ver os naturais do lugar, "os caipiras", mais limpos e bem vestidos que o cidadão da zona urbana. É uma oportunidade interessante para quebra desse paradigma.
Anda pela cidade uma vez por mês para vender seus produtos (galinhas, toicinho, balaios, fumo, ovos, verduras, tapetes de tear, mel, sabão de bola... produtos da roça) e com o dinheiro apurado compram aquilo que não acham na roça (sal, querosene, ferramentas, ração para animais, produtos veterinários, etc.) e para lá seguem com tudo pendurado num saco no lombo de um cavalo, ou jogado no porta malas de um velho ônibus.
É possível que essa figura se baseie em algum arquétipo do imaginário colonial, ou mesmo, que reproduza de fato, em memória inconsciente do coletivo, o tipo humano campesino do século XVIII e XIX, forçado pelas vicissitudes de seu tempo a ser assim ou, pelo menos, movido pela vida rude do campo, tal como é visto pela fidalguia orgulhosa da cidade.
Soma-se a isto a personificação do caipira na literatura brasileira, que aproveitando do elemento pré-existente contribuiu para fixá-lo no imaginário popular. Nesta mesma linha de raciocínio destaca-se a obra de Monteiro Lobato e notadamente o personagem Jeca Tatu, que à época figurou numa forte campanha de prevenção contra os males da verminose. A lerdeza de sua figura, tomada como modelo do caipira, foi atribuída à intensa infestação de vermes intestinais, adquiridos graças a maus hábitos de higiene, que, uma vez corrigidos fizeram a sua saúde regenerar e o jeca se tornou homem forte, bem disposto e trabalhador. A narrativa deste personagem teve um alcance extraordinário e foi repetido em comerciais, almanaques, coletâneas de estórias infantis de natureza didática com notável longevidade e popularidade, não obstante o caráter depreciador de sua própria figura, visto à luz do pensamento então vigente.
Contudo, há um senão: no anedotário, o caipira surge portador de uma sagacidade incomum. Agindo no caipirismo, aparentando-se abestalhado é de fato inteligente, de pensamento rápido, esperto e se sobressai a toda cilada ou embaraço com a simplicidade costumeira, portador que é de uma solução irrefutável para cada circunstância.
Outra ambiguidade reside na musicalidade e na poética. No imaginário urbano sobre o caipira se reconhece seu potencial nesses ramos, atribuído à sua ingenuidade de um lado e à vivência em contato com a natureza por outro. O caipira é então entendido como o sujeito que sabe como ninguém extrair do bucolismo de sua paisagem nativa os mais belos elementos para versos e melodias ao som da inseparável viola. Cantando só ou em duplas, traduz para a cidade o sentimento rural e em verdade invadiu a urbe com sua arte para mostrar que o campo tem valor. Neste contexto muito se deve aos esforços de Cornélio Pires, pioneiro nas gravações das modas caipiras, dando importantíssima contribuição para a discografia brasileira, valorizando as duplas de cantores. Uma das modas gravadas graças a seu esforço, "Jorginho do Sertão", celebrizou-se e tornou-se antológica. Não é desconhecido o espaço que a música caipira conquistou no mercado gigantesco de shows e gravadoras. Com os anos, as adaptações converteram o estilo original e surgiu a música sertaneja, que hoje vende milhões e povoa a mídia, já bem distante das bases. E para a distinguir, a música caipira que permanece ligada diretamente ao campo (tradicional), esta foi adjetivada com a expressão "de raiz". A formação de duplas caipiras e até trios tornou-se uma possibilidade de sucesso com larga aceitação de mercado. Modas e toadas as mais diversas foram extensamente gravadas e regravadas, algumas celebrizando-se na voz de duplas de grande êxito.
Nas artes há ainda de se lembrar das pinturas realistas de Almeida Júnior, que imortalizou o caipira em suas telas.
Parte da mídia e da produção cinematográfica nos vende o cowboy. E porque será que ele foi tão bem absorvido? A cultura massiva repisa valores estilizados dos vaqueiros norte-americanos que nos chegam pelas telas. O mercado se aproveita do fato. O povo o consome. Mas paralelo a isto a cultura caipira sobrevive, nem que seja fragmentada, mas está aí. Como um fator de resistência identitária ela teima em desaparecer frente à mudança dos tempos ainda que aparente ser anacrônica. Em vários lugares a promoção de festas que enaltecem os valores da cultura caipira são exemplos desta reação ou resistência. Os festivais de carros de bois e tropeiros em certa medida ou paralelismo andam na mesma lógica. Na zona rural de São João del-Rei, no vilarejo do Caquende, já a nove anos acontece o encontro da cultura popular, cujo foco maior é reconhecer e valorizar a cultura popular rural, os saberes do homem do campo, do lavrador. É a celebração do trabalho, da colheita, da amizade e do saber caipira.
Foi o caipira que nos deixou as danças típicas como o catira (cateretê), os fandangos como suítes de danças airosas, o gosto pela viola, o padrão de tantos festejos típicos. Foi ele quem fez viver nos vilarejos os folguedos típicos, trazidos também às cidades com seu próprio êxodo, apesar de não ser esta a única via de chegada da cultura popular às urbes, onde, aliás, também se forma dinâmica e espontaneamente. Cultivou nosso patrimônio imaterial, decantou as lendas e fábulas, dominou a técnica de produção de maquinários como engenhos, moinhos e prensas.
Ainda neste ramo da cultura é preciso enaltecer o papel do caipira na adaptação da viola ibérica ao solo brasileiro. De várias regiões portuguesas vieram os modelos originais, nossas matrizes: viola braguesa, viola amarantina, viola campaniça, viola beiroa, viola de arame, viola toeira. Foi ao sopé dos ranchos de pouso de tropas e boiadeiros, foi à sombra da árvore da beira do curral no intervalo da lida, foi no serão na cozinha, foi no alpendre da fazendinha que o caipira adaptou os modelos portugueses de viola à realidade brasileira, dando-lhe novos formatos de corpo, se valendo das madeiras tropicais da nação, e, com muita criatividade, reinventando velhas afinações ou criando novas, que foi batizando de nomes curiosos: boiadeira, rio abaixo, rio acima, cebolão, cebolinha, paulistinha, natural, cana-verde, paraguaçu, cuiabana, nordestina, repentista, realejo, etc... E assim surgiu a viola caipira, o instrumento musical mais representativo dos meios rurais, o mais emblemático, imediato evocador da nostalgia e do bucolismo romântico das roças. Fez logo parceria com a rabeca e a sanfona. A viola caipira é o carro chefe das cantorias da zona rural, comandando as modas, cateretês, cururus, fandangos, danças de São Gonçalo, folias de Reis e do Divino, e até mesmo, presente em muitas congadas. Alguns grupos de congo se identificam por terem como primeiro dançante de cada fila (guia) um violeiro e o povo logo o diz "congo de viola".
A favor do caipira a sua fé reconhecida o distingue, a dedicação aos festejos de seus santos queridos e protetores o enaltece pela devoção ímpar. Também o reconhecem como uma pessoa extremamente honesta e trabalhadora.
É muito arraigada a aproximação do caipira ao mineiro do interior, quase em sinônimo. Nas piadas que o mineiro (citado expressamente como tal) protagoniza, seu personagem guarda as características do caipirismo e a expertise de sobressair sobre todos com acuidade de raciocínio.
Qual um estereótipo, o modelo antiquado de mineiro materializa o caipira até mesmo em Minas Gerais. Nessas condições, o próprio natural deste estado, ao narrar uma piada, diz: _ "Um mineiro, lá do interior..." (como se ele próprio não fosse do interior) ou _ "O mineirinho..." (minêrin'). Interior neste contexto não é o local longe do litoral ou da capital; assume o ar de distante, longínquo, ermo _ em relação ao narrador. O caipira do interior em certa medida se equipara ao conceito de sertanejo, já em tom fantasioso.
Se de um lado o caipira é com muito humor e sarcasmo caricaturado nas charges e nas danças juninas das quadrilhas, por outro, é em certa medida invejado por suas qualidades reconhecidas e senão mesmo idealizado como modelo de equilíbrio na vida natural. Muitos sonham em sair do caótico mundo urbano e se esconder num rancho beira rio, sob árvores e cantos de pássaros; muitos da cidade planejam adquirir um sítio para nele viver à caipira; tantos outros nos momentos de depressão e tédio atavicamente passam uns dias no campo desprovidos de todo conforto urbano para se refazerem. Ao estresse urbano se opõe o sonho de junto a uma casinha modesta ouvir o som da viola, comer uns torresmos com angu e tomar uma talagada de boa pinga.
Aliás, à cachaça de produção seriada, industrial, crê muito apreciador desta bebida nacional, se oponha aquela de produção limitada, artesanal _ "pinga da roça" _ cuja maneira de produzir o caipira domina como ninguém. E o conceito se fixou como uma verdade, independente de qualquer argumento técnico.
Tal ambiguidade de sentimentos parece revelar o caipira que existe em nós, do qual queremos nos livrar para provarmos a gente mesmo que nós evoluímos, sofisticamos, civilizamos (!). Mas se o desequilíbrio de nossa civilidade nos assola é o atavismo que nos torna às raízes e como árvore não vive sem raiz, é no campo que buscamos a seiva revigorante.
|
Cena da colheita do milho no Caquende e intervalo para o cafezinho. |
Notas e Créditos
* Caipira - além do sentido abordado nesta postagem, caipira é também chamado um artefato de equitação de madeira e couro, um tipo de chicote. Ver a postagem
CHICOTES.
** Currião - cinto de couro cru, ainda provido de pelos do animal, apenas curtido ao sol. Grande correia de suspender a calça; correiona, correião.
*** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografia: Iago C.S. Passarelli, 04/05/2014.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional. São Paulo: Martins, 1964. 3v.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. 930p.
SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na Geografia Nacional: introdução e notas de Frederico G Edelweiss. 5.ed. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1987. 359p. p.110 e 212.
Nenhum comentário:
Postar um comentário