Nesta postagem o popularíssimo São Benedito volta à cena, agora no contexto da literatura popular oral. Exemplo de homem cristão, querido pelos escravos no passado, padroeiro dos congadeiros de ontem e de hoje, de origem humilde e descendência africana, é extensamente presente em diversas manifestações folclóricas em todo o Brasil.
Os dois contos aqui expostos trazem em seu bojo uma série de elementos tradicionais e típicos do gênero do "demônio logrado", como por exemplo, a forma de desaparecimento do capeta, sob uma explosão, deixando um rastro fedorento de enxofre e fumaça. Ainda cita a tripa do Judas, outra simbologia significando a entranha do mal, o âmago do ruim.
Quantas vezes ouvimos em São João del-Rei a estória do Homem do Pé de Pato... Não é do mesmo gênero mas compartilha elementos. A moça que abusasse e na quaresma se atrevesse a ir num baile, seria abordada por um moço desconhecido, de grande beleza, muito bem vestido, com requinte e elegância, que a convidaria para dançar. No meio da dança, enlevada pela sedução do jovem, a moça cairia em si estupefata, em crise de desespero ou desmaio, porque ao olhar para os sapatos de seu par via para seu espanto que eram pés de pato... O moço era o demônio, que então sumia num repentino estouro de fumaça e fedor, ou apenas se esvaía como neblina. Noutra versão corrente na mesma cidade, com o mesmo desenvolvimento e mudança só no desfecho, o belo jovem comete a deselegância de dançar de chapéu à cabeça e só pelas tantas o tira, quando acontece o mesmo choque, posto que tem chifres.
Aqui também vemos o repisamento da tentação, o diabo laçando pela aparência física, o flerte, a sedução sobre a jovem incauta.
Típico dos contos do demônio logrado é a solução inesperada para o caso, uma situação que supera a sagacidade do mal: no conto A Velha do Chinelo, por exemplo, exposto neste blog, o demônio também se materializa como cavaleiro e a solução é pela armadilha do falso testemunho; nos dois casos abaixo a solução se dá por um atoleiro e ainda pelo mesmo artifício do jovem sedutor, bonito, charmoso, só que desta feita pelo lado do bem, impedindo a aproximação do mal.
A didática ou antes catequese destes contos é notória. Usando de uma linguagem ao agrado da cultura popular e de uma dramatização folclórica, contextualizada num ambiente que simula ou sugere o rural antigo, ambos os contos de alguma forma alinham pelo exemplo os elementos devoção-tentação x racismo-discriminação.
Tem de ser entendidos e lidos à luz do folclore, a cujo campo pertencem. O ensinamento transmitido é que o racismo e a discriminação não são de Deus. São obras do mal, demoníacas. A beleza e o caráter do homem negro superou o do homem branco e cativou a moça devota. Sua devoção era tamanha que o santo pressentindo seu perigo veio em socorro sem precisar que ela pedisse. A lealdade dela ao grande taumaturgo garantiu que saísse ilesa.
Em momento algum os contos transmitem mau exemplo, nem pelo linguajar. Pelo contrário, combatem o racismo e a discriminação. Provam que a virtude sob a forma de um homem negro foi muito mais forte que a artimanha do contrário. Com seu enredo atraente passam o recado da necessidade de forte devoção, do valor e beleza do negro, do poder do santo, da retidão de conduta do fiel e da malícia que o diabo tem e usa.
Quantas vezes ouvimos em São João del-Rei a estória do Homem do Pé de Pato... Não é do mesmo gênero mas compartilha elementos. A moça que abusasse e na quaresma se atrevesse a ir num baile, seria abordada por um moço desconhecido, de grande beleza, muito bem vestido, com requinte e elegância, que a convidaria para dançar. No meio da dança, enlevada pela sedução do jovem, a moça cairia em si estupefata, em crise de desespero ou desmaio, porque ao olhar para os sapatos de seu par via para seu espanto que eram pés de pato... O moço era o demônio, que então sumia num repentino estouro de fumaça e fedor, ou apenas se esvaía como neblina. Noutra versão corrente na mesma cidade, com o mesmo desenvolvimento e mudança só no desfecho, o belo jovem comete a deselegância de dançar de chapéu à cabeça e só pelas tantas o tira, quando acontece o mesmo choque, posto que tem chifres.
Aqui também vemos o repisamento da tentação, o diabo laçando pela aparência física, o flerte, a sedução sobre a jovem incauta.
Típico dos contos do demônio logrado é a solução inesperada para o caso, uma situação que supera a sagacidade do mal: no conto A Velha do Chinelo, por exemplo, exposto neste blog, o demônio também se materializa como cavaleiro e a solução é pela armadilha do falso testemunho; nos dois casos abaixo a solução se dá por um atoleiro e ainda pelo mesmo artifício do jovem sedutor, bonito, charmoso, só que desta feita pelo lado do bem, impedindo a aproximação do mal.
A didática ou antes catequese destes contos é notória. Usando de uma linguagem ao agrado da cultura popular e de uma dramatização folclórica, contextualizada num ambiente que simula ou sugere o rural antigo, ambos os contos de alguma forma alinham pelo exemplo os elementos devoção-tentação x racismo-discriminação.
Tem de ser entendidos e lidos à luz do folclore, a cujo campo pertencem. O ensinamento transmitido é que o racismo e a discriminação não são de Deus. São obras do mal, demoníacas. A beleza e o caráter do homem negro superou o do homem branco e cativou a moça devota. Sua devoção era tamanha que o santo pressentindo seu perigo veio em socorro sem precisar que ela pedisse. A lealdade dela ao grande taumaturgo garantiu que saísse ilesa.
Em momento algum os contos transmitem mau exemplo, nem pelo linguajar. Pelo contrário, combatem o racismo e a discriminação. Provam que a virtude sob a forma de um homem negro foi muito mais forte que a artimanha do contrário. Com seu enredo atraente passam o recado da necessidade de forte devoção, do valor e beleza do negro, do poder do santo, da retidão de conduta do fiel e da malícia que o diabo tem e usa.
Diante do exposto, segue-se dois contos desse gênero, coligidos a década e meia em Santa Cruz de Minas.
São Benedito. Pintura popular numa bandeira de congado (catupé), de São Sebastião da Estrela (Santo Antônio do Amparo/MG), 30/06/2013. |
1) Uma moça muito bonita ia se casar e o diabo quis atrapalhar. Tomou a forma humana e montou num cavalo muito bem arriado, prateando os metais. Vinha como um rapaz bastante elegante na vestimenta, belo, charmoso.
A noiva era muito devota de São Benedito e pediu a benção dele para seu casamento. O santo ouviu a súplica e vendo-a em perigo pela armação de satanás, tratou de impedi-lo. Fez o cavalo dele tomar outro rumo e atolar num brejo de forma que não pudesse sair. Não podia descer para não sujar a roupa de barro. Pelejou para desatolar e não conseguiu.
Enquanto isto, o casório aconteceu. Terminado o casamento, voltando os convidados, ao passarem pela estrada, o demônio disfarçado de jovem perguntava:
"_ Vocês viram o Benedito?"
_ Não ..."
E o coisa ruim resmungava palavras ofensivas.
Quando os recém-casados estavam em segurança o santo finalmente apareceu ao tinhoso (*) e deu ordem de desatolar. O cavalo saiu do brejo na hora e o santo falou:
"_ Não vai atrapalhar ninguém! Vai-te estourar nas tripas do Judas e feder a enxofre nas profundas dos infernos!"
Então aconteceu um estouro fumacento, com cavalo e capeta, sumindo tudo para o inferno.
Andor de São Benedito. Festa do Rosário, Ramos (Ritápolis/MG), 24/09/2000. |
2) Uma moça era bastante devota de São Benedito e gostava muito de baile. Era uma quadrilha e o diabo estava por perto, na espreita, espiando por umas gretas (**).
Ela dançava de forma inocente e ele cismou de perverter a moça. São Benedito, pressentindo o perigo que a jovem corria e considerando sua grande devoção, apareceu no baile para protegê-la. Veio na forma de um rapaz negro e o demônio por sua vez como um rapaz branco.
O jovem negro logo se aproximou da moça e a pediu para dançar, se não tivesse preconceito. Ela agradando muito dele, aceitou de imediato e assim bailaram a noite toda. O diabo nada pode fazer e o santo, através de seu poder, afastou dali o capeta, que logo foi embora do baile e assim a moça foi salva.
Notas e créditos
* Tinhoso: o demônio. Talvez o ódio do povo contra ele, a vasta mítica desenvolvida pela cultura popular ao seu redor, geraram uma vasta sinonímia, acrescida por novos termos em cada região: bruto, encardido, capiroto, pemba, coisa ruim, "malino" (maligno), cramunhão,cariá, etc.
** A informante dizia que o diabo tem licença para atentar em três situações: no ato de uma jogatina (jogos de azar), numa dança de quadrilha e onde tem cisco parado. Nesta última situação se a pessoa ao varrer juntou o lixo num canto e não pôs na lixeira ou para fora numa pá, surgem inesperadamente, discussões, desentendimentos sem qualquer motivo. É o maligno atentando.
*** Informante: Elvira Andrade de Salles, Bairro Córrego, Santa Cruz de Minas/MG, 27/08/2000.
**** Texto e fotos: Ulisses Passarelli
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GUNGA SERENA!
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