Outros trabalhos

terça-feira, 10 de março de 2015

Estrelas: o brilho da tradição

Desde sempre a humanidade construiu um complexo sistema de crenças, mitos e ritos, ligados ou influenciados pelas observações do tempo e dos elementos da natureza. A astronomia, a astrologia e a meteorologia impressionaram o homem da remota antiguidade aos tempos hodiernos, nas mais diferentes culturas e etnias.

Essa cosmogonia passando informalmente de geração em geração e nas mesclas culturais fomentadas pelas correntes migratórias, chegou aos dias atuais e impregnou a cultura popular. O folclore dos astros é vastíssimo e universal.

Ora tangenciando a religião ora enveredando pelo mundo da superstição, o entendimento das estrelas e sua nomenclatura vem desde a antiguidade clássica a respeito das constelações, dos signos do zodíaco, a orientação celeste das rotas de navegação marítima. Os gregos de forma especial legaram uma vasta influência através de sua rica mitologia, transposta ao plano estelar.

A influência na poesia popular é uma constante, surgindo muitas estrofes que citam as estrelas.

Existe a restrição muito divulgada de não apontar para a estrela, sob pena de nascer uma verruga na ponta do dedo.

Céu estrelado é indicativo de bom tempo, tempo firme, ausência de chuva, segundo previsão da meteorologia popular.

De maneira mais pragmática, os tópicos abaixo passam em breve revista algumas tradições sobre as estrelas.

Santos Reis rodeado de estrelas numa pintura popular
da bandeira da Folia de Reis "Embaixada da Pedra Negra".
Ijaci/MG, jan./2010.
Estrela Cadente - Nome popular do meteorito. O mesmo que estrela-de-rabo, devido ao rastro luminoso que deixa ao riscar o céu velozmente. Ver uma estrela cadente é sinal de boa sorte. Neste átimo de luz efêmera deve-se fazer um pedido para ser atendido, desde que não se conte a ninguém. O povo crê, tanto aqui quanto no Nordeste, que é uma estrela comum que muda de lugar no céu. Esta quadra cantada no reis de boi (reisado, bumba-meu-boi) potiguar registra a crença:

"A estrela no céu corre,
eu também quero correr;
ela corre atrás da lua,
eu atrás de um bem querer!"
(São Gonçalo do Amarante/RN, 1997)

Cascudo registrou em seu dicionário superstições ligadas à estrela-cadente, vestígios de cultos astrolátricos que recebemos da Europa, via Portugal.

Estrela d’Alva - Nome popular do planeta Vênus, visto a leste, ao alvorecer. Estrela matutina. Inspira a poesia popular, sendo citadíssima nos versos folclóricos:

"Estrela d'Alva alumiou,
coroa do rei, relampiou!"
(Congo, São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG), 2014)

Sua aparição vespertina ("Estrela Vésper), a mais nítida "estrela" do cair da noite, muitas vezes a primeira visível, ganha o nome de "Papa-ceia":

"Te arretira, Papa-ceia,
que a d'Alva quer brilhar..."
(Enunciado popular, Santa Cruz de Minas, 1995, (*))

Estrela-de-Davi - Estrela mística, de seis pontas. Hexalfa. Símbolo de sabedoria. É um importante símbolo judaico. Na Umbanda é um dos símbolos da Linha do Oriente, chefiada pelo Orixá Xangô (Caô). Nas tradições populares funciona como forte elemento protetor contra malefícios espirituais, seja riscada, seja feita de penduricalho, amuleto se carregada ao pescoço. Confundida com a estrela de Salomão com grande frequência.

Estrela-da-Guia - A estrela que guiou os Reis Magos, do oriente a Belém. Estrela do Oriente. Cantada e recantada nos versos reiseiros no Brasil e fora dele. Folias, reisados, pastoris, etc. Sua representação simbólica em desenho é uma divisa, um distintivo e também um amuleto. Estrela de cauda, desenhada com um facho luminoso anexo, representação simbólica de sua trajetória celeste.

"Estrela do céu,
Estrela do Oriente,
guia meus passos
daqui para frente!"

"Estrela da Guia,
estrela de meu pai,
guia meus passos
nos caminhos onde vai!"
(Ensalmos, São João del-Rei, 2009, (**))

Estrela-do-Norte - 1 - Nome popular da Estrela Polar, que é “a última das estrelas que formam a cauda da constelação Ursa Menor. No decorrer das épocas e em conseqüência da precessão dos equinócios, qualquer estrela com uma latitude próxima de + 66º 33’ terá sido, em prazo mais ou menos longo, uma estrela polar.”, informa C.Aulete. Motiva versos:

“Ô lua nova!
Ô Estrela do Norte!
Vou pedir Nossa Senhora
pra te dar uma boa sorte!”
(Canto de agradecimento, Congo, Rio das Mortes [SJDR], 1998)

“Fui no céu contar estrela
só a do Norte separei;
é por ser o mais bonito
só contigo casarei...”
(Trova, zona rural de Bias Fortes, 1997, (***))

É um ponto de referência celeste, um guia e condutor de viajantes, "o norte", buscar o norte, se diz habitualmente, nortear.

O designativo "estrela do norte" caiu no gosto popular e veio a designar no nordeste do país um personagem humano feminino de certos grupos de pastoris (modalidade de pastorinhas). Também serve de nome a várias plantas rubiáceas: Randia aculeata, R. mitis, R. formosa, Gardenia brasiliensis; também da amarilidácea Eucharis grandiflora, segundo C.Aulete, dentre outras plantas.

Flor da estrela do norte em São João del-Rei, 2009. 
Thithonia diversifolia, asteraceae. 

Estrela-de-Salomão - Signo de Salomão, "Sino Samão". Estrela mística, de cinco pontas. Pentalfa. Símbolo de força espiritual. Reúne os mistérios sagrados. Seu desenho aparece com enorme frequência nas bandeiras, instrumentos e uniformes dos grupos folclóricos, emblemática, em função estética e de amuleto ao mesmo tempo. Figura em inúmeros pontos riscados da Umbanda, como elemento central ou satélite, conjugado a flechas, sóis, luas... invocando diversas entidades. Esta estrela desenhada, rodeada por uma circunferência que interliga suas pontas, encimada por uma pequena cruz, representa o Ponto das Almas, que se riscado, seria capaz de invocar a força protetiva das almas.

Estrela de Salomão pintada no couro de um tambor
de congado. Catupé, Santana do Jacaré/MG. 18/10/2015.
 

Setestrelo - nome popular das Plêiades, aglomerado estelar de brilho azulado na constelação de Touro. Sete Estrelas, Sete Estrelos. Influenciou largamente a mitologia de vários povos, inclusive nossos indígenas. É citado na Bíblia Sagrada nos Livros de Jó e Amós e inspira profecias e crenças.

Cruzeiro do Sul - constelação cujas principais estrelas se dispõe em forma de cruz latina, marcando nitidamente o polo sul celestial, referência importante para os viajantes e navegadores. Para o povo é uma prova concreta do poder de Deus, que marcou de forma perene no céu o símbolo da redenção cristã. Os pastoris nordestinos lembram-se dessa constelação ao saudar as dançantes do cordão azul (em oposição ao cordão encarnado, que é a outra fileira de pastoras, de vestidos vermelhos):

"Estrela do Norte,
Cruzeiro do Sul,
vamos dar um viva
ao cordão azul!"
(Apodi/RN, 1994)

Três Marias - as três estrelas alinhadas ao centro da constelação de Órion, referenciando personagens da Paixão de Cristo. Um canto de terreiro, da Linha das Crianças (erês) assim se expressa:

"Lá no céu tem três estrelas,
todas três em carreirinha,
uma é Cosme e Damião,
outra é Mariazinha."
(São João del-Rei, 2014)

Em carreirinha ou encarreirada vale por alinhada, na mesma reta.

Para maiores detalhes ler a postagem TRÊS MARIAS.
Pontos desenhados com base em estrelas, flagrados a partir de pintura em tamborins de congados de São João del-Rei:
à esquerda, o Ponto das Almas; à direita, o Ponto dos Sete Elementos (representados pelos círculos pretos - céu, terra, sol, lua, águas, matas e pedreiras). 

Enfeite natalino no "Beco da Escadinha", no
Centro Histórico de São João del-Rei - estrela de cinco pontas.
06/01/2016. 
Referências Bibliográficas

AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Delta, 1978. 5v. 3998p.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d].

Notas e Créditos

* Informante: José Cândido de Salles
** Informante: Maria do Rosário Neves
*** Informante: Elvira Andrade de Salles
****Texto, fotografias e acervo: Ulisses Passarelli
***** Desenhos dos pontos: Iago C.S. Passarelli

Nenhum comentário:

Postar um comentário