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domingo, 15 de março de 2015

Encruzilhada: o cruzamento da sorte

“Encruza”. Cruzamento de duas vias. Ponto onde duas ruas, estradas, caminhos ou trilhas se encontram esboçando uma cruz. No sul mineiro o entrocamento de variante do Caminho Geral do Sertão (leia-se atualmente “Estrada Real”) valeu o nome ao município de Cruzília. No Nordeste, pelo interior do Rio Grande do Norte, a nomenclatura é outra: "Quatro Bocas" é uma  povoação recôndita no município de Pedro Velho, indicando a entrada de quatro caminhos, a "boca" de uma estrada. 

O Dicionário de Cascudo, cita que na Roma antiga já corria a crença de que esse é um lugar de espectros. Na Bíblia, o Livro de Ezequiel contém citações aos cruzamentos de caminhos – 16: 24, 31; e 21: 26, neste citando especificamente a consulta à sorte na encruzilhada pelo rei babilônio. 

Na visão popular calcada em antiquíssimas tradições, a encruzilhada é o lugar típico da aparição das assombrações em todo o tempo, mormente na quaresma. É a morada ideal dos seres do imaginário, dos monstros mitológicos aparecerem, dos espíritos malfazejos praticarem seus atos perversos. É o lugar da decisão: para onde seguir? ... podendo levar a um lugar certo, do bem, ou errado, do pecado; rumo da sorte ou do azar. 

Indefinição, incerteza, é o que a encruzilhada proporciona. Quando alguém se vê numa circunstância da vida que tem que tomar uma decisão que exclui totalmente outra, usamos dizer: "está numa encruzilhada..." ou ao fato da decisão em si dizemos de forma figurada que pertence "às encruzilhadas da vida..."

Como tal exige protocolo. Encruza se atravessa o mais rápido possível e se vai em frente. Parar sobre elas é só o mínimo de tempo possível. Não é lugar adequado para conversar, bater-papo, contar segredos, expectativas ou planos, o que poderá botá-los à perdição. Se a pessoa vem rezando pela rua, ao atravessar um cruzamento deve ao menos em pensamento pedir licença: "_ dá licença!", e assim não sofrerá perturbações. 

Referenciada também num canto de congado:


"Quando eu vim da Bahia, 
a estrada eu não via... BIS 
cada encruza qu’eu passava, 
uma vela eu acendia!” BIS 
(Catupé, Santa Cruz de Minas, Cap. Luís Pereira dos Santos, 2005). 

É comum os congadeiros aos passarem em forma pelas encruzilhadas, sob o comando do capitão, fazerem uma coreografia na entrada da mesma, chamada "meia-lua", que consiste num movimento semi-circular da fila de dançantes da direita passando para a esquerda e a da esquerda passando para a direita. O comando em geral se faz com o cruzamento do braço do capitão, com as palmas das mãos voltadas para cima, tocando-se a nível dos pulsos. O descruzamento será na repetição do movimento coreográfico após a encruzilhada ou na próxima. Uma segunda coreografia, um pouco mais complexa, inclui quatro meias luas, uma em cada boca da encruzilhada. Seja como for, é uma medida preventiva, pois acreditam que seu descuido poderá prejudicar o congado, tal como desafiná-lo, provocar desentendimentos, mal estar físico nalgum congadeiro mais despreparado. 

Na concepção religiosa afro-brasileira Ogum é o senhor dos caminhos e regente maior do centro da encruzilhada, enquanto seus cantos pertencem aos exus. Daí pedir-se licença a ambos e destinar as entregas (despachos e oferendas) no lugar certo conforme a entidade de destino, sob pena de não obter o resultado desejado. Neste sentido e com mais detalhes distingue-se a “encruza fechada”: em forma de letra T, domínio das pomba-giras, lugar de trabalho de amarração; "encruza em Y": domínio principalmente dos cangaceiros (casta de exus); "encruzas complexas": entroncamento de várias vias: toda categoria de entidades da linha esquerda. Estas são consideradas perigosas posto que frequentadas inclusive e principalmente pelos espíritos sem luz (trevosos), atrasados. 

Encruzilhada tem dono. É a passagem temerosa, é a travessia do medo, da incerteza, da instabilidade momentânea. É a morada da assombração, do maligno. Esta é a concepção que impregnou a alma da cultura popular. 


Uma encruzilhada em Y. 

Referências Bibliográficas


CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.
BÍBLIA SAGRADA. 6.ed. São Paulo: Ave Maria, 1965.


Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S. Passarelli

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