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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O folclore dos dentes - parte 3

Vocabulário popular da odontologia

O universo popular da cultura informal, do linguajar diário, criou um vasto vocabulário em torno da dentição e de certas práticas clínicas odontológicas. Ele mostra um modo muito especial de visualizar as relações de saúde do homem com respeito aos dentes, constituindo uma curiosa forma de nomenclatura, algumas vezes extensiva até a quem trabalha na área. 

Não é nada técnico, oficial nem científico, tão pouco desrespeitoso. É folclore, vivo e alegre, perspicaz nas observações, registrando ora com humor ora com uma pitada de sofrimento a realidade do problema da saúde bucal, que em parte ainda atinge lamentavelmente uma parcela do país. 

Os termos foram recolhidos por longos anos de vivência clínica em São João del-Rei e Santa Cruz de Minas. Foram preservados de maneira anônima em velha anotação de pesquisa. 

Guia de tentos e dentes. São João del-Rei, 2007. 

Banguela (o) – desdentado, total ou parcial. Termo pejorativo que remete aos benguelas, etnia africana, bantos de Angola escravizados no Brasil. Tinham o costume de limar os dentes gradativamente desde muito cedo, de tal forma que em idade avançada eram minúsculos, por questões que consideravam estéticas e talvez rituais. Por analogia, quem tinha dentes pequenos ou faltantes eram equiparados aos benguelas. Eram embarcados ao Brasil pelos traficantes de escravos no porto de São Filipe de Benguela, possessão portuguesa em Angola. 

Beque – sorriso falho quando só aparecem os caninos (ou algum pré-molar), quando os incisivos já foram extraídos. Termo absorvido do futebol. 

Bloco – coroa total metálica.

Boca de latrina – expressão pejorativa: sujeito acometido por intensa halitose.

Boqueira – queilite angular. Lesão nas comissuras labiais (ângulos da boca) associada à perda da dimensão vertical e infecção fúngica.

Boticão – “buticão”, fórceps. Instrumento usado para extrair dentes.

Cabresto – mentoneira, aparelho usado em ortodontia e ortopedia funcional dos maxilares. Analogia ao equipamento de couro e metal usado na cabeça dos animais de carga e montaria.

Caco – foco residual ou resto radicular. Remanescente dental inaproveitável, extremamente destruído pela cárie e doença periodontal.

Chapa – 1- Dentadura. 2- Radiografia. “Bater uma chapa” (radiografar).

Chumbinho – amálgama.

Cobra caolha – amálgama aplicado numa única fóssula oclusal de pré-molar inferior. Ver: olho de cobra.

Cocada – prótese total removível ainda em confecção, na fase de prova dos dentes em cera. 

Curativo – capeamento pulpar; restauração provisória. 

Dentadura – Prótese total removível. Denominação consagrada pelo uso, inclusive no linguajar profissional.

Dentão – dente excepcionalmente grande; caso de macrodontia.

Dente crescido – caso de pericementite: inflamação aguda no periodonto, ao redor do cemento, causando incômoda e dolorosa sensação de extrusão dentária.

Dente da frente – incisivo.

Dente de cavalo – dente anterior grande e de ângulos nítidos; incisivo proeminente.

Dente de leite – dente decíduo. Denominação consagrada pelo uso, inclusive no linguajar profissional. Sua tonalidade muito branca lembra a do leite[1].

Dente de mandioca – dentes anteriores superiores muito brancos, grandes, de tamanho e forma muito parecidos, com pouca distinção morfológica entre incisivos centrais e laterais [2].

Dente de traíra – dente afiado, pontiagudo, como do peixe traíra (gênero Hoplias, família erythrinidae).

Dente do juízo – terceiro molar.

Dente do siso – ou apenas, “siso”; terceiro molar. Denominação consagrada pelo uso, inclusive no linguajar profissional. O mesmo que “dente do juízo”, nome dado devido ao período que estes dentes erupcionam (“nascem”), em torno de 18-21 anos de idade em média, quando o jovem atinge a maioridade [3].

Dente inflamado – literalmente, dente acometido por pulpite. O povo adota este conceito por extensão para outras situações clínicas dolorosas, tais como: pericementite, abscessos (crônicos ou agudos) e osteíte.

Dente mole – elemento dentário com mobilidade, gerada pela perda patológica de implantação óssea.

Dente podre – dente extensamente destruído por lesão cariosa. Geralmente é resultado de uma cárie aguda e por vezes, rampante.

Dentucinho – 1- criança com dentição mista (“fase do patinho feio”), na qual os dentes permanentes parecem ser grandes em relação ao tamanho da face infantil, ainda em crescimento. Dentes com diastema (afastamento com falta de ponto de contato entre elementos contíguos). 2- diminutivo de dentuço.

Dentuço – pessoa com os dentes anteriores grandes. Dentudo. É sempre de uso zombeteiro, especialmente aplicado aos portadores de protrusão maxilar.

Distraí – corruptela comum de extrair. Exodontia, avulsão cirúrgica.

Dor de dente – odontalgia. Diz-se dos sintomas de pulpites e lesões ósseas periapicais (junto ao ápice da raiz dentária).

Estrelinha – amálgama, para as crianças.

Goleiro - incisivo inferior remanescente. 

Heróis da resistência – últimos dentes remanescentes em uma boca edêntula em sua quase totalidade. Não raro restam apenas os dentes anteriores inferiores.

Limpa-trilho – diz-se quando os incisivos mediais superiores são muito protrusos. Analogia à forte peça de ferro que os trens a vapor antigos, as maria-fumaça, tem na frente, a fim de tirar objetos dos trilhos, para evitar acidentes por descarrilamento da locomotiva.

Limpeza – procedimento de profilaxia dental: raspagem de cálculos, remoção de manchas, polimento dentário – indistintamente.

Marfim – 1- esmalte dentário. 2- resina de uso odontológico estético.

Massinha – cimento de óxido de zinco e eugenol usado em restaurações provisórias e capeamentos (diretos e indiretos).

Mata-cobra – articulador de garfo ou charneira, usado para montagem de modelos de gesso em laboratório.

Mau hálito – halitose.

Nervo do dente – a polpa dentária e não especificamente as suas terminações nervosas.

Obturar – de forma indevida é sinônimo de restaurar. Obturar é tampar, fechar. Restaurar é restituir forma, função e estética.

Olho de cobra - amálgama aplicado nas duas fóssulas oclusais de pré-molar inferior. Ver: cobra caolha.

Panela – os molares. Também se diz das amplas cavidades cariosas que acometem estes dentes.

Pé do dente – região cervical da coroa (próximo à gengiva) e colo do dente. É comum o paciente queixar-se da dor nesta área nos casos de recessão gengival e abrasão local do tecido dentário.

Perereca – prótese parcial removível muco-suportada, sem grampos fundidos e eventualmente com grampos improvisados com fios ortodônticos. Pelo suporte deficiente, “salta” da boca, daí “perereca”, o que pula.

Pilão – molar. O termo se aproxima da etimologia inicial, pois que, molar vem de , a pedra de moer, donde surgem as palavras moinho, moagem, moleiro, moenda. Pilão é o artefato de madeira usado primitivamente para moer, por vias manuais e não por mecanismo mecânico. O molar é o dente responsável pela moagem do alimento.

Piorréia – “periodontose”; periodontite avançada. Lesão do periodonto quando o dente já apresenta franca mobilidade, muito tártaro, sangramento gengival, tecido de granulação, alteração das características anatômicas da região peridental.

Pivô  - pivot, coroa com espiga. Coroa unitária com pino intracanal integrado à própria coroa, cimentado em conjunto. Em grande parte substituído pelo sistema de núcleo metálico fundido cimentado antes da coroa propriamente dita, num sistema mais eficiente.

Platina – amálgama. O povo supõe que o amálgama seja feito por platina, talvez porque no passado sua liga recebia pequenos percentuais deste metal raro e precioso.

Presa – canino. Terceiro dente da bateria anterior, imediatamente após os incisivos.

Quisto – cisto.


Rancá – extrair dente; exodontia.

Ratinho – pessoa com dentes semelhantes aos de um rato. Se o dente é pequeno dizem “ratinho”, se grande e protruso, “ratão”.

Rôti – Roach, PPR (prótese parcial removível), sistema a grampos fundidos, geralmente em liga de cromo-cobalto.

Sapinho – candidíase oral, principalmente em crianças. Lesão esbranquiçada e sangrante, causada pela infecção fúngica por Candida albicans.

Sorriso cento e um – diz-se que alguém tem este sorriso quando falta um único incisivo na bateria anterior. É uma aproximação bem humorada com a matemática: 101 é formado pelos algarismos um, zero e um; como na boca – um dente, sem dente, outro dente ...

Sorriso de piano – arco dentário com elementos de tamanho e forma próximas, tendo o aspecto nitidamente quadrilátero. A monotonia da composição gerou a analogia com o teclado de um piano.

Sorriso mil e um – faz-se pelo mesmo princípio do cento e um, porém quando faltam dois incisivos vizinhos um do outro.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografia: Iago C.S. Passarelli, 2014   
*** Leia também:

O folclore dos dentes - parte 1
O folclore dos dentes - parte 2



[1] - Na gíria futebolística, sobretudo no futebol informal, infanto-juvenil, “dente de leite” é o jogador muito ruim, que é posto em campo só para complementar o número regimental de jogadores, sendo excluído das jogadas importantes.
[2] - As crianças de São João del-Rei costumam brincar com a casca da mandioca (Manihot utilíssima, euforbiácea), pegando a parte interna (muito branca) e cortando à faca as bordas e fazendo entalhes que imitam dentes pela forma. Curvam em forma de arco dentário e alojam esta “dentadura de mandioca” no vestíbulo bucal, mantendo-a presa pela musculatura do lábio superior e bochechas.
[3] - No interior potiguar, em 1996, em Santo Antônio (do Salto da Onça) e Caicó (nas comunidades rurais de Laginhas e Sabugi) ouvi diversas vezes chamarem ao terceiro molar de "quexá" e “dente quêro”.

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