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sexta-feira, 25 de julho de 2014

A crendice da transmutação

No passado havia a crença da transmutação, cuja essência era a possibilidade de, em situações tais, uma forma de vida se transformar em outra. A biologia revela a impossibilidade deste acontecimento. Chegou-se a teorizar o assunto como se fora científico, justificando por este artifício o surgimento de bichos na "carne morta" [1]: os devoradores gerando podridão, nada mais seriam que carne transformada em larva. 

Claro que a evolução da ciência derrubou por terra semelhante crença, ao provar cabalmente, que as larvas surgiram de ovos depositados por moscas, atraídas pelo cheiro da carne em putrefação. Num experimento, se a carne for isolada das moscas por uma tela-mosquiteiro, não surgem as larvas.

Mas a crença da transmutação, tão propalada pelos alquimistas, persistiu nos meios folclóricos. Nos anos noventa uma sexagenária em Santa Cruz de Minas, dizia que crina de cavalo, cortada e atirada num córrego de águas ferruginosas, teria o poder de se transformar em serpentes depois de um certo prazo.

Numa postagem anterior, o Folclore das Cobras - parte 1, foi descrita a mudança da raiz da guaipeva em serpente.

Decerto a mais popular das transmutações é a do morcego, muito popular aqui em São João del-Rei na década de 1970 e ainda ouvida por aí: o morcego é um rato, que depois de velho cria asa e perde a cauda. Escrevendo sobre a vizinha cidade de São Tiago, a Professora Ermínia Resende também aludiu a esta transformação imaginativa: "há muita crença de que morcego é rato velho". De fato é uma crendice de expansão geográfica bem mais larga, mostra-nos Hitoshi Nomura, posto que conhecida em terras paulistas e outras. Monteiro Lobato aproveitou-a no conto 'Os negros': “Mal entramos, morcegos ás dezenas, assustados com a luz, debandaram ás tontas, em voejos surdos. _ Macacos me lambam se isto aqui não é o quartel-general de todos os ratos de asas deste e dos mundos vizinhos”. 

O morcego é animal considerado tenebroso, cuja figura é vinculada ao sombrio, ao mal, associação de imagens ao seu hábito de vida. Contudo, nos terreiros de umbanda o povo reconhece o Exu Morcego, entidade da linha esquerda, muito prestigiado. 

Em verdade, o morcego desperta relativamente poucas crendices, quiçá pela repulsa que o homem nutre por ele. É devido aos seus hábitos e aspecto, sobretudo, pela hematofagia, característica de um número limitado de espécies. Obviamente a temida transmissão da hidrofobia contribui para esta aversão.

Morcegos em repouso numa mangueira em São João del-Rei.

Referências 

LOBATO, Monteiro. Negrinha. 22.ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.51. 

NOMURA, Hitoshi. Os mamíferos no folclore. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 1996. Coleção Mossoroense, n.890, série C, 146p. Verbetes: Morcego e Vampiro.

RESENDE, Ermínia de Carvalho Caputo. Acaso são estes os sítios formosos? Brasília: Estações, 2008. 211p. p.72-74.

Créditos

- Texto: Ulisses Passarelli.
- Fotografia: Maria Aparecida de Salles, 25/07/2011.

Notas 

[1] Carne morta: expressão indicativa de carne exangue. O sangue é símbolo vital. Carne ainda com sangue é "carne viva", expressão coloquial, consagrada pelo uso.  

Revisão: 30/07/2025. 

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