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quinta-feira, 3 de abril de 2014

Excelência de Nossa Senhora da Lapa

As excelências (também chamadas excelenças e incelenças) são cantos sagrados, mortuários em geral, mas também invocatórios e para livrar de males específicos (temporais, pestilencias), do universo da religiosidade popular, usados para velar cadáveres, geralmente entoados por mulheres. Assemelham-se aos benditos, dos quais se diferenciam por alguns detalhes. As primeiras tem tipicamente a sequência numérica de execução que deve ser cumprida. Uma... 

Duas lecontina
eu hei de rezar,
que essa chuva muito brava
ela há de parar!

Duas lecontina [palavra sagrada, reza]
que eu rezei, Jesus, Maria, 
se não viesse ao mundo,
ai, de nós, o que seria?

Três lecontinas, quatro, etc.

O detalhe numérico não acontece com os benditos, nos quais "o canto se repete indefinidas vezes, variando as dimensões das estrofes; em algumas circunstâncias, apresenta um caráter narrativo", segundo GOMES & PEREIRA (1995). Denota-se o uso frequente da expressão "bendito, louvado seja!", como fórmula-feita, sendo cantados aos pés do defunto. 

GOMES NETO (1979) se refere em especial ao fato de a excelência ser "uma súplica ao santo, enquanto o bendito é-lhe um canto de louvor..." 

CASCUDO (s/d) ensina que as excelências são cantadas em uníssono, sem acompanhamento instrumental, à cabeceira dos defuntos, que não podem ser interrompidas até o cumprimento de todo o rito sob pena daquela alma não se salvar, pois Nossa Senhora se ajoelha para ouvir o canto e só levanta quando acaba.

POEL (1977) esclareceu sobre as incelências:

"(...) nos livros chamados de excelências, são pequenos cantos sempre repetidos 7, 9 ou 12 vezes, cantados por parentes, amigos e vizinhos em redor de um defunto adulto durante a sentinela noturna. (...) ao mesmo tempo são cantos de despedida pelos quais o povo desabafa seus sentimentos de tristeza e desespero. Nesse contexto há abusos de bebidas alcoólicas." (p.18)

O canto das excelências é conhecido em Portugal, embora os rituais mortuários tenham uma natureza cosmopolita.

A devoção a Nossa Senhora da Lapa (*) rendeu um curioso exemplar do cancioneiro religioso, coletado em Santa Cruz de Minas, cujo desenrolar dos versos em quadras, rimadas no sistema ABCB, tem um caráter enumerativo. Para a coleta, foram duas audições da mesma informante, em ocasiões distintas. Em uma não havia preocupação com a ordem dos números; em outra, a sequência crescente era respeitada, tal como ouvi:

Imagem de N.S.da Lapa,
Santuário do Sr.Bom Jesus de Matosinhos,
São João del-Rei/MG.
Nossa Senhora da Lapa
tem uma estrela na testa,
foram os anjos que puseram
no dia de sua festa. 

Nossa Senhora da Lapa
tem duas estrelas no rosto, 
foram os anjos que puseram
no dia de seu encosto. 

Nossa Senhora da Lapa 
tem três estrelas na mão,
foram os anjos que puseram
no dia de São João. 

Nossa Senhora da Lapa 
tem quatro estrelas nos pés, 
foram os anjos que puseram
no dia de São José. 

GOMES & PEREIRA (1995) registraram uma versão dessa excelência em São Gonçalo do Abaeté/MG, classificando-a como "de invocação":

Nossa Senhora da Lapa
Com seu sinale [sinal] no rosto
foi os anjos que lhe pusero 
no dia 01 de agosto. (p.314)

(segue: 02 de agosto, etc.)


Referências Bibliográficas

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.

GOMES NETO, José. Alguns apontamentos sobre incelenças. Revista Norte-rio-grandense de Folclore, Natal, Comissão Norte-rio-grandense de Folclore, n.1, jun.1979, p.46-60.

GOMES, Núbia Pereira de Magalhães, PEREIRA, Edimilson de Almeida. Do presépio à balança: representações sociais da vida religiosa. Belo Horizonte: Mazza, 1995.

POEL, Francisco Van der, Frei. Deus vos salve, Casa Santa!: pesquisa de folc-música religiosa. São Paulo: Paulinas, 1977. 87p. 

Notas e Créditos

* É corrente em São João del-Rei um ponto de umbanda da linha dos baianos, com pequenas variantes, que cita esta invocação mariana:

"Nossa Senhora da Lapa,
da lapa do Bom Jesus,
baiano quando chega,
ele vem aos pés da cruz."

No segundo verso há uma nítida alusão à devoção ao Bom Jesus da Lapa, uma das maiores expressões devocionais baianas, centrada no vale do Rio São Francisco.

** Texto: Ulisses Passarelli.

*** Fotografia: Iago C.S. Passarelli (14/09/2013).

**** Informante das excelências (lecontina e N.S.da Lapa): Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas, 1996.

***** Para saber mais sobre Nossa Senhora da Lapa clique neste link: Virgem da Lapa  

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