O cabelo é um símbolo de força, a exemplo
do hercúleo Sansão bíblico (Livro dos Juízes, capítulo 13 e seguintes), do qual toda força procedia de sua vasta cabeleira. Dalila
traiçoeiramente o seduziu, descobriu seu segredo, embriagou-o e cortou seu cabelo.
Enfraquecido foi vitimado pelos filisteus.
O Deuteronômio, no vigésimo primeiro capítulo prescrevia aos hebreus raspar a cabeça e cortar as unhas das prisioneiras de guerra que acaso quisessem tomar por esposas. Era também uma prática de luto. Já o Livro dos Números, no capítulo 6, tratando da lei sobre os nazarenos, determinava aos fiéis que quisessem declarar voto de nazarenato a interdição do corte dos cabelos até o dia da consagração: "a navalha não passará pela sua cabeça" ... "será santo, deixando crescer livremente os cabelos de sua cabeça." (versículo 5)
É muito vasto o folclore do cabelo. Nos folguedos populares é costume alguns personagens usarem tranças postiças, conforme registros dos folcloristas no nordeste brasileiro e como mostra as fotos abaixo de folias dos Campos das Vertentes, feitas com pelos de rabo de cavalo.
Observar também o flagrante abaixo, imagem tomada de um grupo de congado:
É costume antiquíssimo consagrar o cabelo: deixá-lo crescer e depois cortá-lo como oferenda.
Certas tonsuras são específicas de algumas concepções religiosas e etnias. Entre os ex-votos encontram-se mechas entregues nas salas de milagres. Outro exemplo é do cabelo humano especialmente reservado por longo tempo pelo fiel, para ser cortado e ajustado à cabeça dos santos barrocos, fazendo as vezes de cabelo da imagem.
Nos terreiros de umbanda vê-se com frequência a cena das mulheres que estão na gira soltando os cabelos presos antes da incorporação do guia. No geral observa-se que se a médium mantiver o cabelo preso a entidade a influencia fortemente, mas tem dificuldades para incorporar.
O cabelo povoa o imaginário popular servindo de inspiração para composições poéticas de nosso refraneiro e cancioneiro. O saudoso capitão de congado José Camilo da Silva, por volta de 1994 cantou-me a seguinte peça de moçambique, dizendo-a muito antiga, cantada pelo Capitão "Barão", de um grupo de Ritápolis, extinto a décadas:
O tratamento dos cabelos se faz na medicina popular com ervas específicas. Para cabelos ressecados, quebradiços, usam esfregar um unguento à base de mel, com babosa ou polpa de abacate; para fraqueza das raízes, com queda, o banho da infusão das folhas do jaborandi (*) (tem o falso e o verdadeiro, este mais eficaz), das matas de galeria (ciliar), e do murici-branco, dos cerrados. O tratamento de piolhos procede-se com um banho de vinagre. Se a infestação é muito forte e não melhora, procede-se à simpatia de pegar três piolhos e colocar dentro de uma caixinha de fósforos e despachar numa encruzilhada, pedindo para levar embora esses parasitas. Em pouco tempo a pessoa se vê livre deles. O tratamento de caspas faz-se com sumo de limão. Este blog apenas registra o costume popular, mas não aconselha sua prática, que pode eventualmente prejudicar a saúde.
Para cortar o cabelo algumas pessoas observam a fase da lua conforme o resultado pretendido: cortá-los na cheia, preserva a vitalidade habitual; na lua nova, não há influência; na minguante o crescimento será lento e tende a ralear a cabeleira; na lua crescente o cabelo se avoluma e cresce rápido. Assim reza a crendice, como anotei em São João del-Rei.
Na crendice popular o cabelo guarda a essência carnal da pessoa. Por isto, em concepção anímica, feitiços feitos em fios atingem por conseguinte a própria pessoa a quem o cabelo pertencia. A partir deste princípio, por temor, muitos não cortam o cabelo em qualquer barbearia ou então, pedem ao profissional o favor de recolher as aparas e embrulhar. A pessoa então leva consigo para dispensar onde melhor convier.
Há quem queime os cabelos cortados, por praticidade, mas os crédulos invalidam esta ação dizendo-a geradora de “cabeça quente”. A pessoa fica nervosa, agitada, com cefaleia, sem motivo aparente. Recomenda-se assim jogar todo resíduo do corte numa moita de bananeira, para ficar com a “cabeça fresca”.
Alguns homens não gostam de cortar o cabelo com mulheres, supondo que a mão feminina sobre a cabeça masculina representa dali por diante um domínio, ou seja, o homem enfraquecido passará a ser subjugado pelas mulheres, decerto uma sobrevivência hodierna do mito de Sansão.
* Um anúncio do antigo jornal O Repórter, n.23, de 27/06/1907, publicado em São João del-Rei, dizia expressamente: "A JABORANDINA é a locção mais preferida pelos freguezes do Salão Santos; extingue por completo a caspa; á venda neste salão." Acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida.
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografias: Iago Christino Salles Passarelli (palhaços; jaborandi-verdadeiro); Ulisses Passarelli (Sr.dos Passos, jaborandi-falso, murici)
O Deuteronômio, no vigésimo primeiro capítulo prescrevia aos hebreus raspar a cabeça e cortar as unhas das prisioneiras de guerra que acaso quisessem tomar por esposas. Era também uma prática de luto. Já o Livro dos Números, no capítulo 6, tratando da lei sobre os nazarenos, determinava aos fiéis que quisessem declarar voto de nazarenato a interdição do corte dos cabelos até o dia da consagração: "a navalha não passará pela sua cabeça" ... "será santo, deixando crescer livremente os cabelos de sua cabeça." (versículo 5)
É muito vasto o folclore do cabelo. Nos folguedos populares é costume alguns personagens usarem tranças postiças, conforme registros dos folcloristas no nordeste brasileiro e como mostra as fotos abaixo de folias dos Campos das Vertentes, feitas com pelos de rabo de cavalo.
Trança em palhaço de folias de Reis: São Sebastião da Vitória (São João del-Rei)
27/01/2014.
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Trança em palhaço de folias de Reis:Conceição da Barra de Minas. 27/01/2014.
Observar também o flagrante abaixo, imagem tomada de um grupo de congado:
Trança em caboclo da Guarda Divino Espírito Santo, Bairro Nova Cintra, Belo Horizonte/MG. 27/04/2014. |
Certas tonsuras são específicas de algumas concepções religiosas e etnias. Entre os ex-votos encontram-se mechas entregues nas salas de milagres. Outro exemplo é do cabelo humano especialmente reservado por longo tempo pelo fiel, para ser cortado e ajustado à cabeça dos santos barrocos, fazendo as vezes de cabelo da imagem.
Senhor dos Passos, com belos cabelos cacheados. Passinho da Rua Padre José Maria Xavier, São João del-Rei/MG, 17/04/2014. |
Nos terreiros de umbanda vê-se com frequência a cena das mulheres que estão na gira soltando os cabelos presos antes da incorporação do guia. No geral observa-se que se a médium mantiver o cabelo preso a entidade a influencia fortemente, mas tem dificuldades para incorporar.
O cabelo povoa o imaginário popular servindo de inspiração para composições poéticas de nosso refraneiro e cancioneiro. O saudoso capitão de congado José Camilo da Silva, por volta de 1994 cantou-me a seguinte peça de moçambique, dizendo-a muito antiga, cantada pelo Capitão "Barão", de um grupo de Ritápolis, extinto a décadas:
Maria Colina,
quando te chamar, vem cá,
passa o pente no cabelo,
deixa o cabelo anelar...
No Rio Grande,
deixa o povo sossegar!
O tratamento dos cabelos se faz na medicina popular com ervas específicas. Para cabelos ressecados, quebradiços, usam esfregar um unguento à base de mel, com babosa ou polpa de abacate; para fraqueza das raízes, com queda, o banho da infusão das folhas do jaborandi (*) (tem o falso e o verdadeiro, este mais eficaz), das matas de galeria (ciliar), e do murici-branco, dos cerrados. O tratamento de piolhos procede-se com um banho de vinagre. Se a infestação é muito forte e não melhora, procede-se à simpatia de pegar três piolhos e colocar dentro de uma caixinha de fósforos e despachar numa encruzilhada, pedindo para levar embora esses parasitas. Em pouco tempo a pessoa se vê livre deles. O tratamento de caspas faz-se com sumo de limão. Este blog apenas registra o costume popular, mas não aconselha sua prática, que pode eventualmente prejudicar a saúde.
Murici-branco. Chapadão, Serra de São José. Tiradentes/MG, 31/05/2014. |
Jaborandi-verdadeiro. Brumado de Cima (São João del-Rei/MG). Mata ciliar do córrego local,11/07/2015. |
Jaborandi-falso. Pombal (São João del-Rei/MG). Mata ciliar do Rio das Mortes, 12/04/2014. |
Na crendice popular o cabelo guarda a essência carnal da pessoa. Por isto, em concepção anímica, feitiços feitos em fios atingem por conseguinte a própria pessoa a quem o cabelo pertencia. A partir deste princípio, por temor, muitos não cortam o cabelo em qualquer barbearia ou então, pedem ao profissional o favor de recolher as aparas e embrulhar. A pessoa então leva consigo para dispensar onde melhor convier.
Há quem queime os cabelos cortados, por praticidade, mas os crédulos invalidam esta ação dizendo-a geradora de “cabeça quente”. A pessoa fica nervosa, agitada, com cefaleia, sem motivo aparente. Recomenda-se assim jogar todo resíduo do corte numa moita de bananeira, para ficar com a “cabeça fresca”.
Alguns homens não gostam de cortar o cabelo com mulheres, supondo que a mão feminina sobre a cabeça masculina representa dali por diante um domínio, ou seja, o homem enfraquecido passará a ser subjugado pelas mulheres, decerto uma sobrevivência hodierna do mito de Sansão.
Notas e Créditos
* Um anúncio do antigo jornal O Repórter, n.23, de 27/06/1907, publicado em São João del-Rei, dizia expressamente: "A JABORANDINA é a locção mais preferida pelos freguezes do Salão Santos; extingue por completo a caspa; á venda neste salão." Acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida.
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografias: Iago Christino Salles Passarelli (palhaços; jaborandi-verdadeiro); Ulisses Passarelli (Sr.dos Passos, jaborandi-falso, murici)
São detalhes importantíssimos para o nosso conhecimento!
ResponderExcluirParabéns, Ulisses!
Parabéns por esta iniciativa que desvenda e mostra o quanto é importante o nosso folclore!
ResponderExcluirA essência escondida nos detalhes.
Valeu amigo!
Miranda.
O cabelo é um vasto tema folclórico: poder-se-ia falar dos tipos de corte e penteado (cóqui, trança, rabo de cavalo, maria-chiquinha, trepa-moleque), as cores, o anedotário sobre o careca, etc. O folclore é uma surpresa em cada tema, uma viagem em cada pesquisa. Grato pelas visitas e comentários. Grande abraço, Miranda! Dia que formos na serra de volta em passeio te mostro o murici-branco citado no texto.
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