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domingo, 19 de janeiro de 2014

A força das matas

A mescla cultural e religiosa extraordinária do Brasil, gerou em conjunto a certas características naturais do país, um sistema de crenças que atribui grande irradiação de forças espirituais aos domínios elementares da natureza: matas, serras, águas, campinas, etc.

Nossa imensa cobertura florestal e a multifacetada sabedoria indígena, impressionaram profundamente a alma popular, de conjunto aos saberes africanos trazidos pelos escravos e também da Europa, via colonizadores portugueses. 

Assim a mitologia indígena, no caldeirão da mestiçagem, nos legou nomes como Mãe da Lua (personificada na ave caprimulgiforme urutau), Mãe do Ouro (figurada no raio-globular, fenômeno meteorológico), Mãe d'Água (que sincretizou-se com os orixás femininos da água, que a África nos deu e com as sereias do Velho Mundo). Nos meios populares essas "mães" são égides protetoras de elementos naturais, cujos nomes aludem de imediato à área de seu domínio: Mãe da Mata, Mãe da Pedreira, Mãe da Cachoeira, etc. A ideia básica de entidades assim concebidas é de origem indígena. Os índios acreditavam nas cis, mães da natureza, sem necessariamente haver um pai.

Assim, como uma crença, passaram à cultura popular. Aqui mesmo nos Campos das Vertentes são correntes tais nomes e em São João del-Rei ouvi falar de Catambaiá, entidade considerada a "Vovó das Matas", talvez uma ancestral matriarca indígena.

Mas não apenas a ascendência ameraba nos deixou essas influências. O africano banto trouxe-nos a imagem do caçador divinizado, Mutalambô, que garante segurança e fartura tribal. Seu nome trazido de tão longe ainda é invocado em nossos terreiros de matrizes afro.

Oxóssi é um orixá, masculino, muito prestigiado, respeitadíssimo, cujo domínio é a floresta. É o chefe dos Caboclos e Caboclas (espíritos de antigos índios, tornados guias), coordenando as forças das matas, daí sua cor votiva ser em geral o verde. Recebe o oriki de “Rei das Matas” e o título de “Alaketu”, que significa rei, governador, líder do povo ketu (uma nação iorubá, hoje vinculada ao Benim). É considerado na espiritualidade como irmão caçula de Ogum, com quem tem grande afinidade. O sincretismo servirá de exemplo dessa proximidade: na Bahia Oxóssi  é sincretizado com São Jorge, enquanto no Rio de Janeiro e Minas Gerais o é com São Sebastião; Ogum é o contrário – São Sebastião na Bahia, São Jorge no Rio e em Minas. 

Janeiro é o mês da festa dos caboclos. O intenso veranico desse período é quebrado por algumas chuvas na semana que antecede o dia de São Sebastião. Essas águas pluviais em especial são chamadas "Comida de Oxóssi". Nas matas costuma-se ver nessa época oferendas de frutas estendidas sobre panos verdes, contidas em cestos artesanais; cabaças com mel, cuités com cerveja preta, morangas abertas por um tampo e recheadas de frutos, "curutos" (charutos), etc. 

Segundo a crença haveriam três oxóssis: este, propriamente dito (adulto, maduro), um outro, mais jovem, chamado Inlê e o terceiro, mais velho, chamado Odé. Outros porém consideram Inlê e Odé distintos de Oxóssi, embora os três sejam orixás mateiros.  Inlê tem por ferramenta o "amparo", que é uma chibata de três tiras de couro e espiritualmente é esposo de Oxum. Odé é sincretizado com São Bento e domina os animais peçonhentos, os bichos perigosos do mato. Tem grande força moral e doutrinadora.  

Ossãe, cuja grafia também aparece como “Ossanha”, Ossanyim”, “Orixaim” é um orixá das matas, solitário e retraído, filho de Oxalufã e Nanã, senhor das folhas, das plantas, da fitoterapia, da homeopatia. Conhece todas as plantas medicinais, os remédios da flora e as ervas sagradas, para fazer e desfazer qualquer feitiço, para apaziguar questões de quizila com os orixás ou para qualquer necessidade. Ossãe é quem ensina às demais entidades o uso dos vegetais. Sincretizado com Santo Onofre embora também cite-se São Benedito, menos apropriado para a aproximação. Só pode figurar no gongá ou no peji sob a forma sincrética, já que seu assento é feito oculto na mata virgem, sendo seu culto um tanto secreto e vedado à assistência dos terreiros. Seu ferro é uma árvore estilizada com a alegoria de um pássaro sobre uma das pontas. Somente pessoas de mediunidade forte e pura conseguem ter a visão deste orixá, sendo raríssimos os relatos de seu avistamento: aparece como uma figura humanóide camuflada de verde com a vegetação, semi-transparente, de aparência gelatinosa.

Com outros nomes relacionados às etnias de origem são conhecidas ainda mais entidades e conforme a cultura ou região à qual se relacionam podem ter características sincréticas diferentes das aqui apresentadas. As que foram citadas acima referenciam em linhas gerais as concepções religiosas e culturais que prevalecem nesta área do centro-sul mineiro, focalizada ou antes polarizada em São João del-Rei. 

O caráter geral que se impõe é o respeito às matas, como criação divina e domínio de entidades diversas, legados de diversos povos, inspirando a medicina popular, os rituais, danças, cantos...

"Lá na mata tem flores,
tem o rosário de Nossa Senhora,
padroeiro é São Benedito,
que nos valha nessa hora!"
(Ponto de terreiro, São João del-Rei, 1991) 


Mata da Limeira, Brumado de Cima (São João del-Rei/MG), 2010.

Notas e Créditos

* Texto e foto: Ulisses Passarelli

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