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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A Ferrovia em Matosinhos

A chegada do trem a São João del-Rei (vindo de Antônio Carlos, ex-Sítio) se dava por Matosinhos, único trecho ao qual vou me ater para os interesses deste texto. Passava a via férrea a princípio, em trajeto diferente do atual: de súbito, abandonava a vargem do Rio das Mortes, à altura aproximada da ilha que existe acima do Porto Real da Passagem [1], fletindo à esquerda e pelo platô do bairro, passava atrás da igreja uns 300 a 400 metros, aproximadamente, em diagonal, até alcançar o Ribeirão da Água Limpa, o qual atravessava no mesmo pontilhão atual. Daí para frente era como ainda hoje. Esse antigo itinerário corresponde à atual Rua Amaral Gurgel, que surgiu no leito da ferrovia após a retirada dos trilhos. Por isto ficou conhecida por “Linha Velha”, nome que até hoje persiste. 

Na Rua Amaral Gurgel ainda existia até a poucos anos, a casa que serviu de parada ferroviária, mas foi demolida nesta década. Segundo consta por via oral, também existe a que era do guarda-chaves, embora já hoje de aspecto modificado. Tal rua conserva ainda o traçado irregular, tortuoso, característico do antigo trecho férreo. Sua parte final ficou apelidada em meados do século XX, de “Beco do Jalão”, devido à grande quantidade ali existe de jalão, jambolão, jambolano, jamboleiro ou jamelão (Eugenia jambolana), árvore mirtácea, plantada nos arredores, produzindo fruto comestível, roxo, agridoce e adstringente. 

Uma citação deixa a entender que já nesta época (fim do século XIX) havia em Matosinhos pontos de parada do trem [2]: “não há quem ponha em duvida o grande melhoramento que significam os trens suburbanos entre esta cidade e a de Tiradentes, com estações (sic) na Agua Limpa, Mattosinhos e Casa da Pedra.” Não eram bem estações mas sim paradas. A da Água Limpa ficava na cabeceira do pontilhão sobre o ribeirão homônimo, do lado do bairro. Sabe-se que em tempos recuados teve um ramal daí até a olaria que existe mais acima, junto à Avenida Santos Dumont. A da Casa da Pedra ficava muito além, já quase no Rio Elvas. Nela se embarcava calcário. Da plataforma de embarque só restam as ruínas no meio do mato. 

Matosinhos assistiu à festiva passagem das tropas que se dirigiam para a nova Linha de Tiro da Colônia do Marçal (situava-se na encosta do morro onde hoje está o Recreio das Alterosas). A inauguração foi a 1º de janeiro de 1908 [3]: “Da estação desta cidade largou um comboio especial para o suburbio de Mattozinhos, conduzindo o Cel. Carlos F. de Mesquita, grande numero de officiaes do 28º batalhão, convidados civis e a excellente fanfarra do 28º. De Mattozinhos á linha fez-se o transporte em carruagens e cavallos”.

A partir de 1908 surgem mudanças significativas. A partir da linha em questão é construído o "Ramal de Matosinhos", que dela partia em curta extensão, terminando numa edificação de parada ferroviária construída bem diante da atual Estação Chagas Dória. Em 25/05/1908 foi inaugurada essa segunda Parada de Matosinhos, já a muitos anos demolida e da qual somente resta uma plataforma de pedra como lembrança. No ato da inauguração, o primeiro trem partiu de S. João às 11 h 45 min trazendo autoridades e a diretoria da estrada de ferro. Logo a seguir vieram várias outras composições, franqueadas ao povo, trazendo os são-joanenses para a inauguração. O Dr. Chagas Dória através da Câmara Municipal fez expedir diversos convites às autoridades e à imprensa. A estrada de terra ligando a cidade ao arraial foi reparada, inclusive a Ponte da Água Limpa, para maior facilidade dos que não viessem de trem. A parada estava “garridamente enfeitada, onde tocavam as bandas do 28º Batalhão e dos Operários da Oeste”. Foi lavrada uma ata e lida pelo secretário da estrada, Capitão Leopoldo Araújo. A bênção foi dada pelo Padre Gustavo Ernesto Coelho “sendo depois cantado na egreja um solemne Te-Deum”. A câmara serviu aos convidados uma mesa de doces na estação. Houve vários discursos [4]. 

Apenas oito dias depois da inauguração seu nome foi alterado para Chagas Dória [5]. 

No outro mês os vereadores são-joanenses solicitaram da diretoria ferroviária a construção de um ramal interligando Matosinhos às Águas Santas. Para sua obra, a partir do pontilhão da Água Limpa, foram postos novos trilhos e todo o trecho férreo contido no bairro foi retificado. A partir do pontilhão, a linha assumiu uma reta, passando em frente à igreja, para uns 300 metros abaixo, virar à direita e noutra reta seguir a Tiradentes. É o trajeto ainda hoje mantido. Foi construída uma estação junto ao largo da igreja. Com isto a parada de 1908 ficou abandonada e virou residência e enfim a linha do primeiro itinerário foi erradicada, surgindo em seu lugar a via Amaral Gurgel, como já referido. A inauguração da nova se deu em 21/03/1910. 

Mas com apenas um ano o crescimento surpreendente de Matosinhos exigia uma estação ainda maior. Uma remodelação inaugurada em 15/04/1911 a transformou naquela que chegou aos nossos dias. Está a 856 metros de altitude e sua posição quilométrica original era 96,432 [6].

Portanto, recapitulando, houve em Matosinhos uma primeira parada na linha velha, na atual Rua Amaral Gurgel, até 1908; uma segunda inaugurada em 25 de maio daquele ano, em frente a atual Chagas Dória; em 1910 a terceira construção, a estação propriamente dita, exatamente onde se encontra hoje; e uma quarta inauguração, em 1911, a partir de remodelação daquela de 1910 e que até nossos dias. 

A atividade em Chagas Dória foi muito grande e já um ano depois de inaugurada, tinha nada menos que cinco horários de viagem nos dias úteis e oito aos domingos, feriados e dias santos, atesta HENRIQUES (2003). Contudo, o crescimento na demanda de passageiros de tão acentuado, induziu ao acréscimo de novos horários em 1912, passando para sete por dia [7]: “partida dos trens de S. João d’El-Rey – Mattosinhos – 6,15; 10,00; 11,30; 2,00; 5,00; 5,40; 8,30.” 

Para se ter uma ideia de sua importância (e do movimento por ocasião das festas), basta este impressionante e curioso relato [8]:

"Por occasião da festa de Mattosinhos, correram 148 especiaes, entre esta cidade e aquelle bairro, os quaes transportaram 23.124 passageiros, rendendo 3:468$600, não havendo nenhum accidente, sendo a primeira vez que os carros desses trens trafegaram illuminados á electricidade, inclusive os bonds."

A parada ferroviária de Chagas Dória alcançou tamanha relevância, que sugestionou ainda em 1908 a troca da antiga denominação de Largo de Matosinhos (nome que vinha desde os tempos coloniais), para Praça Dr. Chagas Dória [9] (hoje Praça Senhor Bom Jesus de Matosinhos). Mais tarde, nas décadas de 1940 e 1950 era comum chamar-se ao próprio Matosinhos de Bairro Chagas Dória. Ainda na década de 1960, essa estação tinha documentadamente intensa atividade de carregamento de minério.

No aspecto social, em meados do século XX, a estação de Chagas Dória graças à sua grande movimentação ferroviária, era ponto de concentração de vendedores ambulantes. No mais muita gente das redondezas vinha a ela para assistir às passagens dos trens e manobras e além disso era local de namoro, já que as moças vinham em peso à plataforma e os rapazes vinham atraídos por elas [10]. 

Estação de Chagas Dória em 1998, 
vendo-se o acréscimo na frente, demolido na reforma de 2005. 

Das duas linhas remanescentes apenas uma é usada, a que beira a Rua Elói Reis. A que margeia as casas da Rua Bernardo Guimarães com fundo para a linha está abandonada.

O uso efetivo da estação estava encerrado na década de 1970. Daí para frente, até 1984, apenas paradas eventuais e os trens especiais que serviam ao Jubileu da Santíssima Trindade em Tiradentes, paravam em Chagas Dória para desembarque. 

O grande movimento da estação para passageiros e cargas se transfigurou em invasões de mendigos, sujeira e local de atos ilegais ou moralmente condenáveis. O telhado esteve caindo e foi alvo de muitas pedradas vandálicas; um acréscimo descaracterizador foi feito para servir de moradia. A ASMAT (Associação de Moradores do Grande Matosinhos) lançou importantíssimo projeto de restauração do monumento, sob a competência da arquiteta Zuleika Teixeira Lombardi, em março de 2000, como se pode ver nas páginas de “O Grande Matosinhos”, em diversas edições, emitindo apelos em prol da dita reforma. Mas apesar dos esforços da ASMAT, sobretudo de seu então Presidente, José Cláudio Henriques, o projeto não se efetivou e a estação continuou largada e depois foi cercada por um alambrado (por volta de 2003, 2004) que tentava impedir a entrada de invasores. A gaiatice popular não tardou lhe apelidar “Granja Chagas Dória”, pois ficou com aparência de galinheiro. 

A reforma só viria em 2005, pela própria Ferrovia Centro-Atlântica. Logo a princípio ali funcionou a Polícia Militar. Felizmente a estação ficou bem preservada, mas ora vazia e sem utilização caminha de novo para a degradação.

Notas e Créditos

* Texto e foto: Ulisses Passarelli


[1]- Para uma referência atual, esse ponto de mudança de direção, ficava nos fundos do atual conjunto residencial INOCOP, entre este e o Colégio Polivalente (Escola Estadual Governador Milton Campos).
[2]- O Resistente, n. 81, 11/03/1897.
[3]- A Opinião, n. 53, 04/01/1908.
[4]- A Opinião, n. 91, 20/05/1908; n. 92, 23/05/1908; n. 93, 27/05/1908.
[5]- O nome que recebeu foi uma homenagem ao Dr. Francisco Manoel das Chagas Dória, afamado diretor local da EFOM. Seus esforços garantiram em absoluto a construção dessa parada e mais tarde da estação, bem como do ramal das Águas Santas.
[6]- PRONTUÁRIO GERAL DAS ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS: 1945. 2.ed. Belo Horizonte: Dep. de Estatística, 1947.
[7]- A Opinião,11/02/1912.
[8]- A Tribuna, n. 46, 30/05/1915.
[9]- Segundo decisão da Câmara Municipal datada de 27 de maio de 1908 que resolveu também ajardiná-la. Fonte: A Opinião, n. 94, 30/05/1908.
[10]- Informação pessoal de Nelson Domingos de Abreu, 27/07/2008. 

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