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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

História dos Congados de São João del-Rei

Congados e Festas do Rosário de São João del-Rei: esboço histórico

(ofereço com gratidão ao prof. Nelson Antunes de Carvalho e à memória do músico Antônio Geraldo do Reis e do capitão de congado Luís Santana)


            Historiar os congados é tarefa quase infrutífera. O pesquisador recorre a muitas fontes escrita mas quase somente nas orais encontra algo que lhe possa valer. Os registros antigos em documentos e jornais são raríssimos. Não que os congados fossem raros; pelo contrário, supõe-se. Ocorre que a imprensa e os escritores em geral, ainda eivados de uma ótica colonialista, não lhes davam a devida importância no cenário cultural. Não o achavam digno de figurar em qualquer página.
            A mentalidade geral considerava que as manifestações folclóricas eram um atestado de atraso, um indício de subdesenvolvimento. Por isso mesmo eram repelidas. Se então tivessem em sua composição uma nítida marca cultural africana, como no caso dos congados, no passado uma dança dos escravos, aí então o desprezo era ainda maior, pois somava-se o racismo e a discriminação e elas ganhavam o carimbo de costume bárbaro.
Os escravos em São João del-Rei se congregaram na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos, fundada em 1708. Em 1719 os irmãos do Rosário começaram a erigir sua igreja, benta pelo Vigário da Vara, Padre Manoel Cabral Camelo.
            Pouco se sabe em verdade do teor dos festejos pretéritos, haja vista as dificuldades de pesquisa.
Antônio Gaio Sobrinho noticiou acerca da “Nobre Nação Banguela”, do fim do século XVIII e começo do seguinte. Era uma associação de negros, que possuía casa própria, chamada palácio e que reunindo associados sob cargos tais como rei, capitão, duque, marquês, mestre de campo e vassalos, tinha finalidade assistencial e possivelmente festiva, talvez ligada aos então chamados "Folguedos da Praia", raiz de nossos congados atuais.
            O termo banguela ou benguela tinha dois significados:

1)                  étnico: referia-se a um grupo de africanos que tinha desde a infância o hábito de limar os dentes, um pouco a cada época, de tal sorte que com os anos o dente já estava bem curto, o que era um diferencial estético em sua cultura. Daí ficou na expressão popular o termo banguela no sentido pejorativo, usado para designar qualquer pessoa desdentada, no todo ou em parte;
2)                  aduaneiro: benguela era qualquer escravo embarcado no porto de São Felipe de Benguela (Angola), sob o domínio português, independente de sua etnia.

               O historiador Cintra informa que em 02/04/1866 “a Irmandade paga a Joaquim Francisco de Assis Pereira seis mil réis pela pintura da bandeira para o mastro. Todos os anos, por ocasião dos festejos do Natal, a Irmandade requeria à Câmara licença para o levantamento do mastro.”
              O primeiro número do jornal “Arauto de Minas” informa que o Rei de 1877 foi Domingos F. de Sampaio e o Provedor o Padre J. G. Barbosa. É sintomático o estreito controle eclesiástico pela presença de um sacerdote ocupando o mais importante cargo administrativo da confraria.
            Neste município, a norma oitocentista não consentia apresentações livres (como são as dos congados). Eram impostas condições pelo Código de Posturas e previa-se multa de 30$000 para a transgressão e 8 dias de cadeia em caso de reincidência:

Todos que quiserem representar comédias e fazer outros divertimentos para seu interesse (á exceção de presépios), que ficam absolutamente prohibidos e poderão fazer nos lugares publicos ou casas particulares, contanto que não offendam a moral e aos costumes, precedendo licença da camara e consentimento da autoridade policial, a quem será previamente apresentado o programa, mediante o imposto que para esse fim estiver estabelecido.

Fica claro a falta de liberdade para que dançassem rua afora como vemos hoje, exceto sob expressa autorização da edilidade.
O jornal “O Resistente” publicou esta interessante notícia no fim do século XIX:

Em vista da proposta da Mesa Administrativa do SS. do Rosário desta cidade, o Exmo. e Revdm. Sr. Bispo, Vigario Capitular, mudou o nome de Rei e Rainha, com que se designavam as primeiras dignidades d’aquella corporação para o de Prior e de Prioriza, passando consequentemente a Sub-prior e Sub-prioriza o Provedor e Provedora. Foi um dia o proprio Rei do Rosario!... O que dirá a isto o revdm. Poeta Corrêa de Almeida? O notavel é que o irmão de cujas mãos cahiu o ceptro, nosso amigo Severiano de Rezende, em quem extinguiu-se o Reinado, está constituindo o primeiro que goza do titulo de prior da confraria. Pelo que não se pode dizer que foi Rei desthronado. É um redivivo! ... Seja como for, approvamos a reforma; porquanto tal dignidade religiosa, que em tempos idos se justificava pela existencia do Reinado ou Congado - hoje uma excrescencia de significação intoleravel.

          Este texto tem especial importância por revelar um momento de mudança na estrutura folclórica da Festa do Rosário, em que, abolida a escravidão, os cargos honorários reais perderam o sentido pretendido pela Igreja. Havia nesse tempo uma espécie de repulsa às manifestações folclóricas, consideradas então indicadoras atraso de uma cidade. Além disto, parece que há um quê de racismo e discriminação nesta mudança. Notar a expressão de intolerância ao congado, que se não fora desativado, ao menos se afastara desta igreja.
            Informações orais dão conta que a mudança de termos não foi acatada na prática, pois continuaram a se chamar os personagens sob os nomes antigos.
           Mais tarde, nas décadas de 1930-40 houve o grupo de Congo do Capitão João Lopes, sediado na Rua Maestro Batista Lopes (a tradicional Rua das Flores), disputando a primazia com outro Congo coetâneo, este do Capitão José Francisco, da Rua São João, Bairro Tijuco. A festa deles era na primitiva Capela da Conceição, hoje Matriz de São José Operário, mas vinham cantar no Rosário em dia de festa, conquanto sem o esquema festivo do passado, informou-me o alfaiate, tenor e violinista, o saudoso sr. Antônio Geraldo dos Reis. Ele se lembrava de um significativo hino ao Rosário, cantado por João Lopes: 

Nós estamos pedindo ao terço
Nossa Senhora do Rosário
O terço de Maria
O terço é nossa alegria
É a nossa proteção.
Derrubou o inferno no chão
Pedindo a Nossa Senhora
Feliz de todo homem
Nós rezamos o terço
Para ser a nossa guia.
Que vive com o terço na mão.
Temos a sua proteção.



Senhora do Rosário
Infeliz do pobre homem,
Virgem do Rosário,
É a nossa proteção.
Que o demônio perseguia,
Chamamos com fervor;
Valei-me nesta hora
Por não trazer consigo
Com o vosso rosário
De tão grande aflição.
O Rosário de Maria.
Nós seremos vencedor.


             Outro conhecedor da vivência desses dois grupos foi o funcionário publico estadual, Capitão de Congado (Catupé) nesta cidade, Luís Santana. Sr. Luís aproveitou no seu grupo pelo menos três cantigas do João Lopes: 


1-
Oi, Nossa senhora!

Oi, Santa Maria!

Adoro essa santa,

Porque ela é nossa guia.


2-
Lá no céu Adão,

Ao romper do dia,

Quero ir lá no céu,

Nos pés da Virgem Maria.


3-
Oi, quem manda no mundo é Deus!

Oi, quem manda no mundo é Deus...

Ai, Nossa Senhora!

Ai, Nossa Senhora...


Luís narrava-me com muita admiração os feitos desses dois capitães do passado mas dizia-me que José Francisco não podia com o João Lopes. Este, no dizer de meu informante era um negro já idoso, baixo, magro, muito gentil, educado, airoso para dançar, munido de uma bengalinha fina. Seu grupo era bem trajado de branco, com saiotes e fitas do capacete azuis. Conhecia muito bem os mistérios da capitania do congado e certa feita, sentindo-se desafiado por José Francisco pela primazia de tocar em frente à Igreja do Rosário, chegou primeiro com seu grupo, pois era sediado ali perto e fazendo rezas fortes que conhecia na entrada das ruas que dão acesso ao templo, espiritualmente cercou o caminho ao Congo "rival". Quando José Francisco veio subindo pela Biquinha batendo as caixas e ia tomar a Ponte do Rosário, foi de súbito atacado por um enxame de ferozes marimbondos (vespas) e espavorido foi obrigado a se retirar com sua turma.

Catupé do sr.Luís Santana (com saiotes!) dançando em frente à Capela de São Dimas em foto de autor e data não identificados, gentilmente cedida para reprodução pelo referido capitão. 

Narrações deste tipo são em verdade comuns no universo mítico do congado.

Ainda Luís Santana costumava cantar com seu catupé como presenciei num a festa em seu bairro, invocando as almas dos velhos capitães falecidos ("Capitães de Areia"), para ajudá-lo em sua tarefa, acreditando quer suas almas durante a Festa do Rosário gozavam de licença espiritual para acompanhar os grupos, ajudando o bom andamento daqueles que deles se lembravam:

Êh, João Lopes!
Êh, João Lopes!
João Lopes, Zé Francisco!
João Lopes, Zé Francisco!

Êh, Barnabé!
Êh, Barnabé!
Carioca, Capitão!
Carioca, Capitão!

            Ora, mas, voltando aos fatos, extintos estes velhos congos tijucanos não se tem notícia de mais congados na Igreja do Rosário. 


Catupé do Capitão Luís Santana em setembro de 1982 ao lado da Igreja de São José Operário, no Tijuco. 
Foto de autor não identificado cedida pelo referido capitão para reprodução. 

           Outra informação oral, pelo sr. Nelson Antunes, dá conta de que num passado anterior à década de 1950, quando já não estavam ativos os congos supra-citados, os congados que vinham àquela igreja em dia de festa tocavam apenas de fora, sem entrar. Porém, um grupo por vezes deixando de fora os instrumentos, ia em vigília para o interior, se alternando na reza do terço. Da procissão participavam sem tocar.
        Constatei que os grupos atuais festejam noutros locais. A Festa do Rosário do centro da cidade não tem mais características folclóricas e se distanciou totalmente da cultura afro-brasileira, muito embora a recíproca seja verdadeira. Persistem os cargos Rei e Rainha Perpétuos, Rei e Rainha de Honra. Estes últimos saem na procissão levando a coroa na mão.


Reinado na Festa do Rosário de 1960 no Bairro São Geraldo, São João del-Rei/MG, vendo-se além do casal real a Juíza de Vara (sentada ao do Rei), e dois Capitães de Congado: entre os coroados, Altamiro Ponciano (com tamborim na mão) e à direita, "João Jacaré" (com a bandeira), de um terno de catupé visitante, de Resende Costa/MG. 
Foto de autor não identificado, gentilmente cedida para reprodução por Altamiro Ponciano. 

Fora da cidade, a única notícia antiga escrita que localizei, foi sobre o festejo na vila do Rio das Mortes: um texto intitulado “Festa de Congado”, assinado por Tancredo Braga, no jornal “O Correio”, n.602, de 23/04/1938. No Rio das Mortes, distrito de São João del-Rei, o congo ainda hoje persiste bem preservado. Atualmente apenas este grupo participa da festa, mas o texto prova que outrora eram vários congados. Por suas palavras se fica sabendo da tentativa eclesiástica de acabar com essa tradição: “Dom Helvecio, nosso respeitavel arcebispo, há tempos, em pastoral collectiva, recommendou aos sacerdotes de Minas Geraes, para que empreguem esforços no sentido de extinguir-se a Festa do Reinado.”
          Dom Helvécio Gomes de Oliveira foi o mesmo arcebispo que suspendeu a Festa do Divino nesta cidade, em 1924. Estava profundamente arraigado ao ideal romanizador da Igreja e não poderia conceber o valor do folclore para o processo da evangelização e da formação social.
            Assim sendo poucos registros escritos ficaram da existência dos congados e suas festas de outrora. É de fato pela memória dos congadeiros, que há possibilidade de obter alguma informação. Diante deste fato, é fácil constatar que o congado sobreviveu como fator de resistência, teimosamente, contra todos os reveses, qual uma bandeira de luta contra a extinção da cultura popular, sobretudo da afro-brasileira.
           

Referências bibliográficas

CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. 2.ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982.

Código de Posturas da Câmara Municipal da cidade de São João del-Rei, 1887.

GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei: 300 anos de histórias. 2006. P.160.

Referências hemerográficas

Arauto de Minas, n.1, 08/03/1877
O Correio, n.602, 23/04/1938.
O Resistente, n.63, 04/09/1896

Referências orais (informantes)

- Antônio Geraldo dos Reis, 1993, Águas Férrea, Bairro Tijuco, São João del-Rei / MG.
- Nelson Antunes de Carvalho, 2008, Centro, São João del-Rei / MG.
- Luís Santana, 1995, Bairro São Dimas, São João del-Rei/MG. 

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Sobre este tema ver também: Lista de Congados desativados em São João del-Rei

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