Congados e Festas do Rosário
de São João del-Rei: esboço histórico
(ofereço com gratidão ao prof. Nelson Antunes de Carvalho e à memória do músico Antônio Geraldo do Reis e do capitão de congado Luís Santana)
Historiar os congados é tarefa quase
infrutífera. O pesquisador recorre a muitas fontes escrita mas quase somente
nas orais encontra algo que lhe possa valer. Os registros antigos em documentos
e jornais são raríssimos. Não que os congados fossem raros; pelo contrário,
supõe-se. Ocorre que a imprensa e os escritores em geral, ainda eivados de uma
ótica colonialista, não lhes davam a devida importância no cenário cultural. Não
o achavam digno de figurar em qualquer página.
A mentalidade geral considerava que
as manifestações folclóricas eram um atestado de atraso, um indício de
subdesenvolvimento. Por isso mesmo eram repelidas. Se então tivessem em sua
composição uma nítida marca cultural africana, como no caso dos congados, no
passado uma dança dos escravos, aí então o desprezo era ainda maior, pois
somava-se o racismo e a discriminação e elas ganhavam o carimbo de costume
bárbaro.
Os escravos em São João del-Rei se congregaram na
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos,
fundada em 1708. Em 1719 os irmãos do Rosário começaram a erigir sua igreja,
benta pelo Vigário da Vara, Padre Manoel Cabral Camelo.
Pouco se sabe em verdade do teor dos
festejos pretéritos, haja vista as dificuldades de pesquisa.
Antônio Gaio Sobrinho noticiou acerca da “Nobre Nação
Banguela”, do fim do século XVIII e começo do seguinte. Era uma associação de
negros, que possuía casa própria, chamada palácio e que reunindo associados sob
cargos tais como rei, capitão, duque, marquês, mestre de campo e vassalos,
tinha finalidade assistencial e possivelmente festiva, talvez ligada aos então
chamados "Folguedos da Praia", raiz de nossos congados atuais.
O termo banguela ou benguela tinha
dois significados:
1)
étnico: referia-se a um grupo de
africanos que tinha desde a infância o hábito de limar os dentes, um pouco a
cada época, de tal sorte que com os anos o dente já estava bem curto, o que era
um diferencial estético em sua cultura. Daí ficou na expressão popular o termo
banguela no sentido pejorativo, usado para designar qualquer pessoa desdentada,
no todo ou em parte;
2)
aduaneiro: benguela era qualquer escravo
embarcado no porto de São Felipe de Benguela (Angola), sob o domínio português,
independente de sua etnia.
O historiador Cintra
informa que em 02/04/1866 “a Irmandade
paga a Joaquim Francisco de Assis Pereira seis mil réis pela pintura da
bandeira para o mastro. Todos os anos, por ocasião dos festejos do Natal, a
Irmandade requeria à Câmara licença para o levantamento do mastro.”
O primeiro número do
jornal “Arauto de Minas” informa que o Rei de 1877 foi Domingos F. de Sampaio e
o Provedor o Padre J. G. Barbosa. É sintomático o estreito controle
eclesiástico pela presença de um sacerdote ocupando o mais importante cargo
administrativo da confraria.
Neste município, a norma
oitocentista não consentia apresentações livres (como são as dos congados).
Eram impostas condições pelo Código de Posturas e previa-se multa de 30$000
para a transgressão e 8 dias de cadeia em caso de reincidência:
Todos que
quiserem representar comédias e fazer outros divertimentos para seu interesse
(á exceção de presépios), que ficam absolutamente prohibidos e poderão fazer
nos lugares publicos ou casas particulares, contanto que não offendam a moral e
aos costumes, precedendo licença da camara e consentimento da autoridade
policial, a quem será previamente apresentado o programa, mediante o imposto
que para esse fim estiver estabelecido.
Fica claro a falta de liberdade para que dançassem rua
afora como vemos hoje, exceto sob expressa autorização da edilidade.
O jornal “O Resistente” publicou esta interessante notícia
no fim do século XIX:
Em vista da
proposta da Mesa Administrativa do SS. do Rosário desta cidade, o Exmo. e
Revdm. Sr. Bispo, Vigario Capitular, mudou o nome de Rei e Rainha, com que se
designavam as primeiras dignidades d’aquella corporação para o de Prior e de
Prioriza, passando consequentemente a Sub-prior e Sub-prioriza o Provedor e
Provedora. Foi um dia o proprio Rei do Rosario!... O que dirá a isto o revdm.
Poeta Corrêa de Almeida? O notavel é que o irmão de cujas mãos cahiu o ceptro,
nosso amigo Severiano de Rezende, em quem extinguiu-se o Reinado, está
constituindo o primeiro que goza do titulo de prior da confraria. Pelo que não
se pode dizer que foi Rei desthronado. É um redivivo! ... Seja como for,
approvamos a reforma; porquanto tal dignidade religiosa, que em tempos idos se
justificava pela existencia do Reinado ou Congado - hoje uma excrescencia de
significação intoleravel.
Este texto tem
especial importância por revelar um momento de mudança na estrutura folclórica
da Festa do Rosário, em que, abolida a escravidão, os cargos honorários reais
perderam o sentido pretendido pela Igreja. Havia nesse tempo uma espécie de
repulsa às manifestações folclóricas, consideradas então indicadoras atraso de
uma cidade. Além disto, parece que há um quê de racismo e discriminação nesta
mudança. Notar a expressão de intolerância ao congado, que se não fora
desativado, ao menos se afastara desta igreja.
Informações orais dão conta que a
mudança de termos não foi acatada na prática, pois continuaram a se chamar os
personagens sob os nomes antigos.
Mais tarde, nas décadas
de 1930-40 houve o grupo de Congo do Capitão João Lopes, sediado na Rua Maestro
Batista Lopes (a tradicional Rua das Flores), disputando a primazia com outro Congo
coetâneo, este do Capitão José Francisco, da Rua São João, Bairro Tijuco. A
festa deles era na primitiva Capela da Conceição, hoje Matriz de São José
Operário, mas vinham cantar no Rosário em dia de festa, conquanto sem o esquema
festivo do passado, informou-me o alfaiate, tenor e violinista, o saudoso sr. Antônio Geraldo dos Reis. Ele se lembrava de um significativo hino ao Rosário, cantado por João Lopes:
Outro conhecedor da vivência desses dois grupos foi o funcionário publico estadual, Capitão de Congado (Catupé) nesta cidade, Luís Santana. Sr. Luís aproveitou no seu grupo pelo menos três cantigas do João Lopes:
Nós estamos pedindo ao terço
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Nossa Senhora do Rosário
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O terço de Maria
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O terço é nossa alegria
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É a nossa proteção.
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Derrubou o inferno no chão
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Pedindo a Nossa Senhora
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Feliz de todo homem
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Nós rezamos o terço
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Para ser a nossa guia.
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Que vive com o terço na mão.
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Temos a sua proteção.
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Senhora do Rosário
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Infeliz do pobre homem,
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Virgem do Rosário,
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É a nossa proteção.
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Que o demônio perseguia,
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Chamamos com fervor;
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Valei-me nesta hora
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Por não trazer consigo
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Com o vosso rosário
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De tão grande aflição.
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O Rosário de Maria.
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Nós seremos vencedor.
|
Outro conhecedor da vivência desses dois grupos foi o funcionário publico estadual, Capitão de Congado (Catupé) nesta cidade, Luís Santana. Sr. Luís aproveitou no seu grupo pelo menos três cantigas do João Lopes:
Ora, mas, voltando aos fatos, extintos estes velhos congos tijucanos não se tem
notícia de mais congados na Igreja do Rosário.
Catupé do Capitão Luís Santana em setembro de 1982 ao lado da Igreja de São José Operário, no Tijuco.
Foto de autor não identificado cedida pelo referido capitão para reprodução.
Foto de autor não identificado cedida pelo referido capitão para reprodução.
Outra informação oral, pelo sr.
Nelson Antunes, dá conta de que num passado anterior à década de 1950, quando já não estavam ativos os congos supra-citados, os congados que
vinham àquela igreja em dia de festa tocavam apenas de fora, sem entrar. Porém,
um grupo por vezes deixando de fora os instrumentos, ia em vigília para o
interior, se alternando na reza do terço. Da procissão participavam sem tocar.
Constatei que os
grupos atuais festejam noutros locais. A Festa do Rosário do centro da cidade
não tem mais características folclóricas e se distanciou totalmente da cultura
afro-brasileira, muito embora a recíproca seja verdadeira. Persistem os cargos
Rei e Rainha Perpétuos, Rei e Rainha de Honra. Estes últimos saem na procissão
levando a coroa na mão.
Reinado na Festa do Rosário de 1960 no Bairro São Geraldo, São João del-Rei/MG, vendo-se além do casal real a Juíza de Vara (sentada ao do Rei), e dois Capitães de Congado: entre os coroados, Altamiro Ponciano (com tamborim na mão) e à direita, "João Jacaré" (com a bandeira), de um terno de catupé visitante, de Resende Costa/MG.
Foto de autor não identificado, gentilmente cedida para reprodução por Altamiro Ponciano.
Fora da cidade, a única notícia antiga escrita que
localizei, foi sobre o festejo na vila do Rio das Mortes: um texto intitulado
“Festa de Congado”, assinado por Tancredo Braga, no jornal “O Correio”, n.602, de 23/04/1938. No Rio das Mortes, distrito de São João del-Rei, o congo ainda hoje
persiste bem preservado. Atualmente apenas este grupo participa da festa, mas o
texto prova que outrora eram vários congados. Por suas palavras se fica sabendo
da tentativa eclesiástica de acabar com essa tradição: “Dom Helvecio, nosso respeitavel arcebispo, há tempos, em pastoral
collectiva, recommendou aos sacerdotes de Minas Geraes, para que empreguem
esforços no sentido de extinguir-se a Festa do Reinado.”
Dom Helvécio Gomes de
Oliveira foi o mesmo arcebispo que suspendeu a Festa do Divino nesta cidade, em
1924. Estava profundamente arraigado ao ideal romanizador da Igreja e não
poderia conceber o valor do folclore para o processo da evangelização e da
formação social.
Assim sendo poucos registros escritos
ficaram da existência dos congados e suas festas de outrora. É de fato pela
memória dos congadeiros, que há possibilidade de obter alguma informação.
Diante deste fato, é fácil constatar que o congado sobreviveu como fator de
resistência, teimosamente, contra todos os reveses, qual uma bandeira de luta
contra a extinção da cultura popular, sobretudo da afro-brasileira.
Referências bibliográficas
CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides
de São João del-Rei. 2.ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982.
Código de Posturas da Câmara Municipal da
cidade de São João del-Rei, 1887.
GAIO
SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei: 300 anos de histórias. 2006. P.160.
Referências hemerográficas
Arauto de Minas, n.1, 08/03/1877
O Correio, n.602, 23/04/1938.
O Resistente, n.63, 04/09/1896
Referências orais (informantes)
-
Antônio Geraldo dos Reis, 1993, Águas Férrea, Bairro Tijuco, São João del-Rei /
MG.
- Nelson
Antunes de Carvalho, 2008, Centro, São João del-Rei / MG.
- Luís Santana, 1995, Bairro São Dimas, São João del-Rei/MG.
* Texto: Ulisses Passarelli
** Sobre este tema ver também: Lista de Congados desativados em São João del-Rei
- Luís Santana, 1995, Bairro São Dimas, São João del-Rei/MG.
Notas e Créditos
* Texto: Ulisses Passarelli
** Sobre este tema ver também: Lista de Congados desativados em São João del-Rei
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