Outros trabalhos

sábado, 29 de abril de 2017

Pequeno glossário de alguns terreiros de São João del-Rei


Nesta postagem ousamos, muito respeitosamente, selecionar uma centena de palavras e expressões habitualmente usadas em algumas tendas e terreiros de São João del-Rei. É preciso inicialmente entender que elas fazem parte propriamente de uma linguagem popular, contudo típica do ambiente dos trabalhos espirituais. Isto não as torna exclusivamente ritualísticas. Se referem a elementos correlatos ao ritual, mas são parte da dinâmica coloquial da linguagem. 

Por isto, em momento algum houve preocupação de especificar o terreiro onde foi ouvida; tão pouco a doutrina específica daquela casa, pois há uma grande circularidade nestas gírias, termos, expressões e alcunhas entre diversos terreiros, carreados por participantes a elas afeitos, quando de visitas e participações. Assim sendo, elas ganham maior dimensão e são incorporadas por alguns umbandistas e quimbandeiros, e eventualmente candoblecistas e de uns e outros não raro passam a integrar o repertório dos consulentes. A própria influência mútua entre as várias religiões faz com que haja a citada circulação do palavreado. 

No mais há outro aspecto: se de fato faz parte da linguagem típica, por outro lado não lhe é exclusiva. Algumas destas palavras caem no uso comum fora da comunidade dos terreiros e passam a ter uso bem mais amplo. Contudo, a recíproca também é verdadeira. 

Por tudo isto não houve como diretriz da escolha das palavras deste pequeno glossário, a menor intensão de focar em um único terreiro, tão pouco em incluir palavras exclusivas do vocabulário ritualístico. Não interessa para os limites desta postagem o significado da palavra ebó, por exemplo, ou amalá, ou assentamento. Elas tem uso limitado à religião não à cultura popular associada. Da mesma sorte e por coerência de raciocínio, se fica esclarecido que “compadre” é alcunha de exu, isto basta para a proposta deste blog. Explicar quem é exu e seus atributos é coisa de um estudo religioso ou antropológico e isto já nos extrapola. 

Esteja claro também que esse uso comum de tal vocabulário não está a rigor cerceado pela corrente doutrinária desta ou daquela umbanda: não é limitada à umbanda tradicional ou à traçada ou à esotérica... Repetimos a palavra circularidade, sem rigor, embora possam haver tipicidades específicas. No mais, embora não tenhamos cotejado este vocabulário com o equivalente de outras regiões nacionais, é bom possível, pelo menos no campo hipotético, que muitas destas palavras tenham vasto uso em outras áreas nacionais e eventualmente significados distintos conforme a influência cultural de cada zona geográfica. Outrossim é preciso destacar que seu uso não se restringe a São João del-Rei no Campo das Vertentes, pois várias destas palavras e expressões já as ouvimos em municípios vizinhos, ainda que a coleta para efeito desta postagem tenha sido feita apenas em terra são-joanense.

É mister observar que a linguagem em questão se reveste de ricas figurações, alegorias, que a tornam especialmente interessante para o estudo. Assim, por exemplo, as designações temporais: tempo grande, tempo roxo, trinta tempos... (*) revelam uma forma de interpretação de fenômenos naturais à moda da cultura popular. Outras nitidamente são africanismos ou pelo menos tiveram sua influência: malungo, quizila, malême... Esta parcela denota a resistência cultural de nossa formação étnica. 

O intento é o mero registro cultural, etnográfico e linguístico. Repetimos que não tem finalidade religiosa e aliás, é mister destacar que não pode ser usado como parâmetro de evolução ou estado doutrinário da religião. Como a linguagem é algo muito dinâmico, mutável, esperamos com este humílimo registro deixar consignado para estudos futuros a pequena listagem que se segue.

*  *  *

1.     Agô – desculpas, perdão, misericórdia.
2.     Água forte – álcool, usado externamente em certos descarregos e trabalhos.
3.     Amaci – esfregaço de ervas próprias numa bacia com água para se lavar a cabeça e assim buscar sintonia com as entidades espirituais; “amanci”; banho de cheiro.
4.     Areia doce – açúcar.
5.     Areia salgada – sal de cozinha.
6.  Boca mole – negro velho, referência à fala custosa desses guias, de pronúncia geralmente lenta, cheia de palavras diferentes.
7.     Burro – aparelho espiritual, médium de incorporação, geralmente em linguagem de esquerda.
8.     Cafioto – criança.
9.     Calunga grande – oceano; local onde muita gente morreu afogada.
10. Calunga pequena – cemitério; campo santo.
11. Calunguinha – igreja (no passado havia enterramentos nas igrejas).
12. Cambureco – criança.
13. Canela – vela.
14. Cangira – gira; ingira; sessão; cerimônia. Cangira de baianos: trabalho dos guias baianos; cangira de boideiros: trabalhos dos guias boiadeiros.
15. Cavalo – aparelho espiritual; médium de incorporação, geralmente em linguagem de direita.
16. Cazuá – casa, habitação, construção. “Canzuá”.
17. Comida de Oxóssi – expressão figurada e poética, que não se refere propriamente ao alimento ofertado ao orixá, mas sim às chuvas que caem entre o Dia de Reis (06 de janeiro) e o Dia de São Sebastião (20 de janeiro), tida como especialmente abençoadas. Nesta última data muitos terreiros festejam Oxóssi, em razão do sincretismo com o santo católico.
18. Compadre – exú. Um tratamento intimista, nem por isto desrespeitoso; “meu compadre”.
19. Cortar – sacrificar um animal.
20.Criança – alcunha corriqueira aplicada aos erês, por terem esses guias comportamentos infantis quando incorporados. Habitualmente se diz “meninos” e “meninas”, conforme a roupagem espiritual que assumem em sua manifestação.
21. Cumba – feiticeiro; mandingueiro.
22. Cumbara – terra, no sentido de rincão, cidade. “Nesta cumbara”: nesta cidade; “cumbara distante”: outra cidade.
23. Curimba – canto sagrado ritualístico; ponto cantado; evocação.
24. Curuto – charuto.
25. Dendê – feitiço; mistério espiritual. É uma extensão alegórica absorvida do sentido típico da palavra, um coco africano, cujo óleo é usadíssimo na cozinha ritual. Muitas comidas oferendadas às entidades são regadas ou cozidas a azeite de dendê, que confere axé ao alimento. “Tem dendê...”: tem um mistério envolvido.
26. Derrubada – ação de derrotar um inimigo através da manipulação de forças espirituais. Derrubar através de trabalhos de terreiro.
27. Despacho – ato de despachar algo indesejado ao rito do terreiro; ação de por para fora do terreiro um objeto, velas, alimentos... com o objetivo de retirar do local ou do caminho de um consulente uma determinada entidade.
28. Direita – designação muito arraigada de uma divisão prática das linhas de trabalho da umbanda. Habitualmente formam o que se chama “povo da direita” ou “linha branca”, com características comportamentais, doutrinárias e campo de ação mais ou menos correlatos: negros velhos, caboclos, erês, baianos, marinheiros, boiadeiros, orientais.
29. Dongo - dinheiro. O mesmo que "zimba". 
30. Egum – derivação da palavra africana egungum, que tem hoje nos terreiros o sentido genérico de alma, os mortos, ou especificamente corresponde ao que a cultura popular chama de almas penadas. A conotação hodierna afastou-se um pouco da concepção original da palavra.
31. Entrega – como o nome indica é algo que se entrega a uma entidade: bebida, cigarro, alimento, objeto. O material entregado é a parte material de um pedido. “Arriar uma entrega”: coloca-la no ponto de força da entidade, na sua área de domínio: encruzilhada, estrada de terra,  montanha, etc. Diferencia-se do despacho por não ter o sentido de indesejável e da oferenda por ser esta propriamente um agrado, uma homenagem ou presente. A entrega tem um objetivo específico a ser alcançado, externado no pedido mental ou verbal a uma entidade e pode ser por ela pedido ou inspirado no subconsciente.
32. Escora – exu guardião.
33. Espumante – champanhe; vinho branco doce gaseificado.
34. Esquerdas – designação muito arraigada de uma divisão prática das linhas de trabalho da umbanda. Habitualmente formam o que se chama “povo da esquerda” ou “linha vermelha”, com características comportamentais, doutrinárias e campo de ação mais ou menos correlatos: exus, pombas-giras (bombogira), mirins (exu-mirim e pomba-gira mirim), malandros e conforme a doutrina específica, também ciganos e cangaceiros. São os guias da banda virada ou guias da esquerda.
35. Flor de Omulu – pipoca, usada em oferendas e descarregos.
36. Fundenga – pólvora.
37. Gafanhoto – criança, geralmente no linguajar de esquerda.
38. Guaraná – qualquer refrigerante, independente de ser exatamente de guaraná.
39. Homem – exu. “Homem da meia-noite”: expressão arquetípica, que induz ao pensamento um exu eivado de mistérios.
40. Homem da capa preta – juiz; promotor.
41. Homem da letra bonita – advogado.
42. Homem de saia – padre.
43. Homem do grito – caboclo.
44. Homem que grita alto – pastor.
45. Hora grande – momento da morte.
46. Índio – caboclo.
47. Ingira – trabalho ou sessão; corrente mediúnica em uma determinada linha: “ingira de marinheiros”; o mesmo que cangira ou simplesmente gira.
48. Ingoma – o local do terreiro onde ficam os médiuns da corrente, separados da assistência, onde ficam os consulentes e visitantes.
49. Labutar – trabalhar, tanto no sentido de estar em um serviço quanto em sessão espiritual, na cerimônia.
50. Lume – vela.
51. Macaco – policial, numa gíria arcaica.
52. Maleme – desculpas, perdão, misericórdia. "Malenga". 
53. Malungo – africanismo: companheiro, colega. Sofre corruptela para “marungo”.
54. Marafo (ou marafa) – cachaça. Palavra muito arraigada, seu uso por vezes extrapola o ambiente dos terreiros, onde é típica.
55. Marafo bravo - whisky
56. Marafo forte - conhaque
57. Marechal de Guerra – título aplicado ao orixá Ogum, que se acredita ter sido guerreiro invencível.
58. Matracar – falar, contar algo. Deriva de matraca, instrumento de madeira, barulhento. Bater a matraca, fazer barulho. “Matacar” é corruptela comum.
59. Menga – sangue.
60. Mironga – firmeza de mistério, que não se revela a ninguém. Ter mironga: trazer consigo um patuá ou amuleto; saber como fazê-lo; saber um rito que outros não sabem.
61. Moca – café.
62. Moça – expressão eufemística e carinhosa aplicada às pombas giras.
63. Mulher – pomba gira.
64. Oferenda – oferta de velas, objetos, alimentos, bebidas a um dado orixá ou guia, geralmente em ocasiões festivas ou como sinal de gratidão.
65. Pai Véio – negro velho.
66. Panado – qualquer pano; toalha de bater cabeça; cortina do gongá.
67. Pedra de raio – artefato lítico de origem indígena; machadinha indígena de pedra; meteorito.
68.Pemba – genericamente, qualquer giz; especificamente, um giz próprio, ritualístico, confeccionado de modo a atender com exatidão os preceitos necessários para riscar um ponto.
69. Penosa – galinha.
70. Perna de calça – homem, no sentido de pessoa do sexo masculino, não no sentido de exu.
71. Ponteiro – punhal.
72. Povo – no sentido material refere-se aos parentes, familiares; no sentido espiritual corresponde à egrégora de espíritos que acompanham o médium. Assim, a expressão “seu povo”, para ser corretamente entendida, deve ser contextualizada.
73. Povo da encruza – os espíritos que tem domínio ou ponto de força nas encruzilhadas. Por força de hábito e genericamente se refere aos exus e pombas giras, embora nem todos sejam esquerdas de encruzilhada.
74. Povo da Calunga - os espíritos que tem domínio ou ponto de força nos cemitérios. Por força de hábito e genericamente se refere aos exus e pombas giras, embora nem todos sejam esquerdas de campo santo.
75. Povo das campinas – os espíritos que tem domínio ou ponto de força nos campos, pradarias. Por força de hábito e genericamente se refere aos boiadeiros.
76. Povo das matas - os espíritos que tem domínio ou ponto de força nas florestas. Por força de hábito e genericamente se refere aos caboclos.
77. Povo de rua - os espíritos que tem domínio nas ruas e não propriamente nas encruzilhadas. Por força de hábito e genericamente se refere aos malandros.
78. Pula-pula – congado. "Mexe-mexe". 
79. Quiumba – casta temida de espíritos desprovidos de luz e doutrina, capazes de atos maléficos.
80. Quizila – ojeriza, desentendimento, desarmonia entre médiuns ou entre mediuns e guias, naturalmente por alguma imprudência tomada por desrespeito.
81. Rabo de saia – mulher, no sentido de pessoa do sexo feminino, não no sentido de pomba gira.
82. Rabudo – exu. Termo pejorativo eivado da equivocada concepção oriunda de antigos missionários, que equipararam indevidamente exu a satanás.
83. Rebanho – conjunto de pessoas sobre a proteção de um orixá, guia, dirigente espiritual ou templo.
84. Rei Chefe da Umbanda – título aplicado a São Miguel Arcanjo, considerado supervisor geral da umbanda.
85. Riscador – giz; caneta; lápis.
86. Risco – escrito.
87. Rodador de borracha – carro; veículo. Referência aos pneus.
88. Roncador –suíno. “Carne de roncador”: bife ou pedaço de carne de porco.
89. Roupa branca – médico. Por vezes se diz, “roupa branca da Terra”, médico encarnado, doutor terreno; “roupa branca do espiritual”, médico desencarnado com licença de intervir nas doenças de modo curativo; espírito da chamada corrente médica do espaço, que se atribui a chefia ao Dr. Bezerra de Meneses.
90. Sangue de Cristo – vinho tinto.
91. Sete tempos – uma semana.
92. Tempo curto – um dia.
93. Tempo grande – um ano.
94. Tempo roxo – período da quaresma e Semana Santa, que muitos médiuns se recolhem dos trabalhos espirituais ou trabalham de forma diferenciada.
95. Traçado – bebiba que consiste na mistura no mesmo recipiente de cachaça e cerveja.
96. Trinta tempos – um mês.
97. Vale – cidade; região habitada.
98. Virada – momento da meia-noite, que reconfigura os procedimentos da sessão que o ultrapassa.
99. Vovô / vovó – negro velho / negra velha como espíritos guias de sua prestigiada linha trabalho. 
100. Zóio vermelho – idem. Ter os olhos com esclera avermelhada indica na crença corriqueira dos terreiros em apreço elevada sintonia e sabedoria dos mistérios espirituais. Por extensão e pejorativamente se equivale a feiticeiro. 




Notas e Créditos


* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografia: Iago C.S. Passarelli
*** Sobre as relações do tempo com a cultura popular leia neste blog a postagem:

A LINGUAGEM DO TEMPO 

Um comentário:

  1. Caro Ulisses,
    Belíssimo trabalho e belíssimo registro.
    Muitas palavras e expressões transcendem tempos e espaços, registrar é fundamental.
    Parabéns e gratíssimo por compartilhar elementos tão sublimes de nosso Patrimônio Imaterial.
    Receba meu abraço fraterno e amigo, Luiz Cruz

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