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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A linguagem do tempo

           
            Escrever sobre o tempo é uma ousadia! Mas vamos arriscar... Na cidade mineira de Passa Tempo, a oeste de São João del-Rei, em plena praça pública existe um monumento que representa uma senhora fiandeira trabalhando numa roca. Lembro então de ter ouvido ali, a narrativa suposta ou aparentemente lendária, decerto com um fundo de verdade, que em passado distante, a área da urbe era um pouso de boiadeiros e tropeiros. Em passagem sempre viam junto ao rancho uma senhora fiando seu algodão. Ao cumprimentá-la, tinham por resposta algo do tipo: “vou bem meu filho, tô aqui passando o tempo...”

            Essa humilde frase fixou-se na memória popular e estando latente na minha, inspirou esta pequena crônica do tempo, que nada mais faz, que coligir tradições folclóricas sobre o tempo, vigentes em São João del-Rei e região.

O homem, desde datas imemoriais, tramou sua relação com o tempo. Casou-se com ele. Percebeu logo que tudo dependia do tempo de cada coisa, no domínio da natureza, das estações do ano, das colheitas, do calendário anual. Eivado por um espírito religioso e ao mesmo tempo se deixando levar pela superstição, a relação humana com o tempo se construiu no bojo de sua cultura variando a cada etnia, época e influência religiosa majoritária e aspectos místicos e míticos.

Prescreve o Livro do Eclesiastes, em seu terceiro capítulo, que debaixo dos céus há “um tempo para cada coisa”. A partir desta assertiva desfia uma longa lista de paralelos (Ecl 3, 2-8):

“há tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado; tempo para matar, e tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para construir; tempo para chorar, e tempo para rir...” (etc)

            Por fim, conclui categórico: “todas as coisas que Deus fez são boas, a seu tempo.” (vers.11) e “aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu; Deus chama de novo o que já passou” (vers.15).

            Debaixo dessa lição bíblica e guiado pela cultura popular, o brasileiro tem o seu jeito próprio de encarar os mistérios temporais, fruto que é de muitas correntes étnicas, digamos assim... temporizando tudo. Em Minas Gerais e em São João del-Rei, grande celeiro de tradições, não seria diferente, na zona urbana e na rural. Ora, vejamos: as estações do ano, que demarcam a relação do homem com a terra e na Terra, ganham de ordinário o cognome de tempo das águas (primavera + verão) e tempo da seca (outuno + inverno), isto no Centro-sul, que pelo Nordeste se inverte. O elemento definidor é a preponderância das chuvas, que qualificam o clima tão somente em úmido e seco.

            As condições de calor e luminosidade ao longo do dia propiciaram na linguagem coloquial algumas expressões curiosas, que de tanto as repetir, tornaram-se de tal forma comuns que não lhes notamos sua essência poética: barra do dia (faixa clara no horizonte leste, se contrastando com a escuridão noturna; primeiro sinal do amanhecer), romper da aurora (instante que o sol aparece, inundando de luz a imensidão), de manhãzinha (bem cedo, logo após a aurora), meio dia (doze horas), volta do dia (quando a aparência do sol a pino, pende rumo oeste; entre 13 e 16 horas); cair da tarde (fim da tarde, após as 16 horas, de tardinha); hora da Ave Maria ou hora das almas (18 horas, que o povo chama de “seis horas da tarde”); tarde da noite (após as 21 horas); meia noite (zero hora, horário mágico, do encantamento); horas mortas (entre meia noite e 3 horas: domínio dos espectros e assombros; o mal está à solta); madrugada (fim da noite, após as 3 horas até o clarear). Esteja claro que essa pitoresca nomenclatura, muito influenciou o homem do campo, em sua cuidadosa observação da natureza, regrado por ela e dela dependendo amiúde para as atividades corriqueiras. Migrado para a cidade, logo sua experiência se somou à visão urbana e em conjunto, ambas, construíram essa relação.

            Não é à toa que o rurícola define suas atividades anuais com expressões como tempo da colheita, tempo da queimada, tempo do plantio, época de poda, safrinha, entressafra. A produção agrícola pelo sistema tradicional se esboça por períodos que devem ser respeitados segundo a sabedoria ancestral acumulada. Para lavrar a terra e produzir o alimento, base da vida, é preciso antes entender o tempo e conhecer todos os seus detalhes. Um canto de certo pássaro, uma brisa diferente, neblina adversa, um sinal ao redor da lua, formiga de correição rondando a casa... Aquilo que parece trivial é na verdade o indicativo da meteorologia popular. Ao ver as evidências naturais o produtor já se prepara para a mudança do tempo, já sabe se semeará em breve ou se deverá aguardar mais.

Como foi que adquiriu o conhecimento do efeito das lunações? Observador por natureza sabe que a verdura colhida na lua nova tende ao amargor; a semente levada ao solo na minguante pode minguar... A madeira cortada na cheia apodrece logo e por aí vai, sem fim, no folclore riquíssimo do tempo nosso de cada dia.

            Até mesmo para narrar uma estória, aqueles contos fabulosos que deleitaram nossa infância, já o narrador principia com expressões que evocam antiguidade: Naquele tempo... De primeiro... No tempo dos antigos... No tempo que os bichos falavam... No começo do mundo... Há muito, muito tempo atrás... E segue a lenda, o causo, o mito, o conto. Até a forma de entonação da expressão de abertura já dramatiza a pretendida ancestralidade, testemunho de fatos que não acontecem mais, porém, que do passado distante acenam verdades e lições que pretendem guiar a conduta até os dias de hoje, ou ao menos explicar certas coisas. Eis o âmago da literatura oral popular. Quando não, reveste-se de ar meramente anedótico, de passatempo, e logo alguém diz: “ah... isso é do tempo que se amarrava cachorro com linguiça!”

            Se o sujeito passa por um período de vicissitudes, não tarda os conhecidos solidariamente, anunciarem: “coitado! Está passando por um tempo amargoso...” Como se tempo tivesse sabor... E talvez tenha, porque quando se está vivenciando a inocência da infância ou a de um idílio deveras apaixonado, ousamos dizer: “está vivendo um tempo doce!”

E se o tempo está difícil para questões especificamente financeiras, se diz: tempo das vacas magras. Se a época é de fartura é tempo das vacas gordas. Parece uma alegoria inspirada nas pragas do Egito, que recaíram sobre o orgulhoso faraó, conforme nos narra o Velho Testamento.

Aliás, sobre estas questões financeiras, não há expressão mais arraigada que tempo é dinheiro. O capitalismo a carimba todos os dias em nossa testa. A vida hodierna é uma correria. As vinte e quatro horas do dia parecem pouco para cumprir tantas tarefas. É preciso abreviar tudo para ganhar tempo. Não se pode perder tempo, pois o tempo é precioso e se não for bem aproveitado, além dos prejuízos materiais, logo o tempo da vida transcorre sem nos apercebermos.

Mas o tempo é também sábio. Ele ensina tudo e cura as feridas da alma. Assim prescreve a filosofia do povo. Já por isto, cunhou as expressões: deixa o tempo correr...” e nada melhor que o tempo...”. Elas se opõem ao preceito do parágrafo anterior de não perder tempo, mas aquele é mais dos negócios, este, mais espiritualizado.

O congadeiro de São João del-Rei[1], fiel a este ensinamento, canta nos catupés, à guisa de um trava línguas:

“Vamos dar tempo ao tempo,
Tempo que o tempo tem,
Os ventos que sopram no norte,
Sopram no sul também!”

No linguajar religioso específico dos terreiros de matriz africana ou sob sua influência, se ouve algumas entidades espirituais dizerem: “tempo grande” (ano), “tempo curto” (dia), “sete tempos” (semana), “hora grande” (momento da morte). São formas de expressar que alcançam uma dimensão simbólica, de um conteúdo intangível. No seu calendário festivo, os umbandistas em geral, por exemplo, tem por costume dizer tempo das crianças, em referência à época de setembro que festejam os erês, festa de ibeijada, comemoração voltada aos guias de crianças; em contrapartida, o tempo dos negros velhos, expressão consagrada pelo uso, refere-se a maio, quando no dia 13 culminam as comemorações alusivas à libertação dos escravos. No mesmo contexto existe ainda a expressão forças do tempo, alusão um tanto difusa às energias temporais, as forças externas ao terreiro: força dos ventos, força do luar, força do sol, força das tempestades... tudo isto é força do tempo. Neste caso específico tempo não tem o sentido de marcação das horas, mas de energia natural e exterior [2]. Quando um objeto está supostamente carregado, energizado com forças contrárias ao bom andamento do terreiro, de ordinário se aconselha: “deixa dormir no tempo...”, ou seja, põe-se de fora para que o sereno e o luar, ou a chuva da madrugada e o orvalho da manhã o purifiquem. Isto é força do tempo. Uma expressão curiosa é “pai tempo”, que é uma espécie de mastro encimado por uma bandeira toda branca, sem fixação de nenhuma efígie ou símbolo. É fincado no lado externo do terreiro de umbanda ou do barracão de candomblé, ou no quintal da casa de quem nele acredita. Pai tempo fica por tempo indeterminado, dia e noite, estação após estação, enquanto resistir aos desgastes que a natureza lhe impõe. É um elemento telúrico que concentra sobre si as forças dos orixás que sobre ele pairam e as carreia, junto com as forças do tempo, para o solo daquele ambiente sagrado ou que se quer sacralizar. Pacifica. Energiza. Fluidifica o bem para aqueles que, ao passar por ele, lhe tocam as mãos ou a testa.

Existe mesmo uma entidade de origem africana, um inquice banto chamado Tempo [3] cultuado no terreiros de nação Angola e Congo. Equivale ao orixá Irôko dos candomblés de nação Ketu e ao orixá Loko da nação Jeje. Tempo tem domínio sobre o tempo, no sentido de duração, extensão da vida e execução do karma. A árvore da figueira brava ou gameleira branca lhe é consagrada.

Existe ainda uma outra árvore de seu domínio, a "capoeira branca", que em linguagem espiritualista chama-se cazanga-tempo, ou apenas, alcazanga, de cuja madeira se fazem cruzes e amuletos considerados muito potentes por sua ação no destino.

Os festejos populares usam com frequência a demarcação ampla do tempo. “Tempo de festa” é a época de uma comemoração anual: tempo do Natal, tempo de carnaval, tempo da coresma (quaresma), tempo do Divino, tempo das fogueiras, tempo do rosário. Tempo aqui é época; período cíclico e ritualístico de celebrar as devoções populares e divertir-se [4].

            Como o texto já vai longo e o tempo para leitura é curto, é tempo de alinhavar um arremate. E que ninguém se zangue por ele ou o qualifique de desrespeitoso! É tão somente uma brincadeira. O exemplar abaixo [5] é uma lúdica infantil escrita, parte da chamada folk-comunicação. As crianças a replicavam escrevendo-as em folhas de caderno como se fossem enigmas para os colegas decifrarem. E punham-se a ler: 

“Tempo viu tempo,
Tempo como tempo,
Tempo é tempo,
Tempo fácil tempo,
Tempo fazer tempo,
Tempo um tempo,
Tempo bobo tempo,
Tempo ler tempo,
Tempo tanto tempo,
Tempo tempo tempo.”

            Como o conjunto de palavras aparenta ser um disparate sem significado algum, logo protestava o leitor. Mas caía em raiva ao ser alertado que o sentido estava apenas na leitura sequencial das palavras do meio de cada verso, de cima para baixo, ou seja: “viu como é fácil fazer um bobo ler tanto tempo”...


Relógio de sol do século XVIII exposto no Museu Municipal Tomé Portes del-Rei, 
São João del-Rei/MG. Procedente da Fazenda Congo Fino, hoje território do vizinho município 
de Conceição da Barra de Minas. Autor: Jonas Augusto de Carvalho Martins, 02/03/2021, a quem agradecemos a gentileza da fotografia.  


Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli


[1] - Informante: Luthero Castorino da Silva, São João del-Rei, 1992.
[2] - O tempo no sentido de exterior é bem conhecido pelo conceito popular mesmo fora da significação religiosa. Se uma madeira posta no quintal a descoberto apodrece, então dizem: “perdeu porque ficou no tempo”; se o cão ou o gato vem dormir dentro de casa, logo o senhor o toca para fora sob alegação que “esse bicho é do tempo”...
[3] - Irôko ou Tempo – um orixá considerado raro. Raízes Espirituais. http://www.raizesespirituais.com.br/iroko-orixa-raro/ (acesso em 24/11/2016, 08:30h)
[4] - Em paralelo se diz: “tempo de folia” (época das folias de Reis saírem às ruas); “tempo de congado” (época dos congados tocarem nos largos). Em conceito bem mais chulo forjou o povo a expressão “tempo cagado”, uma referência que resmunga contra os dias chuvosos, frios, daquela chuva miúda e contínua.
[5] - Informante: Maria Aparecida de Salles, Santa Cruz de Minas, 2016. 

Um comentário:

  1. Muito bom, fiz uma verdadeiro viagem ao tempo.
    Abraço e parabéns pela iniciativa.

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