O dia de São Sebastião caiu este ano em
plena quarta-feira (20 de janeiro), induzindo que as comemorações em vários
lugares se transferissem para o final de semana seguinte. Tal se deu na
Restinga, distrito de Ritápolis/MG, onde aconteceu a tradicional festa em honra
a este santo altamente prestigiado nos meios rurais, como protetor dos
sitiantes e fazendeiros, com o atributo clássico de proteger contra a fome, a peste e a guerra;
guarda infalível dos rebanhos e plantações contra a ruína das doenças, desde
que se tenha fé nele. É por excelência o santo patrono da agropecuária (*).
A Restinga é dividida em dois grupamentos
de casas: um na parte mais alta do terreno foi batizado Restinga de Cima, que
conta com uma capelinha de Nossa Senhora Aparecida e outro na baixada, Restinga
de Baixo, cujo padroeiro é São Sebastião. Onde fica a sua capela não é na parte
mais baixa do povoado, se não mesmo num platô com bela visão panorâmica das
montanhas em derredor. Já por isto há quem lhe chame "Restinga do
Meio", conquanto o nome não pareça tão comum, posto que, ao pé da letra a
capela é parte da Restinga de Baixo. Conta ainda com um cemitério aos fundos, e algumas construções em volta, sediando conferência, casa paroquial, escola e
um grande reservatório de água. Sítios nas imediações. O entorno é gramado, ao
natural e servido pela estrada não pavimentada que vem da Rodovia BR-494 e
segue a Resende Costa, com entroncamentos para a Restinga de Cima (esquerda) e
para o Penedo (direita).
A comunidade é muito tradicionalista e
guarda desde longa data a tradição do congado, com festejo do Rosário em
setembro, quando o catupé local recepciona as guardas visitantes. Mantém
igualmente a folia, ora só na de Baixo, ora nas duas restingas; confluindo sua
jornada para o arremate anual nesta festa em questão. Além do grupo da Restinga
de Baixo, sob o comando do veterano e respeitadíssimo Mestre Sebastião Ezequiel
e de seu seguidor imediato, José Mário, que tem sua própria folia na Restinga
de Cima, estiveram também presentes a Folia "Mensageiro do
Paráclito", vinda da Colônia do José Teodoro (São João del-Rei), do folião
Carlão tendo como embaixadores Pedro Paulo e Antônio Francisco dos Santos; e
ainda a folia do Cerrado, bairro de São Tiago, sob o comando e voz de Vanderlei
Cardoso. As três companhias demonstraram experiência e excelência na qualidade do
que apresentaram, executando toadas muito tradicionais, típicas da região,
sobretudo das áreas rurais.
O povo devoto estava totalmente à vontade
no largo gramado. Música mecânica instalada sobre a carroceria de um caminhão,
coberto de improviso por um toldo de bambu e lona, animava o ambiente tocando
sertanejo nos intervalos de cantoria dos foliões. Gente amiga e aparentada se
encontrava por ali, sentando para a prosa debaixo das grandes figueiras
bravas. Capela aberta na frente e nas laterais, varrida, florida, pintada de
novo. Todo tempo visitantes lhe entram e saem como numa romaria. Os andores de
São Sebastião e de Nossa Senhora das Graças estão enfeitados de rosas vermelhas
e uma fita atada aos pés da imagem oferece ao fiel uma chance para o ósculo. A
marca de batom na fita branca da Virgem é prova inconteste do carinho de um
beijo na santa. A fita de São Sebastião é vermelha, como convém a um mártir da
fé.
O cemitério também está aberto e as
pessoas o visitam livremente, orando pelos mortos, relembrando entes queridos.
A festa abre uma dimensão de saudade, de reencontro, até mesmo com os que já se
foram, ora lembrados porque dali também, noutros tempos, foram
partícipes.
Um mastro foi fincado adrede à capela,
simples, relativamente baixo, mas tão simbólico com sua estampa dupla, numa
face o santo festejado, no outro a Virgem de Fátima.
Num canto do largo um curral reserva
prendas ofertadas ao padroeiro: bezerros e leitões. Diante da casa paroquial,
uma mesa forrada de toalha expõe outras prendas diversas _ melancia, moranga,
abóbora, feijão guardado em garrafa pet (gratidão pelas boas colheitas...),
utensílios domésticos, tapetes e colchas tecidos em teares artesanais _ prendas
para o leilão em benefício do festejo. O povo então os chama respectivamente
"leilão de gado" e "leilão de mesa", uma tradição das
festas deste santo. O povo passa olhando, não mexe, não rouba, respeita, é do
santo. Mas já estipula possíveis valores, planejando arrematar. Por vezes
nesses leilões se arremata objetos baratos; outras vezes bem acima do que
realmente valem, porque o bom leiloeiro sabe apregoar incitando o orgulho e o
senso de disputa dos candidatos a arrematante, que se empolgam em lances
sucessivos visando superar o "rival", o que torna o leilão atraente,
animado, alegria do povo. E é assim mesmo, porque pagar mais que vale é prova
de fé posto que subentendido e aceito coletivamente como verdade inconteste, é
forma de ajudar a festa e retribuir ao santo as múltiplas benesses recebidas.
Essa a lógica do leilão numa festa deste tipo.
Sai o almoço das folias. Que almoço!
Cardápio simples, mas inigualável no sabor. Comida mineiríssima típica.
Elogiado ao extremo por quantos o provaram. Confraternização geral, alegria,
foliões se misturam independente do grupo que participam. São irmãos imbuídos
da mesma missão. Depois cantam no ritual de agradecimento e neste a cozinheira
deve segurar a bandeira para ouvir os versos.
Achegam-se para debaixo da árvore
grande. O mestre do lugar convoca. Encontro das bandeiras, ritual de saudação
de uma folia à bandeira da outra e na sequência aos foliões. Momento de paz e
união. Os devotos dessas comunidades amam as folias. Juntam em volta para ouvir
os versos e apreciar os acordes da sanfona, o dedilhado das cordas, a afinação
do requinta, a sintonia da resposta.
A sineta tocada à porta da sacristia é um
sinal imperativo. A missa vai começar. Folias param, o povo mobiliza-se para o
templo. O relógio marca 14 horas. Padre Nélio José dos Santos, sempre tão
eloquente, sabe como celebrar conservando a atenção de todos e com palavras
evangelizadoras que invadem o âmago. Seu apoio às tradições é valoroso e
indispensável e o temos visto desde muitos anos com aplausos. O coral local
cantou no coro da igrejinha, exímio, se valendo de músicas sertanejas o que
muito agrada aos fiéis.
Na sequência, a partir das 15 horas e
trinta minutos, transcorreu o leilão. Primeiro o de mesa. Enquanto as folias
voltaram a cantar no largo e os presentes em burburinho a conversar, a comer e
beber pelas barracas instaladas, os leiloeiros transitavam entre eles gritando
o preço das prendas e pedindo novos lances. Nesse meio tempo passa um homem
vendendo peças artesanais de couro trançado: talas, relhos, chaveiros,
cinturões, bainhas de canivete. A freguesia está ali, muitos cavaleiros
presentes, de chapelão à cabeça, botas e perneiras. Num canto do lugar
violeiros cantam uma moda qualquer e logo atraem seu público específico;
crianças correm e brincam numa liberdade imensa, gramado afora, sem riscos, sem
obstáculos. O gramado, aliás, daqui e dali se ponteia de forte amarelo, dos
canários da terra, pássaros canoros de beleza ímpar.
Daí a pouco os leiloeiros começam a passar
com galinhas peiadas (**) e o leilão esquenta. Já mais um tanto e começa o berreiro
dos porcos e passam carregando leitões e por fim as pessoas rodeiam o curral
para avaliar os bezerros e dar seus lances, momento mais intenso da disputa dos
arrematantes.
Findo o leilão o padre convida ao
microfone os fiéis ao início da procissão e o sino da capela reitera o chamado
com seus repiques insistentes. Cruciferário toma a dianteira. Duas filas logo
se formam. Andores vão no meio e folias atrás, alternando cantoria. Rodeiam o
cemitério, circulam pelo lugar, tornam por baixo. Não é itinerário longo, mas
concorrido e devoto. Uns poucos foguetes espocam e seu eco se amplia na
imensidão de morros. Na chegada os andores entram de marcha à ré, como é de
costume. O sacerdote dá a bênção final e a capela se irrompe em vivas a São
Sebastião. As folias cantam sua despedida na nave da igrejinha e o povo despe
os andores de suas flores, que levadas aos lares são certamente dádivas que
adentram nas famílias.
Despedidas à vista. Sai um carro, vai-se
um caminhante, um cavaleiro, uma motocicleta. O largo pouco a pouco esvazia. Barracas
se desfazem. Alguém varre a capela e uma zeladora cerra as portas. O
compromisso com o sagrado foi cumprido mais uma vez. O equilíbrio das forças
terrenas e celestes está garantido de novo para aquela comunidade, como uma aliança inquebrantável. A fome
não assolará já que os rebanhos e roçados estão abençoados. Agora é voltar ao
trabalho, com a certeza da vitória que só a fé garante... Té logo, cumpadre, vai com Deus!
* No ano anterior este blog divulgou outra festa rural dedicada a São Sebastião, no distrito de São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei). Leia clicando no link: CABURU FESTEJA SÃO SEBASTIÃO
** Peiada: que tem os pés atados por peias (cordão ou embira que amarra um pé no outro para imperdir a fuga de um animal correndo). Não confundir com pejada: prenha, grávida. Vocabulário típico dos meios rurais.
*** Texto e fotografias: Ulisses Passarelli
Há muito que não visualizo uma festa de S. Sebastião taõ expressiva e justamente num meio bem interiorano. Affonso
ResponderExcluirLindo este texto.
ResponderExcluirA beleza está na simplicidade.
Quero participar desta celebração.
Um grande abraço, Luiz Cruz