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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A Festa de São Sebastião na Restinga

O dia de São Sebastião caiu este ano em plena quarta-feira (20 de janeiro), induzindo que as comemorações em vários lugares se transferissem para o final de semana seguinte. Tal se deu na Restinga, distrito de Ritápolis/MG, onde aconteceu a tradicional festa em honra a este santo altamente prestigiado nos meios rurais, como protetor dos sitiantes e fazendeiros, com o atributo clássico de proteger contra a fome, a peste e a guerra; guarda infalível dos rebanhos e plantações contra a ruína das doenças, desde que se tenha fé nele. É por excelência o santo patrono da agropecuária (*). 

A Restinga é dividida em dois grupamentos de casas: um na parte mais alta do terreno foi batizado Restinga de Cima, que conta com uma capelinha de Nossa Senhora Aparecida e outro na baixada, Restinga de Baixo, cujo padroeiro é São Sebastião. Onde fica a sua capela não é na parte mais baixa do povoado, se não mesmo num platô com bela visão panorâmica das montanhas em derredor. Já por isto há quem lhe chame "Restinga do Meio", conquanto o nome não pareça tão comum, posto que, ao pé da letra a capela é parte da Restinga de Baixo. Conta ainda com um cemitério aos fundos, e algumas construções em volta, sediando conferência, casa paroquial, escola e um grande reservatório de água. Sítios nas imediações. O entorno é gramado, ao natural e servido pela estrada não pavimentada que vem da Rodovia BR-494 e segue a Resende Costa, com entroncamentos para a Restinga de Cima (esquerda) e para o Penedo (direita). 

A comunidade é muito tradicionalista e guarda desde longa data a tradição do congado, com festejo do Rosário em setembro, quando o catupé local recepciona as guardas visitantes. Mantém igualmente a folia, ora só na de Baixo, ora nas duas restingas; confluindo sua jornada para o arremate anual nesta festa em questão. Além do grupo da Restinga de Baixo, sob o comando do veterano e respeitadíssimo Mestre Sebastião Ezequiel e de seu seguidor imediato, José Mário, que tem sua própria folia na Restinga de Cima, estiveram também presentes a Folia "Mensageiro do Paráclito", vinda da Colônia do José Teodoro (São João del-Rei), do folião Carlão tendo como embaixadores Pedro Paulo e Antônio Francisco dos Santos; e ainda a folia do Cerrado, bairro de São Tiago, sob o comando e voz de Vanderlei Cardoso. As três companhias demonstraram experiência e excelência na qualidade do que apresentaram, executando toadas muito tradicionais, típicas da região, sobretudo das áreas rurais. 

O povo devoto estava totalmente à vontade no largo gramado. Música mecânica instalada sobre a carroceria de um caminhão, coberto de improviso por um toldo de bambu e lona, animava o ambiente tocando sertanejo nos intervalos de cantoria dos foliões. Gente amiga e aparentada se encontrava por ali, sentando para a prosa debaixo das grandes figueiras bravas. Capela aberta na frente e nas laterais, varrida, florida, pintada de novo. Todo tempo visitantes lhe entram e saem como numa romaria. Os andores de São Sebastião e de Nossa Senhora das Graças estão enfeitados de rosas vermelhas e uma fita atada aos pés da imagem oferece ao fiel uma chance para o ósculo. A marca de batom na fita branca da Virgem é prova inconteste do carinho de um beijo na santa. A fita de São Sebastião é vermelha, como convém a um mártir da fé. 

O cemitério também está aberto e as pessoas o visitam livremente, orando pelos mortos, relembrando entes queridos. A festa abre uma dimensão de saudade, de reencontro, até mesmo com os que já se foram, ora lembrados porque dali também, noutros tempos, foram partícipes. 

Um mastro foi fincado adrede à capela, simples, relativamente baixo, mas tão simbólico com sua estampa dupla, numa face o santo festejado, no outro a Virgem de Fátima. 

Num canto do largo um curral reserva prendas ofertadas ao padroeiro: bezerros e leitões. Diante da casa paroquial, uma mesa forrada de toalha expõe outras prendas diversas _ melancia, moranga, abóbora, feijão guardado em garrafa pet (gratidão pelas boas colheitas...), utensílios domésticos, tapetes e colchas tecidos em teares artesanais _ prendas para o leilão em benefício do festejo. O povo então os chama respectivamente "leilão de gado" e "leilão de mesa", uma tradição das festas deste santo. O povo passa olhando, não mexe, não rouba, respeita, é do santo. Mas já estipula possíveis valores, planejando arrematar. Por vezes nesses leilões se arremata objetos baratos; outras vezes bem acima do que realmente valem, porque o bom leiloeiro sabe apregoar incitando o orgulho e o senso de disputa dos candidatos a arrematante, que se empolgam em lances sucessivos visando superar o "rival", o que torna o leilão atraente, animado, alegria do povo. E é assim mesmo, porque pagar mais que vale é prova de fé posto que subentendido e aceito coletivamente como verdade inconteste, é forma de ajudar a festa e retribuir ao santo as múltiplas benesses recebidas. Essa a lógica do leilão numa festa deste tipo. 

Sai o almoço das folias. Que almoço! Cardápio simples, mas inigualável no sabor. Comida mineiríssima típica. Elogiado ao extremo por quantos o provaram. Confraternização geral, alegria, foliões se misturam independente do grupo que participam. São irmãos imbuídos da mesma missão. Depois cantam no ritual de agradecimento e neste a cozinheira deve segurar a bandeira para ouvir os versos. 

 Achegam-se para debaixo da árvore grande. O mestre do lugar convoca. Encontro das bandeiras, ritual de saudação de uma folia à bandeira da outra e na sequência aos foliões. Momento de paz e união. Os devotos dessas comunidades amam as folias. Juntam em volta para ouvir os versos e apreciar os acordes da sanfona, o dedilhado das cordas, a afinação do requinta, a sintonia da resposta. 

A sineta tocada à porta da sacristia é um sinal imperativo. A missa vai começar. Folias param, o povo mobiliza-se para o templo. O relógio marca 14 horas. Padre Nélio José dos Santos, sempre tão eloquente, sabe como celebrar conservando a atenção de todos e com palavras evangelizadoras que invadem o âmago. Seu apoio às tradições é valoroso e indispensável e o temos visto desde muitos anos com aplausos. O coral local cantou no coro da igrejinha, exímio, se valendo de músicas sertanejas o que muito agrada aos fiéis. 

Na sequência, a partir das 15 horas e trinta minutos, transcorreu o leilão. Primeiro o de mesa. Enquanto as folias voltaram a cantar no largo e os presentes em burburinho a conversar, a comer e beber pelas barracas instaladas, os leiloeiros transitavam entre eles gritando o preço das prendas e pedindo novos lances. Nesse meio tempo passa um homem vendendo peças artesanais de couro trançado: talas, relhos, chaveiros, cinturões, bainhas de canivete. A freguesia está ali, muitos cavaleiros presentes, de chapelão à cabeça, botas e perneiras. Num canto do lugar violeiros cantam uma moda qualquer e logo atraem seu público específico; crianças correm e brincam numa liberdade imensa, gramado afora, sem riscos, sem obstáculos. O gramado, aliás, daqui e dali se ponteia de forte amarelo, dos canários da terra, pássaros canoros de beleza ímpar. 

Daí a pouco os leiloeiros começam a passar com galinhas peiadas (**) e o leilão esquenta. Já mais um tanto e começa o berreiro dos porcos e passam carregando leitões e por fim as pessoas rodeiam o curral para avaliar os bezerros e dar seus lances, momento mais intenso da disputa dos arrematantes. 

Findo o leilão o padre convida ao microfone os fiéis ao início da procissão e o sino da capela reitera o chamado com seus repiques insistentes. Cruciferário toma a dianteira. Duas filas logo se formam. Andores vão no meio e folias atrás, alternando cantoria. Rodeiam o cemitério, circulam pelo lugar, tornam por baixo. Não é itinerário longo, mas concorrido e devoto. Uns poucos foguetes espocam e seu eco se amplia na imensidão de morros. Na chegada os andores entram de marcha à ré, como é de costume. O sacerdote dá a bênção final e a capela se irrompe em vivas a São Sebastião. As folias cantam sua despedida na nave da igrejinha e o povo despe os andores de suas flores, que levadas aos lares são certamente dádivas que adentram nas famílias. 

Despedidas à vista. Sai um carro, vai-se um caminhante, um cavaleiro, uma motocicleta. O largo pouco a pouco esvazia. Barracas se desfazem. Alguém varre a capela e uma zeladora cerra as portas. O compromisso com o sagrado foi cumprido mais uma vez. O equilíbrio das forças terrenas e celestes está garantido de novo para aquela comunidade, como uma aliança inquebrantável. A fome não assolará já que os rebanhos e roçados estão abençoados. Agora é voltar ao trabalho, com a certeza da vitória que só a fé garante... Té logo, cumpadre, vai com Deus!

Andor de São Sebastião na Restinga:
um ramo de oliveira se abre como uma umbela
e a fita vermelha serve ao beijo dos devotos. 

Bandeireiro da folia da Colônia do José Teodoro
em respeitosa atitude durante a cantoria de veneração. 
 
Folia da Colônia do José Teodoro (São João del-Rei), chegando na
Capela de São Sebastião da Restinga de Baixo. 

Folia do Cerrado, de São Tiago, faz sua adoração dentro da capela. 
Sanfoneiro da folia da Restinga. 

Foliões Zé Mário (esquerda), da Restinga de Cima e Sebastião Ezequiel (direita), da Restinga de Baixo, ícones da tradição folieira na região, observam atentamente a cantoria das folias visitantes. 
Senhoras observam a cantoria folieira. 

O povo se aglomera debaixo da imensa figueira para assistir o Encontro das Bandeiras. 

Vendedor de artefatos de couro. 

O leiloeiro apregoa um porco.  

Leilão de galinhas. 

O leilão de gado é muito concorrido. 

Mesa de prendas.
Cruciferário abre a procissão.  

Passagem do andor de São Sebastião acompanhado por folias. 
Fogueteiros saúdam a chegada da procissão. 

Chegada da procissão. No extremo esquerdo da fotografia se observa
o mastro de São Sebastião. 

Notas e Créditos

* No ano anterior este blog divulgou outra festa rural dedicada a São Sebastião, no distrito de São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei). Leia clicando no link: CABURU FESTEJA SÃO SEBASTIÃO
** Peiada: que tem os pés atados por peias (cordão ou embira que amarra um pé no outro para imperdir a fuga de um animal correndo). Não confundir com pejada: prenha, grávida. Vocabulário típico dos meios rurais. 
*** Texto e fotografias: Ulisses Passarelli

2 comentários:

  1. Há muito que não visualizo uma festa de S. Sebastião taõ expressiva e justamente num meio bem interiorano. Affonso

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  2. Lindo este texto.
    A beleza está na simplicidade.
    Quero participar desta celebração.
    Um grande abraço, Luiz Cruz

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