Um campo riquíssimo para a
pesquisa do folclore é o universo da poesia popular, seja por sua imensa
vastidão e variedade, seja por refletir com muita transparência e simplicidade
os sentimentos e os costumes. Muitas vezes numa humilde trova encontra-se a referência
que serve de pista ao pesquisador para enveredar mais a fundo num assunto, que
rende certamente um estudo.
Este blog já tem se dedicado ao
assunto tendo publicado quatro postagens da série “Quadrinhas de Amor”, uma
Quadrinhas do Elvas e uma Trovinhas bem humoradas e outras quadras populares,
que ora apresentamos a segunda parte.
Na mesma linha da parte 1, vê-se
neste novo conjunto a pronúncia popular naturalmente estropiada nessas quadras,
o que contribui para lhes ajustar a métrica, conferir uma verve típica e até mesmo a sonoridade necessária
à rima: “véia” (velha), "trabaiadô" (trabalhador) “ôtra” (outra), “cumê” (comer), “armoço” (almoço), “bença”
(bênção), “falá” (falar), “farejá” (farejar), “arto” (alto), “valô” (valor), “papé”
(papel), “votá” (votar), “surjão” (cirurgião), etc. Da mesma forma os plurais
são omitidos: “os olho”, “as veia”, “sete palmo”, “sete mês”, “cinco ano” ... A palavra “cagô” (cagou), assaz conhecida, é o
termo chulo equivalente a defecou; “dentadura”
é prótese dentária total removível.
Surgem também os chamados
versos-feitos, ou seja, composições fixas que aparecem para compor várias peças
do refraneiro. “Lá detrás daquele morro...” , por exemplo, é empregado em
várias trovas populares em variações, de extensa ocorrência geográfica. Outros
exemplos de versos-feitos: “Ninguém viu o que eu vi hoje”; “Quando eu vim da
minha terra”...
Entre o conjunto de quadras
incluiu-se um único terceto (nº4). A justificativa é unicamente por fazer par
com a trova nº3, com a qual guarda similitude e aparente continuidade.
A quadra nº1 tem ares de ponto, no
estilo de pergunta, enigmática e provocativa.
A de nº5, bastante difundida, possui
algumas variantes, uma das quais substitui “jatobá” por “manacá”.
Há de se observar que as
composições muitas vezes ironizam situações cotidianas (“eu ontem comi no
almoço”), brincam com a própria sorte (“fui um homem inteligente”), falam de
personagens imaginários (Sá Chiquinha; seu Manuel Antônio...), zombam do
próprio amor (“menina, se tu soubesse” ; “menina, casa comigo”), nada porém com
cunho discriminador, mas sempre com ar hilário, no contexto da cultura popular.
Por fim é curioso notar as duas
últimas peças, coletadas em Santa Cruz de Minas que motejam São João del-Rei,
duas cidades extremamente vizinhas. As duas quadras revelam uma rivalidade da
primeira urbe para com a segunda: a disputa feminina sobre namorados roubados e
o desenvolvimento econômico são-joanense à época da coleta, confrontado com
outras cidades regionais como referência.
Seja como for, ainda que
aparentemente disparatadas, essas quadras revelam em seu intrínseco ou em seu
panorama, a sabedoria e bom humor popular na composição lúdica de trovas
avulsas, independentes, anônimas, que se difundem pela oralidade ou anotadas manuscritas
em cadernetas e cabeçalho de páginas escolares. No todo transmitem mensagens
coletivas e conselhos, ou apenas brincam com a vida, divertem com seu humor de
delicioso sabor provinciano, por vezes, chulo.
* * *
1-Eu sou filho da caninana,
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2-Lá vem Sá Chiquinha,
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Neto da cobra-corá,
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Rouca, sem poder falar,
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Cachorro sem nariz
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Trazendo na barra da saia,
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Como pode farejá ?
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Quarta e meia de fubá ...
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3-Seu Manuel Antônio de Sousa,
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4-Seu Manuel Antônio Saturnino
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Que veio lá do surjão,
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Pela cara que tem
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Tira esse cará da garupa,
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Tem os olho pequenino.
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Que isso é mandioca do chão.
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5-Lá detrás daquele morro
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6-Meu amigo quando come,
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Tem um pé de jatobá
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Incha as veia do pescoço,
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Quem comer,
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Parece um cachorro velho
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Dá muxiba no mamá...
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Quando tá roendo osso.
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7-Duas velha muito velha,
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8-Lá no alto daquele morro,
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Duas velha saragota
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Tem um pé de samamabaia;
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De tanto falar em casamento
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A mulher deu um peido,
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Uma velha cagô na outra...
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Rebentou o cordão da saia...
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9-Ninguém viu o que eu vi hoje,
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10-Quando eu vim da minha terra
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Lá no alto daquele morro:
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Minha mãe disse: “vai, vai!”
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Sete palmo de linguiça
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Toma a bença a todo mundo,
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Correndo atrás de um cachorro.
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Que eu não sei quem é teu pai...
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11-Eu ontem comi no armoço,
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12-Eu já fui homem inteligente,
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A Azeitona de uma empada,
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Quase que tirei meu curso...
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E coloquei o caroço
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Do primeiro pro segundo ano
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Sobre a toalha engomada.
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Da escola fui expulso.
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13-Eu nasci de sete mês
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14-Eu não conheci meu pai,
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Mesmo assim fui bem criado;
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Mesmo assim fui bem criado;
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Com idade de quinze ano,
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Com idade de cinco ano,
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Fui eleito deputado.
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Fui votá pra deputado.
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15-Alecrim verde cheira muito,
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16-Preto é tinta que se escreve
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Ele seco cheira mais;
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Pra dá valô o papé;
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A mulher que fia em homem,
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Preto é o cabelo da Virge
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Morre seca, dando “ais”...
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E as barba de São José!
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17-A mulher mais as galinhas
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18-A mulher velha
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Não se deixa passear:
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Quando quer dançar um tango
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As galinhas o bicho come,
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Fica igual uma raposa,
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A mulher dá o que falar...
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Quando quer pegar um frango.
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19-O marmelo é boa fruta,
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20-Menina quando eu morrer,
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Que dá na ponta da vara;
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Vai na cova me adorar,
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Mulher que chora por homem
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Para ver o teu corpinho
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Não tem vergonha na cara.
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Faz o meu ressuscitar.
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21-Menina casa comigo
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22-Menina dos olhos pretos
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Qu’eu sô bom trabaiadô,
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Cor da linha do retrós,
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Com chuva num vô na roça,
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Põe a chaleira no fogo,
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Com sole também num vô...
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Pra fazer café pra nós.
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23-Menina, se tu soubesse,
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24- Os jovens beijam devagar
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Quanto eu estou te querendo,
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Para sentir a doçura,
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Eu queria te ver morta
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Os velhos beijam depressa
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E as formigas te comendo...
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Para não cair a dentadura ...
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25- Se você está namorando,
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26- Juiz de Fora deu um grito
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Guarde dentro do baú
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Barbacena respondeu;
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Que as mulheres de São João
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Tiradentes tá doente,
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É pior que urubu ...
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São João [del-Rei] já morreu ...
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Créditos
- Texto: Ulisses Passarelli.
Notas
- Informantes: quadras 1 a 22 –
Aluísio dos Santos (1994-1997), São João del-Rei; 23 – Luthéro Castorino da
Silva (1998), São João del-Rei; 24 a 26 (1999), Maria Aparecida de Salles,
Santa Cruz de Minas.
- Revisão: 28/10/2025.
- Veja também a série: Quadrinhas de Amor - parte 1
Quadrinhas de Amor - parte 2
Quadrinhas de Amor - parte 3
Quadrinhas de Amor - parte 4
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