Não digo sobre todas, mas sobre a maioria: as crianças de hoje não imaginam uma das grandes diversões da molecada de trinta, quarenta, cinquenta anos atrás... Cantigas, enunciados, danças de roda, parlendas, fórmulas de escolha, eram mecanismos versificados memorizados que alegravam suas brincadeiras e ajudavam na socialização.
Nesta postagem as parlendas vem à baila. São versificações simples para a memorização, enunciados com temas pueris, aparentemente disparatados, que tanto as crianças brincam entre si quanto os adultos com elas, em momentos que deveríamos ter mais amiúde, para não deixar morrer a criança que existe dentro de nós.
Os exemplares aqui expostos procedem de São João del-Rei e Santa Cruz de Minas mas extrapolam em muito esta área. Por toda parte houve dessas cantilenas e nos lugares mais recônditos elas ainda sobrevivem. Ainda de memória lembro de uma conhecidíssima parlenda, que aqui, nos anos setenta era assim:
"_ Cadê o toicinho que tava aqui?
_ O gato comeu.
_ Cadê o gato?
_ Tá no mato.
_ Cadê o mato?
_ O fogo pegou.
_ Cadê o fogo?
_ A água apagou,
_ Cadê a água?
_ O boi bebeu.
_ Cadê o boi?
_ Tá amassando trigo.
_ Cadê o trigo?
_ A galinha espalhou.
_ Cadê a galinha?
_ Tá botando ovo.
_ Cadê o ovo?
_ O frade bebeu.
_ Cadê o frade?
_ Tá rezando missa.
_ Cadê a missa?
_ Já acabou..."
Essa parlenda de que existem algumas pequenas variantes, as mães brincavam com as crianças, dialogando em sistema de pergunta e resposta e "procurando o caminho da missa": o enunciado se fazia com a palma da mão da criança estendida para cima e a mãe, pondo o indicador no centro da palma, fazia a pergunta e obtinha a resposta... está no mato, está botando ovo... sempre batendo o dedo a cada pergunta. Quando diz "a missa acabou", o dedo corria repentino pelo braço acima para fazer cócegas na axila da criança. Daí que algumas versões, como uma de Santa Cruz de Minas, da década de 1990, terminam com uma última pergunta: "_ Cadê o caminho da missa?" e a própria pessoa responde: "_ Tá aqui!" e corre para fazer as cosquinhas.
Uma outra são-joanense mas assaz conhecida também noutros lugares é a seguinte:
"Hoje é domingo,
pede cachimbo!
Cachimbo é de ouro,
pega no touro!
O touro é valente,
pega a gente!
A gente é fraco,
cai no buraco!
O buraco é fundo,
tá no fim do mundo!"
A versão correspondente na vizinha Santa Cruz de Minas se traça idêntica, exceto por trocar a palavra "fraco" por "bobo" e "tá no fim do mundo" por "arrasa o mundo".
Os enunciados não se desfiam mecanicamente. Tem uma rítmica na pronúncia, como um esboço musical:
"Fui passar na pinguelinha, (*)
chinelinho escorregou do pé;
os peixinhos reclamaram,
que cheirinho de chulé!"
"Um, dois, feijão com arroz!
Três, quatro, feijão no prato!
Cinco, seis, feijão inglês!
Sete, oito, comer biscoito!
Nove, dez, comer pastéis!"
A pronúncia acelerada ritma até o final que se abre ou rompe, "pastéisss..."
Era muito comum os vendedores de picolé com caixa de isopor pendente no ombro à tiracolo, ou empurrando carrinhos próprios, oferecerem seu produto apregoando assim:
"Ao picôooo...lééé!"
A palavra "picolé" era esticada na pronúncia, começando quase gutural, depois em tom de baixo, para finalmente se abrir aguda. Uma forma de anúncio que já não se vê. Pois bem. A criançada, motejando tais vendedores, ou os parodiando, saía com essa parlenda em São João del-Rei:
"Ao picolé, lélé!
Tem de coco e de chulé,
quem quiser levanta o pé,
na careca do sô Zé!" (**)
Ou com esta, em Santa Cruz de Minas:
"Ao picolé,
tem de coco e de chulé,
só não compra
quem não quer."
Bastante conhecida e divulgada é esta:
"Chuva choveu,
goteira pingou,
pergunta os papudo (***)
se o papo molhou..."
"A casinha da vovó,
cercadinha de cipó,
o café tá demorando,
com certeza não tem pó..."
Uma variante diz "trançadinha de cipó".
Um tanto irônica é esta, de Santa Cruz:
"A cana é minha, o boi é seu;
a garapa é minha, o bagaço é seu..."
A garapa é a parte boa, doce; o bagaço é o resto, sem serventia. Em São João del-Rei o saudoso capitão de congado Raimundo Camilo adaptara essa parlenda aos pontos de seu catupé.
Ainda colhida em Santa Cruz, uma parlenda de sentido chulo (****):
"Dona Mariquinha,
fez xixi na canequinha,
foi falar pra todo mundo
que era caldo de galinha ...
Dona Mariquinha,
foi tomar banho na gamela,
a água 'tava quente
sapecou a bunda dela ...
Dona Mariquinha,
foi tomar banho no tacho,
a água 'tava quente
sapecou ela por baixo ...
Dona Mariquinha,
não tinha o que fazê,
pôs o galo com a galinha
no terreiro pra metê ..."
"Sô do morro
da bananeira,
olho pra sua cara,
me dá caganeira ..."
"Comi pepino,
rotei jiló;
a bunda da véia
é muxiba só!"
Dona Mariquinha,
foi tomar banho na gamela,
a água 'tava quente
sapecou a bunda dela ...
Dona Mariquinha,
foi tomar banho no tacho,
a água 'tava quente
sapecou ela por baixo ...
Dona Mariquinha,
não tinha o que fazê,
pôs o galo com a galinha
no terreiro pra metê ..."
Outras da mesma fonte:
"Sô do morro
da bananeira,
olho pra sua cara,
me dá caganeira ..."
"Comi pepino,
rotei jiló;
a bunda da véia
é muxiba só!"
Já em São João del-Rei (*****):
"A Mariquinha
comeu tripa de galinha,
foi contar pro namorado
que comeu macarronada."
"Menina bonita,
não come jiló,
jiló é veneno,
matou sua avó!"
"Compadre Zacarias,
que mora lá no sul,
barba de sapé,
do olho azul."
E por fim, mais duas da mesma fonte, sendo a primeira conhecidíssima:
"Menina bonita,
não come jiló,
jiló é veneno,
matou sua avó!"
"Compadre Zacarias,
que mora lá no sul,
barba de sapé,
do olho azul."
Dentre tantas outras essas parlendas revelam a alegria do folclore infantil, brinquedos da oralidade, expressão imaterial da lúdica da criançada, que não depende só de objetos para se divertir.
Notas e Créditos
* Pinguelinha, pinguela: pequena ponte improvisada sobre valos e córregos, formada só por um tronco, uma tábua grossa (pranchão) ou um feixe de bambus, que possibilita a passagem de uma só pessoa por vez.
** Sô: senhor, sinhô, inhô. Zé: José.
*** Papudo: falador, caluniador, prolixo, aquele que conta vantagens próprias, aumentando ou inventando suas próprias qualidades. Esta parlenda ouvi-a em 1997 convertida em canto de congado, na guarda de congo do Capitão Antônio da Cidoca, em Passos/MG.
**** Informante: Maria Aparecida de Salles, 1998.
***** Informante: Aluísio dos Santos, 1994.
****** Texto: Ulisses Passarelli
***** Informante: Aluísio dos Santos, 1994.
****** Texto: Ulisses Passarelli
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