Linha do Bicharão: um calango diferente
A cantoria do calango, que pode ou não ser dançado, é muito disseminada no interior mineiro e bem conhecida nos Campos das Vertentes. Foi alvo de dois textos neste blog, intitulados "Calango-tango".
Dentre as modalidades, uma muito específica é o "Calango dos Bichos", que enumera de 1 a 25 os animais do popular jogo do bicho, considerado contravenção no país (*). No referido texto foi transcrito um exemplar e ora segue este outro, oriundo de Santa Rita do Ibitipoca, informado em 1996 pelo sr. Júlio Prudente de Oliveira.
Como outras versões, faltam alguns números e outros tem o bicho original trocado por eventual lapso da memória (19 é pavão e não peru, que é o 20), mas seja como for, é um exemplar muito significativo deste gênero poético-musical, que carrega no enunciado o sabor da versificação e da pronúncia interioranas.
Senhor me dá licença,
d'eu começar minha coleção,
eu agora vou cantar
na minha linha do bicharão.
Número 1 deu n'avestruz,
acompanhando de vão em vão;
número 2 deu na águia,
caiu no chapadão.
Número 3 deu no burro,
quando não é marcha é trotão;
número 4 na borboleta,
voando de vão em vão.
O 5 é o cachorro,
tem apelido de cão;
o 6 deu na cabra,
que dá leite p'ros pagão.
O 7 deu carneiro,
que de Deus tem a benção;
o 8 o camelo,
que pega peso no chão.
O 9 na cobra,
que é bicho da maldição;
o número 10 no coelho,
pastando capim-melão.
O 11 no cavalo,
que dá sela e dá silhão;
0 12 no elefante
que na tromba traz argolão.
O 13 deu no galo,
que tem espora mas não é pião;
o 14 deu no gato,
destampando o caldeirão.
O número 15 no jacaré,
nadando no ribeirão;
o 16 no leão,
que é o rei do bicharão.
O 17 deu no macaco
que pulou do galho no chão,
o 18 deu no porco,
cozido no caldeirão.
O 19 deu peru,
arrastando a asa no chão;
(falta o 20)
O 21 deu no touro,
puxando carretão;
o 22 deu na tigre (**),
só pega às traição.
(falta o 23 - urso)
o 24 no veado,
correndo no chapadão.
25 deu na vaca,
terminei minha coleção.
Notas e Créditos
* Em razão da ilegalidade, a repressão ao jogo do bicho é muito antiga. A mais de um século a imprensa são-joanense elogiava o Dr. Vieira Marques, de Belo Horizonte, chefe das polícias, pela ordem expedida aos delegados distritais, no sentido de que perseguissem o jogo do bicho (Fonte: jornal A Tribuna, n.49, 13/06/1915, São João del-Rei).
**Na tigre: a expressão no feminino é tradicional entre as vozes populares. No meio caipira a palavra tigre é por vezes sinônimo de onça, o que não corresponde naturalmente aos ensinamentos da zoologia. Mas o costume dessa denominação é antigo. Já Diogo de Vasconcelos escrevera a mais de um século sobre a onça preta, variedade melânica da pintada (jaguar), chamando-a de "onça tigre": "é preta, como o tigre, e tem de ordinário da cabeça à extremidade da cauda, de dez a dezesseis palmos de comprido, o tronco varado, peitos e quartos largos; a forma é a de um gato e serve-se das unhas retráteis como um anzol para chegarem a presa à boca, com a qual a despedaçam; é a mais formidável de todas as feras por sua agilidade, e arteira de modo que, com a dissimulação, assalta a todos os animais; seus urros são medonhos; habita as grandes matas e serras fragosas; nutre-se de toda a espécie de carnes, ama com preferência o gado vacum e cavalar. Atrai as presas por meio da imitação, fingindo o pio do macuco ou do inhambu ou de qualquer ave que pretende apoderar-se." (VASCONCELOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Breve descrição geográfica, física e política da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Sistema Estadual de Planejamento/Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994. Coleção Mineiriana, Série Clássicos. 188p. p.68)
*** Texto e foto: Ulisses Passarelli
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