Algumas orquidáceas na tradição popular de São João del-Rei
(ofereço atenciosamente a Luís Cruz, grande defensor de nossa natureza)
As orquidáceas são vegetais superiores, muito evoluídos na escala filogenética. De floração bela, intrigante, aromática, desde longa data são alvejadas pelo homem no afã de tê-las ao alcance do olhos, em cultivo caseiro ou comercial.
Não apenas a coleta é uma ameaça. A destruição do habitat e as mudanças climáticas, tudo fruto da pressão antrópica, impõe um destino sombrio a estas criações maravilhosas da mãe natureza, carecendo de um vasto trabalho educativo e protecionista.
Algumas dessas plantas caminham céleres para a rarefação. Há as que tem um papel especial na cultura popular, conforme a região, enveredando para o ramo do folclore, razão pela qual vem neste momento colorir esta página eletrônica, tal como os exóticos dendróbios (Dendrobium nobile) enfeitam, em setembro, o andor do Senhor de Matosinhos.
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Baunilha - nome das orquídeas do gênero Vanilla e da essência aromática extraída dos seus frutos (cápsulas de sementes). A substância principal da baunilha é a
vanilina, que confere aroma e sabor característico a bolos, tortas, doces,
sorvetes, etc. É usual colher as cápsulas na Sexta-feira da Paixão, cortá-las
em forma de cruz, colocar açúcar em seu interior e por a secar. Guarda-se para
fazer chá em casos de cólicas muito fortes e para males inexplicáveis. Considera-se
abençoada. A mais de um século, um jornal de São João del-Rei anunciava nos seguintes termos um certo conhaque (*): "Cognac de agrião e baunilha - Depositarios Nogueira Sobrinho & Comp. - Rio - Rua do Acre, 49. Fortificante sem egual. Saboroso e medicinal."
Outra referência digna de registro é a do viajante inglês Richard Burton, que em meados do século XIX, ao passar por São João del-Rei, deixou registrado:
"Também nos foram mostrados exemplares da baunilha nativa, preparada pelos nossos anfitriões. As vagens são penduradas em uma corda e postas a secar, todos os dias, ao sol e ao ar, mas de maneira a não se tornarem excessivamente secas. Por duas vezes, com um certo intervalo, é aplicado o óleo da "azeitona-da-África", por meio de uma pena. Há quem corte as vagens e salpique dentro delas açúcar e sal. Esse valioso produto é de a muito conhecido no Brasil; uma lei colonial de 1740 proibia seu corte. O autor do poema Caramuru, cuja primeira edição é de 1781, fala sobre ele (Canto 7, es.47):
"A baunilha nos cipós desponta,
que tem no chocolate a parte sua:
nasce em bainhas, como paus de lacre,
de um suco oleoso, grato o cheiro acre."
Ao passo, porém, que os espanhóis exploravam a "vaynilla" (Epidendron vanilla), mesmo em sua época de ouro e prata, os portugueses, especialmente os paulistas e os mineiros, sistematicamente a negligenciavam, e nossos livros a ignoram. No entanto, a planta cresce em grande parte do Brasil intertropical, e, em certos lugares, perfuma a atmosfera. Parece, portanto, se reproduzir sem a arte. As vagens que nos foram oferecidas em São João eram grandes, carnosas e muito escuras; conservaram durante meses seu cheiro característico."
Bananinha ou dedo-de-moça - micro-orquídea do numeroso grupo dos Pleurothallis, atualmente classificado como Acianthera rupestris. Coletado no dia de Nossa Senhora da Conceição nas pedreiras serranas, é usado para enfeitar presépios.
Pinheirinho - micro-orquídea do grande grupo das Maxillaria, hoje classificada como Christensonella acicularis. Uso idêntico à anterior.
Tatu, sumaré ou lanceta do mato - nomes populares dos cirtopódios, em especial aqui do raro Cyrtopodium andersonii. Do extrato dos pseudobulbos o povo faz uma cola rústica (também extraída de outra rara orquídea regional,Catasetum cernuum) e ainda um emplastro de poder cicatrizante.
Bailarina - qualquer oncídio de flores amarelas. Orquidácea do grupo Oncidium, notadamente Coppensia varicosa, que florindo nesta região entre março e abril, tem suas hastes florais exuberantes usadas na ornamentação de capelas, dispostas em jarras e florais, durante as comemorações dos Passos.
Catiléia - orquídeas epífitas do gênero Cattleya. Sofrem imensamente com a coleta em virtude de sua exuberância. Na região duas espécies nativas são usadas na ornamentação quaresmal dos andores do Senhor dos Passos e capelas: Cattleya loddigesii e Cattleya walkeriana, abaixo retratadas, nesta sequência.
Referências Bibliográficas
Notas e Créditos
** Texto e fotografias: Ulisses Passarelli
Ulisses, este post é um grande serviço para conhecimento da flora - no caso orquídeas - da Serra do Lenheiro. Não imaginamos que naquelas rochas possa existir vida tão bela e delicada. Você nos fala também dos usos fitoterápicos e religiosos destas plantas, que por sua firmeza escultural nos parecem símbolos do que é sublime e sobre-humano. Inspiram eternidade.
ResponderExcluirDar a conhecer estas plantas de nossa região é, sem dúvida, uma forma de preservá-las. Sabendo de sua existência, muitos são-joanenses as reconhecerão como patrimônio natural coletivo e se empenharão por sua proteção e perpetuidade, quem sabe criando o Santuário das Orquídeas da Serra do Lenheiro.
Outra forma, desta vez didático-educativa, seria aproveitar o projeto de requalificação do largo do Chafariz da Legalidade, viabilizado pelo PAC anunciado pela Presidenta da República durante visita a São João del-Rei, para construir, com mudas doadas pela população, um orquidário no muro de arrimo que termina nas grades do antigo Grupo Escolar Maria Teresa. A cidade, a natureza e a humanidade agradeceriam.
Não sei se você concorda comigo, nosso povo precisa de mais beleza, delicadeza e poesia no dia a dia. Sonhemos estes sonhos, insistentemente, até que eles se realizem...
Como o vento semeia as minúsculas sementes da orquídea no rude tronco e na tosca pedra, assim você o faz com as boas idéias e o saber. Quem sabe esta sua semente em especial não germina...
ExcluirAtenciosamente, UP.