No universo cultural brasileiro, no campo das tradições populares, as narrativas merecem uma atenção especial: contos, fábulas, lendas, mitos, causos, o anedotário. A "contação" de estórias embalou muitas pessoas, de várias gerações, nas cozinhas de roça, junto ao fogão "de lenha", no alpendre, no rancho boiadeiro aguardando passar a noite. Os mais velhos narrando sua experiência de vida aos jovens, parábolas do cotidiano ou aquilo que aprenderam com seus pais, avós... As senhoras na faina de fiar e tecer, iam narrando sem parar as hábeis mãos, enquanto a jovenzinha ao lado ajudando em pequenas tarefas, mas aprendendo o ofício, ouvia as velhas narrativas, "do tempo dos antigos", "do começo do mundo", "do tempo que os bichos falavam".
Elas conservam uma riqueza extraordinária de dados da vida social e velhos elementos jurídicos. Os costumes encarnam nos próprios personagens, que por sua vez refletem, muitas vezes, os próprios membros daquela comunidade.
A maioria dos contos termina de forma positiva, ou seja, com uma lição moral, um ensinamento religioso ou algo do tipo. É bem conhecida nos contos de fadas a fórmula de desfecho "viveram felizes para sempre". Mas como toda regra tem exceção, na pequena narrativa abaixo a protagonista tem um final trágico. Classifica-se entre os chamados contos de natureza denunciante: um animal ou vegetal ganha voz humana e denuncia um crime ou perigo. Dois temas recorrentes nos contos são vistos neste: a vida fidalga das princesas e o gato como animal influenciado por forças do mal,anti-religiosas.
Transmissão de Saberes.
O Gato Incendiário
Faz muito tempo atrás, vivia uma princesa num castelo. Assim eles contam, os antigos, Então deve de ser verdade porque eles eram muito sabidos, tinham ciência das coisas...
Num castelo vivia uma princesa que tinha um gatinho, muito da sua estimação. Tratava ele a pão de ló mas parece que o bicho era atentado pelo demo.
Foi um dia, a princesa antes de dormir acendeu uma vela no oratório, que ficava na parede por cima da cama.
O gato, muito azucrinado, depois que ela dormiu, pulou no oratório e derrubou a vela em cima do lençol fino, de cetim. O fogo lastrou rápido e vendo aquilo, um ratinho anunciou assim, tentando salvar a todos:
Acorda, celentríssima,
acorda com bonança;
chama a forgazona,
que o mardito papa-rato
pois fogo na traficança!
Mas com sua vozinha fraca de camundongo não conseguiu despertar a princesa do sono profundo que tinha. Quando ela acordou já era tarde, pois as chamas tinham dominado toda sua cama ...
Pequeno Glossário
- Tratar a pão de ló: com requinte, da melhor forma possível.
- Celentríssima: corruptela de excelentíssima.
- Traficança: conjunto de peças, reunião de objetos. Muitas coisas reunidas, tralha. No contexto versificado é uma referência ao conteúdo do quarto que pegava fogo.
- Forgazona: folgazona; provavelmente a ama seca; lacaia.
- Mardito papa-rato: maldito gato.
Notas e Créditos
* Informante: Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas, 1997.
**Texto e fotografia (2004): Ulisses Passarelli.
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