Uma lenda, muitas versões
O estudioso do ramo fica sempre investigando origens, analisa as evoluções e arrisca prognósticos. Ao congadeiro nato, porém, a verdade se faz indelével na crença da origem do congado "no tempo dos antigos", ou "no começo do mundo". Estas expressões aparentemente arcaicas ou sem nexo são em verdade de uma profundidade simbólica imensurável, pairando no reino místico da crença no sagrado.
Elas revelam um acontecimento de um tempo em que as pessoas guardavam uma relação mais íntima com o religioso, posto que o respeitavam mais. Como não transgrediam as regras impostas entre mortais e santos, tinham com eles um relação muito mais forte que a de hoje, paradigmática, uma referência capaz de justificar a própria origem do que até hoje se faz.
Quando a história se cala a lenda grita, escancara para o mundo a raiz da tradição, justifica porque e para quê surgiu, e ainda, porque continuar fazendo. Os antepassados deixaram como modelo. Compete aos atuais prosseguir, pois não se pode romper a antiga aliança sagrada estabelecida com os céus sob a pena de desequilíbrio de toda a vivência terrena.
Quando uma lenda sobre a origem do congado, por exemplo, corre de boca em boca e continua sendo para o participante desse "folguedo" a verdade, o começo de tudo, então para ele essa é a história verdadeira. Pode ouvir outras mas é aquela que continua guiando o seu fazer, os procedimentos protocolares do ritual. Muitas vezes para carimbar como autêntica uma narrativa, o narrador ao terminar usa de uma reveladora expressão: "assim os antigos contavam..."
Aqui em São João del-Rei, pelos idos de 1994, o baluarte Luís Santana, capitão de congado (catupé) com imenso cabedal de saberes contou-me que ...
"A Santa apareceu viva numa mata, perto de uma cachoeira, para um branco e um negro que estavam cortando cipó para amarrar uma cerca. O branco levou ela para a igreja mas ela voltou para a mata. O negro foi com o moçambique, levou a santa para a igreja e ela não saiu mais de lá."
Fica claro nesta versão que a própria santa escolheu os negros. A santa referida é Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros e dos congados. No período escravocrata e até recentemente os grupos eram formados quase que só pelos afro-descendentes.
Dois anos antes, no mesmo bairro e rua, outro grande capitão (também de catupé), José Camilo da Silva, tinha-me passado a mesma lenda com alguns outros detalhes
"Nossa Senhora do Rosário apareceu numa gruta. Isso foi no sertão, no tempo dos antigos. O povo achou a imagem e fizeram uma procissão. Levaram ela para uma capela, mas no outro dia, quando voltaram lá ela tinha sumido. Acharam de novo lá na gruta. Aí os negros foram dançando congo buscar ela mas ela não acompanhou por causa que eles usavam sainha, roupa de carnaval. Então foram os negros velhos, tudo simples, com roupa de saco alvejado dançando para ela o moçambique. Aí a santa agradou e subiu no andor. Levaram ela para a igreja e os congos foram atrás acompanhando mas não entraram por causa da sainha colorida. Nossa Senhora ficou lá no altar e não saiu mais."
Nesta variante de novo a santa opta pelos negros (em lugar do "povo", qualquer um). O congo agrada a santa mas por causa do colorido demasiado, compete ao moçambique a primazia de conduzi-la e chegar junto ao altar.
José Camilo me entoou um canto moçambiqueiro antigo, oriundo de Ritápolis (guarda de um tal "Barão"...) que dizia:
"Oi-êh! Oi-áh!
Oi... divera!
Oi, zi que manda, zi que manda, que mandô,
mas quem manda agora no rusá?
Oi-êh! Oi-áh!
Oi... divera!
Congadêro, anda em roda de capela,
moçambiquêro, bâmo no artá!"
Neste canto admirável evocando ecos de vozes africanas, o capitão indaga quem manda no rosário, digo, na festa do rosário. Ele mesmo responde: é o moçambique (vamos no altar) enquanto o congo só rodeia a capela. Hoje não é mais assim, ambos entram na igreja, mas, me dizia, que o certo era apenas o moçambique entrar, como outrora acontecia, garantiu-me. Quando perguntei porque isto mudara, me disse sem titubear que é porque o moçambique atual se modificou, adotando novas vestes e bailados. Quando quebrou a regra estabelecida pelos antepassados perdeu um pouco de sagrado.
No distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno ouvi do capitão de congo José Pedro Sobrinho, pelos idos de 1995:
"A santa apareceu numa pedra. Acharam ruim deixar ela de fora e fizeram perto uma capela. Colocaram ela lá mas no outro dia quando foram olhar ela tinha sumido e acharam de novo na pedra. Toda vez que botavam na capela ela voltava para a pedra. Os negros juntaram uns instrumentos, fizeram o congo e foram tocando e dançando para ela e aí ela não saiu mais da capela."
Noutro distrito, São Gonçalo do Amarante, a ideia é a mesma, conforme me narrou em 1996 o capitão de congo local, José Francisco Sales:
"Nossa Senhora do Rosário apareceu numa serra. Juntaram uns músicos, formaram uma banda e foram buscar ela. Puseram no andor e levaram até a igreja. No outro dia ela tinha sumido. Acharam de novo na serra. Formaram o congo e foram cantando e dançando buscar a santa com uma charola: "Ei, nossa mãe do Rosário! Ei, nossa mãe do Rosário!" ela subiu na charola, foi para a igreja e não saiu mais de lá. Daí para a frente o congo continuou."
A frase típica é "daí para frente o congo continuou". O sentido é de legitimação. A aparição da santa é o marco que justifica o que fazem os dançantes. Ela só aceita permanecer na casa santa quando é levada pelos negros, com seus cantos, danças, músicas. Está claro que é uma escolha divina. Isto fez surgir o congado na mente congadeira: uma homenagem, um ritual de escolta.
Esta lenda não é exclusividade são-joanense (*). Outros grupos regionais a possuem. Em Resende Costa o capitão "Vino", de catupé dizia-me por volta de 1999 que a santa aparecera numa loca de pedra (lapa, gruta) e foi trazida pelos brancos com a banda de música e voltava ao local de origem como nas outras narrativas. Foram os escravos com o congo (ela "balanciô", ou seja, remexeu o corpo, demonstrando ter agradado, mas não veio), depois o moçambique (ela "aluiu", ou seja, andou um pouco, deslocou-se brevemente, prenunciando a saída definitiva) e por fim o catupé, este sim tirando a santa da loca e deixando-a em definitivo na capela.
Os demais tipos de congado teriam aderido à irmandade depois, por devoção. Foram aceitos e fazem parte mas não são da origem.
Outras variantes dizem que Nossa Senhora "aluiu" com o vilão (Cláudio, Perdões, etc.), por isso ele vai na frente dos cortejos. Ainda mais outras, pelo centro, centro-oeste e meio-norte do estado falam que ela apareceu no mar, pairando sobre as ondas. O candombe que a teria tirado para a terra .
Muitos lugares de Minas tem esta lenda e até de Goiás. Ela representa de fato o marco da origem, a simbologia do fundamento, a raiz do processo, que desde o Brasil Colônia vem se repetindo, firme na crença, porque ela é o elo com o passado religioso-cultural e com os antepassados. As variantes não se distanciam muito nos detalhes pois o teor é o mesmo. Uma só é a diretriz, pautada no rico universo mítico do congadeiro.
Procissão de Nossa Senhora do Rosário em São Gonçalo do Amarante, acompanhada pelos congadeiros, 1999. |
Notas e Créditos
* A exemplo disto registro aqui uma versão que me foi passada em 1996 por um capitão de congo dos Arturos (Contagem/MG): "Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar. Um escravo viu e contou para o senhor. Ele mandou prendê-lo no tronco e disse que mandaria averiguar. Se fosse mentira o negro iria apanhar. Viu que era verdade, soltou o negro e aí avisou aos outros brancos, que formaram uma banda e tocaram para ela da praia. Ela 'balanciô', mas não veio. Foram os negros. Ela chegou um pouco mais para frente e pediu que o congo viesse para abrir caminho para ela sair. O congo veio. Aí chegaram os moçambiqueiros e a santa saiu do mar, acompanhando." Dizia o informante que o congo vem na frente dos cortejos "tirando os espinhos", "varrendo o caminho" - daí a coreografia com movimentos de lateralidade. Outra versão dos Arturos foi passada na mesma ocasião por um capitão de moçambique, que começa igual à do congo, porém completa: "os negros já tinham a guarda de candombe, o mais antigo, o pai de todas as guardas, que só era formado por negros velhos escravos que já não podiam andar direito por terem os pés cheios de machucados, muito bicho-de-pé e não foram buscar a santa no mar. Mas aí foram os congos e moçambiques (como na versão anterior). Levaram a santa para o mato e lá é que eles iam venerar, escondidos dos senhores, num quilombo, que foi onde fizeram a primeira igreja de Nossa Senhora do Rosário. Os congadeiros representam as três pessoas da Santíssima Trindade: o candombe é o Pai, o congo é o filho e o moçambique é o Espírito Santo."
** Texto, fotografia e acervo: Ulisses Passarelli, 1999.
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