Foi numa época de seca muito
forte. Toda água estava esgotando e os animais da mata estavam com sede.
Fizeram uma reunião: o tatu, a onça, o tamanduá, o macaco, toda bicharada
estava lá. A assembléia decidiu por um mutirão formado por todos aqueles bichos
furar um poço na parte mais baixa, na esperança de achar água potável. O coelho
foi o único a discordar, negando-se ao trabalho.
Os animais protestaram com razão, porque se ele não ajudasse na labuta não poderia beber. A onça por ser a mais
temida deu o veredito: ela mesma tomaria conta do poço. "Ai" do coelho! Se
atrevesse beber sem ter trabalhado, o devoraria...
Os animais começaram o serviço
custoso. Os tatus logo puseram a cavoucar. Outros bichos carregavam terra,
outros mais buscavam paus para escora e assim foi por alguns dias, mas o
coelho... nada de ajudar! Só de longe olhando e rindo da serviçada sem fim.
A cisterna ficou pronta depois de
muita peleja e a bicharada matou a sede à vontade, sem perseguição alguma. O
coelho não apareceu. “Viu só”, comentou a onça com impáfia, “o orelhudo não se
atreveu...”
Mas de longe ele observava e deu um
jeito de enganar a escolta da onça. Besuntou o corpo todo de mel e depois rolou
sobre as folhas secas da mata que grudaram no seu pelo deixando-o
irreconhecível. Arrancou uns ramos de samambaia e chuchou-os ao pelo
embolotado. Lá foi o coelho disfarçando o andar, num gingado diferente. A onça
vislumbrou desconfiada a chegada.
_ Boa tarde!
_ Boa tarde, senhora!
_ Que mal lhe pergunte, mas... quem é
o senhor?
_ (Respondeu o coelho com vozeirão
gutural, disfarçando) sou o bicho folharal.
_ Folharal?! Uai... mas eu nunca vi o
senhor aqui. Donde o senhor é?
_ Eu vim lá de longe daqueles morro.
Tô de viagem e lá vou pras banda de lá... Mais tô com muita sede, esse sole bravo,
seca danada...
_ Quê isso! Num vai ficar com sede
não. Óh, furamo esse poço aqui, os bicho tudo, de menos o sem vergonha do
coelho... Mas deixa ele passar por aqui... Mais...e, o sinhôre pode bebê o
quanto quisé. É um visitante.
_ Brigado!
Foi lá o coelho, digo, o folharal, e
tomando de uma cumbuca, matou a sede o quanto quis enquanto a onça o olhava de
baixo em cima, cismada, mas sem atinar o logro.
_ Água boa essa aqui, viu.
Fresquinha! Brigado a sinhóra...
_ De nada!
_ oh, num arrepara não mais já tamo
na vorta do dia e ainda tenho mais de légua pr’aquele rumo. Eu vô chegâno. Muito
agradicido!
_ Vai com Deus, seu Folharal!
Saiu o descarado do coelho naquele
requebrado. A onça meio pasmada olhava sua figura no fim da trilha. Quando a
distância era já segura, O Bicho folharal voltou-se para a direção da onça e
começou a sacudir o corpo todo e arrancar todas aquelas folhas e ramos e
vendo-se livre do disfarce, riu demais daquela bruta. E saiu correndo disparado
pra grota abaixo, entremeio de moitas e moitas até sumir.
Ficou revoltada, aos urros de
estremecer a mata. A bicharada veio saber da nova. Ficaram fulos de raiva. Foi
a raposa que deu a idéia da vingança.
_Oh, vão fazê assim: nóis cavuca uma
cova e dona onça deita nela de barriga pra cima. Cubrimo ela tudo de capim e
fôia seca. Fica lá paradinha... sem mexê
nada, só com um furinho no mei’ das fôia
pra mode respirá. Aí vamo ispaiá nutícia que a terra tá revortada co’a seca e
vai escancará a boca e mostrá seus dente, que devora tudo quanto é bicho morto
no chão. O cuêi’ é munto curioso e vai chegá pra vê. Aí a sinhora arreganha a
guela que impurro ele lá dentro. Daí é só mordê. Esgana ele! Disaforado!
_ uai, sô... Muito boa idéia! Cumé
que num pensei nisso...
_ Ah,com todo respeito, eu sô a
raposa num é a toa...
Assim fizeram. Os animais em roda,
circulando o lugar onde a suposta boca da terra iria se abrir.
_ Chega aqui perto cuelho, óia ali
que a terra lá vai rachando... Chega aqui pertinho, pr’ocê vê!
_ Não, daqui mesmo tá bão. Tá dano
pra vê...
_ Ah lá os dente pontano! Óia que
bruto, cuêi’ !
Ele esticou o pescoço e vendo que era
uma presepada da onça com a raposa, abaixou ligeiro pegou uma grande pedra e
jogou na garganta da onça. E deu o fora o mais rápido que pode. A onça se
debatendo sufocada esperneava de dor sem poder reagir e nenhum bicho teve coragem de chegar perto para acudir. O coelho sumiu no mundo. Nunca mais voltou
naquela região.
* Informante: Luís Pereira dos Santos, povoado da Candonga (Tiradentes / MG), 2007.
** Adaptação textual e desenho: Ulisses Passarelli.
Valioso esse trabalho.
ResponderExcluirMe deu saudade de Tia Rita contando essa história pra gente, ao redor de uma lareira improvisada, feita de lata de querezone e cheia de sabugos de milho que crepitavam esquentando o ambiente de uma casa sem forro.
As fábulas, os contos, as lendas... essas narrativas maravilhosas tem sobre nós um poder encantador de socializar, unir, remeter às lembranças. Grato pela visita! Continue acompanhando nossas postagens.
ExcluirNo sertão da Paraíba, minha mãe e minha avó materna contavam uma estória que, pelo que eu lembro, é muito parecida com essa. Deve ser a mesma com algumas alterações. Mas lembro muito do título: " Camarada Folharal".
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