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domingo, 7 de outubro de 2012

Pastorinhas de Tiradentes


Pastorinhas da Vargem de Baixo [I]

Ulisses Passarelli

            Consta por tradição oral que as pastorinhas em Tiradentes-MG vem de longa data, que porém, não sabe-se qual é. Não descobri o nome de sua primeira organizadora, nem tão pouco de qual modelo se valeu para introduzir este folguedo natalino no histórico lugar, ou ainda, quando foi desativado.
            Fato é que, na década de 1980, depois de muitos anos de paradeiro, com base no grupo antigo, foi reativada esta manifestação folclórica pela senhora Alice Lima Barbosa, no centro da cidade. Nova paralisação seguiu-se.
            Em 1990 formou-se novo grupo, pelos esforços da sra. Ana de Meneses (enfermeira de profissão; atualmente vereadora), natural de Dores de Ganhães-MG. Pessoa de boa vontade, trabalhadora, muito tem se dedicado a serviços comunitários, com mães e crianças, desde religião a futebol, passando por quadrilha e pastorinhas. Explica que aprendeu o folguedo com Dona Inácia, do Bairro Cascalho, que participara do primeiro grupo e a ensinou tal e qual como ainda se conserva (ano 2000), no Bairro Vargem de Baixo. Tal bairro foi bem humilde mas já apresenta vários melhoramentos, embora algumas crianças participantes sejam carentes. Fica à margem esquerda do Rio das Mortes, tendo ao lado a linha férrea da velha e tradicional Maria-fumaça, a nossa querida “Bitolinha”.
            O número médio de participantes é de 25 crianças ou pouco mais com idade em torno de 7 a 12 anos, divididas entre os seguintes papéis: os masculinos – quatro Pastores (meninos), trajados de calça e colete marrons, camisa branca; três garotos como Reis Magos vestidos de túnica nas cores branca, bege e púrpura, com manto amarronzado, cingidos de turbante ou de coroa de papelão coberta de papel dourado. Calçam sandálias. Na mão trazem os presentes: uma caixinha dourada ou baúzinho (ouro), uma naveta de igreja (incenso) e um ramo (mirra). Os femininos – quatro Ciganas com vestidos longos, rodados e plissados, mangas curtas, cheias, com elástico a altura do antebraço; pala e cabeção no vestido; lenço à cabeça. Tudo em tecido de estampa vivaz, bem colorida de bolinhas. Brincos de argola. Tamancos. Laçarote na cintura. Medalhinhas douradas na fronte. Na mão pandeiros enfeitados de fitas multicores. Uma Libertina, com longa túnica, calçada de sandália e a cabeça guarnecida por um pano longo que lhe cai sobre o busto. Cores sempre claras, tons pastéis. Sua figura lembra a mulher do Oriente Médio. Um número variável de Pastoras, com roupas de saia a altura dos joelhos, de pano com estampado miúdo – verde, azul ou vermelho – e, do mesmo tecido, um lenço à cabeça. Blusa e aventais brancos, manga curta, meio bufante, gola aberta em “U”. Calçam tamanquinhos de madeira com correia de couro e carregam cestinhos de papelão cheios de flores e revestidos da mesma fazenda da saia.
            O texto é simples, desenvolvido em cerca de quinze minutos ou pouco mais, com limitados pontos coincidentes com outras pastorinhas do Sudeste conforme a bibliografia consultada, senão nalgumas passagens muito generalizadas em outros grupos, conforme está indicado.
            Apresentam-se no período natalino, em visita a casas, igrejas e presépios. Em Tiradentes é possível ver pastorinhas e folias de Reis cantando pelo Natal, dando-lhe um cunho tão tradicional[1], com o apoio do pároco, Revº. Padre Ademir Sebastião Longatti. Chegando o grupo ao lugar onde cantarão, adiantam-se dois Pastores e virados para a assistência, declamam:

Jesus nasceu quando o galo na terra cantou!
Noite de paz, noite de amor, noite de luz!
Venham todos cantar!
É Natal do Menino Jesus!

            Pode haver mais declamação, de fundo religioso e espírito natalino. Então, entra cantando todo o grupo, em fila dupla paralela, na seguinte ordem: Pastores, Pastoras, Libertina, Ciganas e Magos. A organizadora procura colocar as crianças nas alas em ordem crescente de altura corporal. O canto de entrada é o seguinte [II] :

Natal, Natal! 

Estou indo 
Nasceu Jesus!
para Belém,
Nasceu a vida,
nasceu Jesus
nasceu a luz! [2]
p’ra nosso bem!

            Entram em marcha ao som deste canto na igreja ou casa visitada. Vale notar que não há acompanhamento de instrumentos. A música é apenas vocal.
            Nova posição: colunas – três ou quatro – ficando as crianças maiores nas colunas de trás e as menores na frente. Duas pastoras se adiantam e declamam olhando para o altar, presépio ou imagem:

Quero o céu hoje inteiro se abrindo,
Quero ouvir esta noite os arcanjos
Toda luz que vem lá do céu.
De harmonia que só Deus escuta;
Que venha a nós a vossa luz!
Quero ouvir os anjos falando com anjos
Deus possa ser o céu mais lindo
Pois nasceu nosso Deus numa gruta!
Que nasceu Jesus em Belém.


            Pode-se acrescer mais declamação. As pastorinhas então cantam louvando:

Vinte e quatro de dezembro
Os anjinhos lá do céu
Salve, oh Maria,
Meia-noite, deu sinal,
Em um coro angelical
Virgem de Nazaré!
Rompe agora a primavera
Estão cantando mais alegres
É Santa Mãe de Cristo,
Nesta noite de Natal! [3]

Nesta noite de Natal!

Esposa de São José.



Vamos, pastorinhas, vamos,
Viva, Jesus!
Viva, etc.
Vamos adorar!
Viva,  Jesus!

As boas novas anunciar!
Em sua lapinha


Cercada de luz! [4]


            Quando se visita uma casa há este canto específico para chegar:

Senhora dona da casa
Meu Jesus por mim nascido
Dê licença para entrar;
Na lapinha de Belém,
Viemos de longes terras
Foi nascer tão pobrezinho
O presépio visitar.
Para nos enriquecer.


Somos pobres pastorinhas
Na cidade de Belém
Nada temos para dar;
Ainda temos que chegar
Damos flores a Jesus
E por isso não podemos,
Paz pedimos para este lar.
Não podemos demorar.
(Refrão:)
Gloria in excelsis Deo!
Gloria in excelsis Deo!

            Os cantos são acompanhados de expressiva gesticulação das pastoras, reforçando a mensagem dos versos. Exemplos: em “os anjinhos lá do céu”, apontam para cima; “viva, Jesus!”, acenam as mãos, sacudindo-as; “salve, oh Maria!”, correm o braço do peito à direita, numa reverência; “somos pobres pastorinhas”, mãos no peito, girando o tronco; “nada temos para dar”, fazem sinal de negação com o indicador; “damos flores a Jesus”, indicam as cestinhas de flores de carregam. Não dançam. Só gesticulam.
            Feita a louvação apresentam-se as Ciganas, que se destacam do grupo. Cantam à parte, paradas:

Daí uma esmola

A pobre cigana,
Pois vós bem sabes  BIS
Que ela não engana!

            Então entra o refrão cantado pelas Pastoras e Ciganas, enquanto estas batem os pandeiros, acompanhando com passos sincronizados à direita e esquerda:

Nos causa gosto,

Nos causa alegria,
Ver que é nascido  BIS
O Filho de Maria!

            Param de cantar e tocar os pandeiros. Segue no mesmo esquema alternando estrofe e refrão, este sempre com toque dos pandeiros e dança:

Eu peço uma esmola
Eu peço ao senhor
Eu peço ao senhor
Pelo amor de Deus
Que dê-me um vintém,
Que dê-me um tostão,
Que a pobre cigana
Que a pobre cigana
Que a pobre cigana
Hoje não comeu. [5]
Chegou de Belém.
Hoje não tem pão.

              Recolhem no pandeiro as esmolas acaso ganhas. Voltam às colunas.
            Sai a Libertina do meio das crianças e em posição de destaque, canta com uma entonação muito marcante, dramática, virando-se lentamente para um e outro lado com expressiva movimentação dos braços. Canta sozinha mas no refrão é ajudada pelas pastoras que batem os pés em marcação de passo. Seus tamancos geram um efeito de percussão:

Eu sou uma libertina,
Ando aqui peregrinando,
Perdoai-me, oh Cristo!
Venho de Jerusalém,
Guiada por uma luz,
Dai-me vosso perdão;
Mas quero emendar-me
Por um astro cintilante,
Que eu vos dou em troca BIS
Daqui para Belém!
Que me mostrou Jesus!
O meu coroação!
(Refrão:)
Daí-me oh Cristo!
Daí-me vosso perdão;
Que eu vos dou em troca  BIS

O meu coração!

             A parte da Libertina é conhecida noutras pastorinhas, conquanto não ocorra nos grupos das vizinhanças de Tiradentes. Está nitidamente fragmentada pois noutras versões existe uma cena anterior onde as Pastoras ao seguirem para Belém para louvar o Menino Jesus, perdem uma companheira, que entrega-se à libertinagem por influência de Satanás, que chega a figurar na dramatização. Só depois de outras passagens é que ela percebe seu erro pecaminoso e pede perdão, arrependida, querendo seguir o mesmo caminho das companheiras. Nítido fim educativo, catequizador. Na Vargem de Baixo apresenta-se apenas a parte final deste entremez, desconhecendo-se a forma completa. Sempre foi assim em Tiradentes ou a teatralização inteira perdeu-se (ou foi abolida) na transmissão desta manifestação folclórica?
            Encerra-se com o número dos Três Reis. Também se adiantam para cantar e havendo presépio, vão até ele onde depositam seus presentes.

Os Reis Magos do Oriente
Lá das bandas do oriente,
Esta mirra perfumosa
Guiados por uma luz,
Uma estrela nos guiou.
Em vossos pés depositar,
Vem curvar-se reverentes
Ofertar ao Deus-Menino

Como prova de amizade

Ao seu rei, o Bom Jesus.
Este ouro que vos dou.
Vossas glórias incensar.

            Retiram-se para cantar noutra paragem, podendo então cantar uma música de igreja na saída.
            As pastorinhas, por vezes prefixadas com as designações “cordão”, “reis” e “folia” de pastorinhas, é manifestação típica do Sudeste do Brasil e se diferencia das versões de outras áreas. A do Norte é a que mais se lhe assemelha. Os nomes mudam: pastoral, pastoril, baile-pastoril, lapinha. A forma do Sudeste é hoje rara. Reduziu-se muito nos quatro estados desta região, sendo as terras mineiras seu maior reduto na atualidade... E causa alegria saber que as Vertentes contribuem nesta lista de sobreviventes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, Théo. O Reisado Alagoano.
LAMAS, Dulce Martins. Pastorinhas, pastoris, presépios e lapinhas. Rio de Janeiro: Olímpica, 1978. 173p.
PASCOAL, Ednéa do Marco. As pastorinhas: estudo do folclore angrense. Rio de Janeiro: Olímpica, 1975. 93p.
PASSARELLI, Ulisses. Pastorinhas do Menino Jesus. In: Carranca. Belo Horizonte, Comissão Mineira de Folclore, n.23, jul.1997, p.8.
_______ . Pastorinhas de Dona Glorinha. In: Boletim da Comissão Mineira de Folclore, Belo Horizonte, n.18, nov.1997, p.184-200.
PAZ, Ermelinda Azevedo. As pastorinhas de Realengo. Rio de Janeiro: UFRJ/FUNARTE, 1987. 137p.
REZENDE, Angélica de. Lembrando o Natal e suas tradições. Belo Horizonte: Sion, [s.d.]. 110p.



[1] - No Bairro Vargem de Baixo da cidade de Tiradentes há também uma folia de Reis, comandada pelo sr. Hildo Rosa. Outras mais, vindas da zona rural, percorrem a cidade.
[2] - Canto conhecido nalgumas folias de Reis. Na do Arraial das Cabeças (Bairro Bonfim), em São João del-Re,i cantava-se: “Natal, Natal! / Natal chegô! / Natal querido, / do Redentô!”.
[3]  - Quadra difundida, com variantes. Exemplos: “Vinte e quatro de dezembro / meia noite, deu siná, / rompe orora a primavera / viva a noite de Natá.” (Reisado, Satuba – Rio Largo/AL); “Em dezembro, a vinte e quatro, / meia noite deu sinal / - que Jesus tinha nascido / era noite de Natal!” (Pastorinhas, Miracema/RJ).
[4]  - Nas pastorinhas de Angra dos Reis / RJ há este canto dos Pastores: “Ora viva, Jesus! / Ora viva, Jesus! / Dentro da lapinha / cercado de luz!”
[5]  - Quadra divulgada em pastorinhas. Foi registrada em Miracema/RJ, Angra dos Reis/RJ e São João del-Rei / MG.



[I] - In: Tradição. São João del-Rei, Subcomissão Vertentes de Folclore, n. 4, jan. / 2000.
[II] - O folclorista Américo Pellegrini Filho em “Turismo Cultural em Tiradentes: estudo de metodologia aplicada”, livro publicado em São Paulo pela Editora Manole, em 2000,  incluiu no seu livro um tópico dedicado às pastorinhas, citando este texto de minha autoria. Consta em sua aprimorada pesquisa o registro musical em pauta dos cantos deste grupo folclórico. 


Os Três Reis Magos, personagens das Pastorinhas da Vargem de Baixo.
Foto: João Hipólito, 1999. Recorte: Ulisses Passarelli, 2012.

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