Era costume na vila de São Gonçalo do
Amarante, distrito de São João del-Rei, o rito da encomendação pela quadra
quaresmal, emitindo a altas horas cantos lúgubres em sufrágio das almas do purgatório.
Ao som da matraca o clima era tenebroso, eivado de medos de toda sorte, de
assombrações variadas, pelo que ninguém se atrevia a espiá-los pelas frestas da
janela.
Desse grupo antigo nada sobrou senão os
cantos memorizados por antigos moradores. Os velhos praticantes morreram ou se
mudaram para a cidade. A falta de renovação aliada às mudanças sociais
sacrificou esta tradição. Notícias a respeito já foram publicadas como parte de
minhas pesquisas sobre este distrito.
Contudo, na quaresma de 2008, o
leiteiro Ednei Sebastião de Oliveira, Ministro da Comunhão, auxiliado por
abnegados companheiros, atendendo aos pedidos dos moradores, restituiu o ritual
com os mesmos cantos mas com nova fisionomia. No ano seguinte fui acompanhar a
Encomendação e desta observação procedem as presentes informações.
O grupo se reuniu dentro da igreja
pelas 19 horas. Vários moradores vieram acompanhar. A Irmandade do Santíssimo
Sacramento esteve presente com suas opas vermelhas e lanternas de prata,
ladeando o irmão cruciferário. O organizador deu abertura com uma prece e a
seguir leu uma passagem bíblica e dela fez breve explanação. A seguir convidou
todos a acompanhar com espírito de recolhimento e ressaltou que ninguém fosse
com superstição pois assombrações atrás da encomendação não existiam, isso era
crendice do passado.
Saíram à rua com o barulho seco da
matraca. Os dedos nas contas do terço rezaram primeiro uma via-sacra, fazendo
estações diante de casas pré-estabelecidas, que já abertas, com os moradores à
dianteira assistindo tudo, dispunham imagens na fachada e alpendre, quadros de
santos, toalhas de qualidade, jarras floridas. Entre os mistérios cantos
católicos assaz conhecidos.
Vencida a via-sacra, chegaram ao portão
do cemitério e diante dele, começaram a encomendação propriamente dita, com os
mesmos cantos antigos e seguindo o ritual à semelhança, que só não se completou
porque a chuva desabou com vigor obrigando o retorno antecipado à igreja, onde
se concluiu o ritual com a reza do fim e a entrega, todos ajoelhados muito
respeitosamente.
Sob o olhar puritano ou apenas
preservacionista, a balança do julgamento iria considerar descaracterizada a
nova encomendação. Contudo é preciso entender que os tempos mudaram e ninguém o
fará voltar. A encomendação à moda colonial se foi, porque os assombros que a
ambientavam foram banidos pela modernidade. No novo contexto social ela não
acha espaço nem função. Sua pequena dinâmica foi incapaz de sustentá-la.
Ora a nova encomendação veio com os
cantos originais, a matraca inseparável, um respeito irrepreensível, repleta de
devoção e fé nas almas, ofertando-lhes preces, enfim, seu objetivo central,
porém revelando a ausência de superstições, como convém a um Ministro da Comunhão
e aliada à via-sacra, que lhe serve de sustentáculo. É de se pensar se teria
êxito hoje aquela encomendação do passado num tempo moderno. O segredo da
vivência do folclore é o seu poder de adaptação e não a capacidade de se manter
intocável. Ednei enxergou isto e eis aí seu fruto, digno de louvor, repetido
aliás em 2010.
Grupo de via-sacra e encomendação na vila de São Gonçalo do Amarante, 2009. |
Notas e Créditos
(*) Texto e foto: Ulisses Passarelli
[1] - Neste dia de
observações, Frazão me acompanhou a São Gonçalo, numa visita que teve seu lado
pitoresco por ter sido realizada de bicicleta, com parada na travessia do
Ribeirão do Brumado. Voltamos tarde, debaixo de chuva, estrada de terra, muito precária e escura.
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